O Estado de S. Paulo.
Enquanto o presidente ignora suas funções e junta seus interesses aos do Centrão, a economia desmorona e a pobreza aumenta
Palavrões são quase inevitáveis quando se fala de economia brasileira. Estagflação e desancoragem são exemplos notáveis, embora muitos outros, mais enfáticos e menos publicáveis, também descrevam a obra do presidente Bolsonaro. Estagflação foi o termo usado pelos economistas Claudio Considera e Isabella Kelly, da Fundação Getúlio Vargas, para resumir o pesadelo econômico nacional – inflação de dois dígitos, crescimento miserável e um dos maiores desempregos do mundo. O palavrão desancoragem surgiu recentemente, quando a expectativa de maior inflação se estendeu a 2023 e 2024. Reapareceu na quarta-feira, quando foi anunciada a alta dos juros básicos de 7,75% para 9,25% ao ano. Ancorar de novo as expectativas, informou o Banco Central (BC), será um dos objetivos do aperto monetário mais severo. O objetivo básico, obviamente, é conduzir a inflação à meta.
Levar comida para casa é hoje um dos
maiores desafios para as famílias brasileiras. Não há escassez, mas os preços
da alimentação, impulsionados pelas cotações internacionais, pela alta do dólar
e por efeitos localizados do mau tempo, subiram 7,04% no ano e 8,90% em 12
meses. Comprar feijão e arroz, no entanto, é só o problema inicial. É preciso
cozinhálos, e os combustíveis domésticos, incluído o gás, encareceram 36,86%
nos 12 meses até novembro. Eletricidade também se tornou um luxo, porque a
tarifa, nesse período, aumentou 31,87%.
Preços em alta corroem os ganhos já muito
modestos da maioria dos trabalhadores. Os desempregados eram 13,5 milhões,
12,6% da força de trabalho, no trimestre até setembro. Os informais, 40,6% da
população com trabalho, eram 38 milhões de pessoas. O rendimento médio habitual
dos ocupados, descontada a inflação, foi 4% menor que o do trimestre de abril a
junho e 11% inferior ao de um ano antes.
Não há sinais de grande melhora a partir
daí. Combinadas com a inflação, as péssimas condições do mercado de trabalho
realimentam a crise econômica. Em outubro, as vendas do varejo foram 0,1%
menores que as de setembro. Foi a terceira queda mensal consecutiva e a sexta
nos dez meses de janeiro a outubro. Com o mercado interno muito fraco, a
indústria mal se arrasta. A produção industrial diminuiu 0,6% de setembro para
outubro, na quinta queda seguida, e ficou 4,1% abaixo do patamar pré-pandemia,
de fevereiro de 2020.
Inflação é hoje um problema global,
argumenta o ministro da Economia, Paulo Guedes. É verdade, mas ele se abstém de
explicar por que a alta dos preços é muito maior no Brasil do que na maior
parte do mundo. Nos Estados Unidos, um dos países com maior desarranjo
inflacionário, o aumento chegou a 6,2% nos 12 meses até outubro. No Grupo dos
20 (G-20) a variação foi de 5,3%. No Brasil, o Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA) subiu 10,67% no mesmo intervalo e 10,74% no período até
novembro.
A enorme distância entre a inflação
brasileira e a da maior parte do mundo é explicável principalmente pela
diferença entre governo e desgoverno. No Brasil, o poder central demorou a
reconhecer os problemas decorrentes da escassez de chuvas. Alertas surgiram no
fim do ano passado. Autoridades federais poderiam ter coordenado campanhas de
adaptação do consumo. Poderiam, além disso, ter administrado com maior
eficiência as diferentes fontes de energia, como disseram especialistas, mas
foram omissas e imprevidentes – e os problemas se agravaram.
A inflação alimentada em Brasília é
associada também ao desarranjo cambial, isto é, ao dólar supervalorizado. O
Brasil é superavitário no comércio exterior e há razoável segurança nas contas
externas. O País tem mantido reservas em torno de US$ 350 bilhões. O déficit em
transações correntes tem sido financiado regularmente, há anos, por
investimentos diretos. No entanto, o dólar é instável e tem oscilado, com
frequência, na faixa de R$ 5,40 a R$ 5,60. A contaminação dos preços é
inevitável. O efeito sobre o custo dos combustíveis é especialmente danoso, num
país com excessiva dependência do transporte rodoviário. Também isso diferencia
o caso brasileiro.
Dadas as condições do balanço de
pagamentos, o dólar poderia estar mais próximo de R$ 5,00, talvez abaixo disso,
mas seu valor tem sido inflado pela insegurança no setor financeiro. Há
inquietação quanto ao futuro das contas federais e especialmente da dívida
pública. A principal fonte de incerteza é o presidente, distante das funções de
governo, concentrado em objetivos pessoais e familiares e dependente, cada vez
mais, do custoso apoio do Centrão.
Esse apoio é especialmente importante na busca da reeleição. A combinação dos objetivos de Bolsonaro e de seus apoiadores tem sido devastadora para as finanças públicas. A farra das emendas, o orçamento secreto, o ataque ao teto de gastos, o calote dos precatórios e o abandono, enfim, das normas básicas da responsabilidade fiscal são alguns efeitos notáveis. A contrapartida é o desastre econômico e social, com a pobreza crescente e o ressurgimento da fome num país onde sobra comida e falta governo.
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