É preciso desvincular BPC e aposentadoria do salário mínimo
O Globo
Plano de controle de gastos do governo deve
ir além de ajustes pontuais para promover mudanças estruturais
Com a cotação do dólar em alta recorde, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adiou uma viagem à Europa para enfim apresentar seu pacote para controle de gastos. Será melhor se a proposta for além de apenas ajustes pontuais, incapazes de resgatar a credibilidade do arcabouço fiscal. Para mostrar que leva a sério o compromisso de reduzir a trajetória preocupante da dívida pública, o governo precisa tomar decisões duradouras de caráter estrutural. A mais evidente é desvincular a correção das aposentadorias e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) do salário mínimo.
Recentemente o BPC, voltado a idosos e
deficientes de baixa renda, se tornou foco de um pente-fino para combater
fraudes e irregularidades. Mas apenas isso, como o próprio governo já
reconheceu, será incapaz de conter o peso crescente que vem ganhando nas contas
públicas. O Brasil não é o único a adotar programa com esses
objetivos, mas na comparação internacional o valor do BPC já é alto. Além
disso, o reajuste foi anabolizado. A regra de correção é a mesma do salário
mínimo, que desde o ano passado permite aumento acima da inflação. É saudável
que, à medida que o país for crescendo, o mínimo obtenha ganho real. Mas isso
não faz sentido para um benefício de caráter assistencial, cujo poder de compra
pode ser garantido apenas pela correção segundo a inflação.
Mudança idêntica deveria ser feita na
política de reajuste das aposentadorias. Quem trabalha costuma ter filhos e
dependentes. Gasta mais com aluguel, comida, luz e água. Como se apresenta
diariamente no local de trabalho, é obrigado a gastar parte do orçamento
familiar em roupas melhores e transporte. Tem estilo de vida completamente
distinto de quem já se aposentou. Também já não contribui para o crescimento e
a produtividade da economia. Por isso, o razoável é sua remuneração ser
corrigida também pela inflação, de modo a preservar seu poder de compra, mas
sem o ganho real devido aos que estão na ativa.
Tratar grupos diferentes da mesma forma é uma
das causas do déficit da Previdência.
Com as regras atuais e a inércia demográfica, o resultado será desastroso.
Pelos cálculos mais recentes, a população brasileira chegará ao pico na próxima
década, logo começará a declinar. Haverá cada vez menos brasileiros em idade
ativa contribuindo para sustentar cada aposentado.
Países que teimam em gastar acima das
possibilidades elevam o endividamento, pressionam os juros, reduzem os
investimentos e as chances de períodos longos de crescimento econômico alto.
Sem cortes relevantes na trajetória das despesas ao longo do tempo, a economia
brasileira não irá longe.
Poucos ainda acreditam na intenção do
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva de reverter o aumento da dívida pública no curto prazo. O resgate da
credibilidade foi prometido inúmeras vezes em declarações. Até o momento, o
efeito foi irrisório. A promessa agora é que o governo partirá para a ação. No
fim de semana, Lula se reuniu com técnicos da Fazenda para ouvir propostas.
“Penso que estamos na reta final”, disse Haddad. Reempacotar medidas recentes
ou promover ajustes pontuais para diminuir o rombo em 2025 não resolverá o
problema. Perto de chegar à metade do mandato, Lula tem a oportunidade de
acabar com as dúvidas sobre seu comprometimento com a responsabilidade fiscal.
Oxalá não a perca.
Deficiências de Belém põem em xeque o sucesso
da COP30
O Globo
Brasil está atrasado para remediar as
limitações de hospedagem, aeroportos e infraestrutura
Faltando um ano para a Conferência do Clima
(COP30) em Belém, são preocupantes as deficiências de infraestrutura da capital
paraense para sediar o evento que reunirá em novembro de 2025 ao redor de 60
mil participantes, entre eles até 150 chefes de Estado. O maior desafio é a
hospedagem. Faltam, segundo levantamento
citado em reportagem do GLOBO, 43 mil leitos para o encontro. A
preocupação não diz respeito apenas à quantidade, mas também à qualidade. Dos
12 mil na Região Metropolitana, apenas 864 (7,2%) se enquadram na categoria de
hospedagem adequada ao público.
O governo paraense argumenta que a rede
hoteleira de Belém vem sendo ampliada com a construção de três novos
empreendimentos de alto padrão, mas a iniciativa não resolve o problema. No
início do ano, o governo cogitou transferir algumas reuniões para São Paulo,
Rio ou Brasília. A proposta foi descartada em razão da vontade política de
realizar a COP na Amazônia.
É verdade que os organizadores buscam
soluções. Uma das alternativas é hospedar o público em transatlânticos,
atracados no Porto de Belém. A ideia exige a dragagem do leito do Rio Guajará.
O governo federal abriu licitação de R$ 200 milhões para a obra. Ainda que ela
siga o curso normal, há obstáculos. Boa parte das operadoras de cruzeiros já
fechou as rotas para 2025. Planeja-se também fazer parcerias com aplicativos de
hospedagem, aproveitar a estrutura de escolas, universidades ou vilas
militares, além de construir apartamentos modulares numa Vila dos Líderes,
semelhante às vilas olímpicas. O problema é o tempo exíguo.
Hospedagem não é a única preocupação. Belém
tem deficiências sérias de infraestrutura. O aeroporto não dispõe de capacidade
para o volume de voos internacionais esperado e terá de passar por obras de
ampliação orçadas em R$ 450 milhões. Serão feitas intervenções também na Base
Aérea para receber chefes de Estado. A cidade ainda enfrenta crises recorrentes
na coleta e destinação do lixo, além de ter um dos piores índices de saneamento
do país.
“Estamos extremamente atrasados”, disse ao
GLOBO o cientista Paulo Artaxo, integrante do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) e interlocutor do Planalto. “Belém
dificilmente conseguirá comportar uma reunião do porte da COP30 por questões
logísticas. Isso precisará ser encaminhado pelo governo com certa urgência.”
Belém foi escolha de Lula,
que queria realizar a conferência numa cidade “no coração da Amazônia”. Ele tem
insistido que não se pode esperar estrutura semelhante à de Dubai (onde ocorreu
a COP28). É evidente que é preciso entender as peculiaridades de cada sede, mas
se trata de evento internacional, com presença de chefes de Estado, que
apresenta desafios intrínsecos de segurança e logística. Reservadamente, o
corpo diplomático tem manifestado preocupação com acomodações, rotas de fuga e
infraestrutura hospitalar para emergências. Caso os problemas não sejam
sanados, há risco de a conferência ser esvaziada. A situação exige mais senso
de urgência dos governos.
Governo quer mais capital privado nas
concessões
Valor Econômico
Mas para atrair esses investidores mais
exigentes, não basta um cardápio de projetos atraentes e com potencial de
retorno, especialmente em momento de juros em alta
Sob pressão do novo regime fiscal e sem
recursos públicos disponíveis, o governo deixou em segundo plano a ideologia e
procura capital privado para os projetos de concessão de infraestrutura, muitos
dos quais parados há anos, para atender a população e os projetos econômicos.
Com os recursos consumidos em sua maior parte
pelas despesas obrigatórias, o Brasil vem investindo bem menos do que os 4% a
4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) necessários não só para repor a depreciação
dos ativos de infraestrutura existentes, como também para ampliar o estoque
para acompanhar a demanda e estimular a própria expansão da economia. De acordo
com estudo da consultoria Inter.B feito para o Sindicato Nacional da Indústria
da Construção Pesada - Infraestrutura (Sinicon), esse investimento tem ficado
abaixo de 2% do PIB. Para dobrá-los será imprescindível a participação do setor
privado, diante das restrições fiscais do setor público.
O estoque brasileiro de ativos de
infraestrutura tem em média de 30 a 40 anos. A maior defasagem, de acordo com a
Inter.B, está exatamente no setor de transportes. Desde o início do século, em
2001 até este ano, o investimento médio anual em percentual do PIB realizado em
transportes tem ficado em pouco mais de um terço do necessário. Em seguida está
o saneamento, onde os investimentos ficaram em pouco mais de 40% do
imprescindível. Nas telecomunicações, setor privatizado, há defasagem também,
mas menor, com os investimentos em 72% do necessário.
Diante desses números, o Ministério dos
Transportes vem se esforçando para atrair o investidor. Os recursos privados
representaram 49% dos investimentos em ferrovias e rodovias no ano passado. A
intenção é chegar a 75% no fim do atual mandato do presidente Lula e a 78% no
fim de um eventual quarto mandato, em 2030.
Para a atrair o investidor, há um cardápio de
concessões de 35 rodovias, objetivando captar US$ 41,9 bilhões, e de cinco
ferrovias, com aportes previstos de US$ 13,5 bilhões. Se todos os leilões de
concessões forem bem-sucedidos, a injeção anual de recursos no setor dobraria
de US$ 5,2 bilhões em 2023 para US$ 11 bilhões em 2030, elevando o investimento
privado a 78% do total.
Este ano marca uma virada nesse projeto. O
Ministério dos Transportes estima que o investimento privado vai superar o
público no setor, atingindo 65%. Cinco leilões de rodovias já foram realizados
e, somando o único ocorrido em 2023, chega-se ao total de seis, o mesmo número
de todo o governo passado. Mais cinco estão previstos totalizando 11 em dois
anos. O mais recente foi a Rota do Zebu, que vai de Uberaba a Betim (MG),
vencido pela Kinea. Pouco mais de um mês antes foi leiloada a Rota dos Cristais
(GO), cuja concessão foi arrematada pela Vinci Highways, a primeira empresa
estrangeira a concorrer em seis anos.
Mais quatro leilões de concessões de rodovias
sob a organização federal estão previstos ainda neste ano. São a Rota da
Celulose, em parceria com Mato Grosso do Sul, a Rota Verde, em conjunto com
Goiás, e os lotes 3 e 6 de rodovias do Paraná. Há ainda a licitação da Ponte
Binacional São Borja-Santo Tomé, que liga o Brasil à Argentina.
No primeiro semestre de 2025 deverão ser
realizados outros seis leilões de rodovias. O primeiro será a relicitação da
Concer, no trecho da BR-040 entre Juiz de Fora e Rio de Janeiro. Em seguida vêm
os leilões da Rota Agro Norte, em Rondônia; a Rota Agro, entre Mato Grosso e
Goiás; a Rota Agro Central entre Rondônia e Mato Grosso; e os Lotes 4 e 5 do
Paraná. O Ministério também estuda um plano nacional de ferrovias de R$ 20
bilhões, com a ressalva de que os projetos ainda dependem de recursos que virão
das renegociações com as operadoras ferroviárias que firmaram renovação
antecipada no governo passado, além de outras prorrogações em pauta.
A participação dos fundos de investimento tem
marcado a fase atual das concessões de rodovias. Nem sempre foi assim. No
início do século, as protagonistas eram as grandes construtoras, e a
concorrência era grande. Em média, oito empresas participavam de cada disputa
até 2014. A Operação Lava Jato afastou as construtoras. Nas 13 outorgas de
rodovias realizadas entre 2015 e 2024, havia 2,5 participantes em média, e os
principais players eram as concessionárias. Mais recentemente chegaram os
participantes do mercado financeiro, gestoras de fundos de investimentos,
muitas vezes em parceria com as construtoras e concessionárias. Na rodada de
concessões federais e estaduais da semana passada, havia investidores
internacionais e novos players nas disputas.
Para atrair esses investidores mais
exigentes, não basta um cardápio de projetos atraentes e com potencial de
retorno, especialmente em momento de juros em alta. Um avanço institucional
positivo ocorreu com os ajustes na Lei de Licitações, com a preocupação
ambiental e com o marco regulatório das garantias e compartilhamento de riscos.
Mas é preciso também oferecer segurança jurídica, com estabilidade e
previsibilidade de regras, e reforçar o papel das agências reguladoras, que
estão em xeque neste momento. O ajuste fiscal é vital para atrair o investidor
privado, em especial o estrangeiro, assegurando estabilidade econômica e
ambiente propício aos investimentos.
Poucos votos terão grandes repercussões nos
EUA
Folha de S. Paulo
Vitória de Kamala Harris ou Donald Trump terá
consequências importantes sobretudo para as relações internacionais
Mais de 240 milhões de pessoas estão aptas a
eleger quem presidirá os Estados
Unidos pelos próximos quatro anos. Mais de 160 milhões de
escrutínios serão apurados a partir desta terça-feira (5) caso o
comparecimento, facultativo, se assemelhe ao de 2020.
Apesar das somas demográficas
multimilionárias, uma fração de algumas dezenas de milhares de votos deverá
decidir, uma vez mais, o comando da mais longeva democracia do planeta e da
maior potência econômica e militar.
O confronto
apertadíssimo entre democratas e republicanos, fato recorrente
nas últimas décadas, e o modelo de escolha estadual transformam alguns condados
de estados como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin em potenciais fiéis da
balança entre Kamala Harris e Donald Trump.
Não se trata
de diferença trivial entre desfechos. A depender de para onde
caminhe o pêndulo da eleição dos EUA, as consequências para a política
doméstica e sobretudo as repercussões internacionais serão diversas.
Na economia, a restrição ao
comércio global, em especial mediante a imposição de barreiras
contra interesses chineses, perpassa as duas candidaturas.
A intolerância à imigração, embora se
mantenha como marca do
trumpismo, deixou de encontrar nos democratas um opositor frontal.
Harris promete dificultar a entrada de estrangeiros.
Ambos os postulantes também se importam pouco
com déficits e endividamento do governo federal. Esse problema deve se agravar
seja com o republicano, pelo corte de impostos, ou com a sua adversária, pela
expansão de gastos. Fechar a economia, inibir a imigração e incentivar a
demanda com a política fiscal é uma combinação que atiça a inflação.
Uma vitória de
Kamala Harris manteria o curso básico da administração de Joe Biden na
aliança transatlântica com as democracias europeias e no apoio financeiro e
bélico à Ucrânia e a Israel.
Nesse tema repousa o mais significativo
contraste com Donald Trump. O republicano é na teoria um isolacionista, que
deseja recolher as garras de Washington para aquém das fronteiras.
Na prática o ex-presidente, reinstalado na
Casa Branca, faria aumentar sobremaneira a confusão e a incerteza geopolítica
num mundo já conflagrado. A agenda da transição energética pela descarbonização
negociada multilateralmente seria prejudicada.
Além disso, um hipotético segundo mandato de
Trump, o derradeiro permitido pela Constituição, teria também a inconveniência
de devolver ao palco político mais destacado do planeta um líder que
desrespeita, sabota e ataca a institucionalidade, além de mentir
compulsivamente.
Não que o desafio tenha a capacidade de
ameaçar a subsistência da democracia em seu berço moderno.
A federação e os outros sistemas de freios e
contrapesos dos EUA são enraizados o suficiente para resistir mais quatro anos
a um governante hostil, se esse for o veredito das urnas.
Gasto público é impulso e ameaça ao emprego
Folha de S. Paulo
Expansão fiscal alavanca mercado de trabalho,
mas pressiona dívida pública e inflação e fará o BC subir os juros de novo
A grande boa notícia da economia brasileira
continua a ser o desempenho do mercado de
trabalho, com forte geração de novos postos e sólido crescimento da
renda.
No trimestre encerrado em setembro, o desemprego
caiu para 6,4%, a menor taxa para o período desde o início da série
histórica do IBGE, em 2012. A cifra foi menor apenas nos meses finais de 2013,
quando atingiu 6,3%.
A população ocupada atingiu novo recorde, com
103 milhões de pessoas em atividade. No trimestre, 1,2 milhão de novas vagas
foram abertas. Excetuada a queda sazonal da agricultura, todos os principais
setores —indústria,
comércio e serviços— mostram dinâmica positiva. Já o número de desempregados
ficou em 7 milhões, o menor contingente desde janeiro de 2015.
As razões para tal desempenho ainda são
objeto de debate. De mais estrutural, é plausível estar em curso o impacto
positivo da reforma
trabalhista, que pode ter incentivado a contratação formal ao tornar
as regras mais flexíveis. Quanto aos efeitos mais imediatos, decerto há o
impulso dos gastos
públicos em alta —e daí surge a principal vulnerabilidade da
conjuntura atual.
Puxado pelo
consumo, sem concomitante aumento da produção, e pela expansão
fiscal desmesurada, o PIB deve
crescer 3% neste ano, mas as projeções para 2025 e os anos seguintes são de
perda de ritmo.
Com baixa ociosidade e pressões
inflacionárias crescentes, a política econômica do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) caminha para uma má combinação de desconfiança em relação à evolução
da dívida pública, de um lado, e pressões inflacionárias crescentes, que forçam
a alta dos juros,
de outro.
O IPCA deve terminar o ano em torno de 4,5%,
o teto do intervalo ao redor da meta de 3% perseguida pelo Banco Central.
Com a escalada do dólar e a demanda em alta, as expectativas para a inflação em
2025 estão em 4%.
Diante desse quadro, nesta semana o Banco
Central deverá novamente elevar seus juros, hoje em
10,75% anuais. O mercado espera uma alta de 0,5 ponto percentual e
já projeta uma taxa básica em torno de 13%.
A continuidade dessas tendências é temerária,
pois coloca em risco os empregos e a renda.
A esta altura não deveria haver dúvida de que
cabe à administração petista estancar o problema com um ajuste sério e crível
nos seus gastos —uma inevitabilidade que será tão mais custosa quanto mais
demorar a ser vencida a resistência de Lula e da ala política do Planalto.
O mundo prende a respiração
O Estado de S. Paulo
Os eleitores independentes nos EUA mereciam
opções melhores. Harris é uma candidata muito fraca, mas riscos de quatro anos
de instabilidade sob Trump são grandes demais para ignorar
Como sempre, os eleitores dos Estados Unidos,
a democracia mais rica e poderosa do planeta, vão às urnas escolher não só seu
presidente, mas, como dizem, o “líder do mundo livre”. Após quatro meses de
campanha (a rigor quatro anos), a excepcional indefinição, mesmo para os
padrões de seu sistema bipartidário, mostra que para o eleitorado a escolha é
difícil. Não para todos. Para os cerca de 40% que costumam se abster ela é
indiferente. Para outros, é só escolher contra quem votar, ou o “fascista” ou a
“comunista”. Mas, para uma fatia estreita dos indecisos e independentes que
decidirão a disputa, é difícil.
As propostas intervencionistas, seja do
republicano Donald Trump, seja da democrata Kamala Harris, são frustrantes para
os que acham que os EUA devem ser exemplo de liberalismo. Mas mais angustiantes
são as diferenças. De um lado, a candidata apoiada por uma elite que há muito
ignora a “América profunda”; de outro, um populista imprevisível e com sede de
vingança.
Kamala Harris até evitou pautas progressistas
mais radicais e renunciou a convicções como o banimento de combustíveis
fósseis. Seria fácil conquistar os pragmáticos exaustos com Trump se ela
demonstrasse competência, visões claras de políticas públicas diferentes das da
administração impopular de Joe Biden, domínio sobre os detalhes dessas
políticas e capacidade de articulá-los em um projeto amplo e coeso. Mas,
fraquíssima como candidata, não demonstrou. Nas poucas entrevistas que deu,
evitou respostas diretas e não ofereceu soluções assertivas às duas maiores
ansiedades do eleitorado – a imigração e a inflação. Sobre ela sabe-se apenas
que não pretende ser uma ditadora, como Trump ameaça ser, e que protegerá os
direitos reprodutivos das mulheres.
A vice se apresenta como “novidade”, mas,
questionada em um programa de TV sobre o que faria de diferente dos últimos
quatro anos, respondeu: “Não me vem nada à mente”. As pesquisas, porém, mostram
eleitores insatisfeitos com as políticas democratas e desejosos de mudanças. Se
os republicanos tivessem nomeado um candidato sério, provavelmente ganhariam
com facilidade. Mas não nomearam.
Além de criminoso e golpista, Trump é
caótico. É verdade que sua primeira gestão não foi tão catastrófica quanto se
temia, mas isso se deu muito mais porque ele estava cercado de políticos
republicanos tradicionais e o mundo estava em relativa paz. Agora suas bases e
propostas são mais radicais. Seu populismo econômico, uma mescla de
protecionismo e cortes de impostos à custa de mais dívida, poria o país na rota
da estagflação. Em meio às guerras na Europa e no Oriente Médio, sua diplomacia
voluntarista e errática enfraqueceria alianças e encorajaria ditadores como
Vladimir Putin. Os freios e contrapesos podem conter seus impulsos
autoritários, mas sua incapacidade de submeter seu ego às instituições
democráticas, em especial à mais sacrossanta delas, as urnas, deveria ser
suficiente para desqualificar sua candidatura.
Trump não é tóxico apenas para a democracia
americana e seus aliados, mas para as próprias causas conservadoras. A
demonização indiscriminada de imigrantes, legais e ilegais, inviabiliza um
controle racional da imigração. Sua retórica divisiva confirma e abastece as
paranoias mais histéricas da esquerda woke, minando as condições para a
estabilidade social e o resgate da meritocracia e da igualdade de
oportunidades. Um futuro conservador só será possível se Trump for rejeitado.
Essa foi a conclusão de muitos republicanos que estão declarando o voto em
Harris.
O eleitor moderado e independente merecia uma
opção melhor do que a candidata imposta pelas elites democratas e o candidato
imposto por uma seita republicana. Mas, como a eleição americana terá profundas
implicações para o resto do mundo, é o caso de torcer para que esse eleitor
tenha consciência de que uma vitória de Trump – que transformou em inimigos os
americanos que se opõem a ele, que tentou roubar uma eleição e tentará de novo
porque nutre profundo desrespeito pela democracia e que confunde seus interesses
pessoais e empresariais com os interesses dos EUA – será um desastre de
proporções inauditas.
O mal da desinformação
O Estado de S. Paulo
Pesquisa global mostra maior pessimismo de
acadêmicos com o ambiente informacional e, apesar do conhecimento crescente,
ainda se sabe muito pouco sobre como deter a desinformação
Especialistas estão mais pessimistas com a
desinformação, diz uma nova pesquisa global realizada pelo International Panel
on the Information Environment (Ipie). Segundo mostrou o Estadão, mais de
400 acadêmicos de áreas como ciências da computação, engenharia de dados,
ciências sociais e humanas de 66 países, entrevistados pelo Ipie neste ano,
enxergam piora nas condições do ambiente informacional e veem no uso da
inteligência artificial (IA) razão suficiente para achar que o que está ruim
vai piorar. Um pessimismo que se torna ainda maior na média dos países em
desenvolvimento, como o Brasil. Lideranças políticas, governos e donos de redes
sociais são vistos pelos entrevistados como as principais ameaças. O menor
risco vem de jornalistas e da imprensa, citados como ameaça por apenas 1,5% dos
participantes da pesquisa.
Pessimismo, dúvidas e incertezas quanto ao
peso e ao estrago produzido pela onda de desinformação não chegam a ser
novidade. O que tem mudado são a intensidade e a natureza dos riscos apontados.
A eleição municipal deste ano mostrou que o impacto da IA foi menor do que o
esperado, mas o avanço vertiginoso da tecnologia e seu mau uso sugerem que o
alerta para o futuro próximo é justificável. Deepfakes, chatbots, jingles criados
artificialmente e até deepnudes (imagens e vídeos falsos com teor
sexual) foram vistos no processo eleitoral de 2024 no Brasil, ainda que em
baixa escala. Nos EUA, reportagem recente do jornal The New York Times mostrou
a luta de pesquisadores para descobrir como deter a desinformação que se
espalha nas mídias digitais. Como lembrou o jornal, os pesquisadores aprenderam
muito sobre o assunto na última década – eles sabem quais tipos de conteúdo
tóxico são mais comuns, as motivações e os mecanismos que ajudam a
disseminá-lo, quem são seus alvos e com qual frequência. A questão que permanece
é como mitigar isso.
Não raro o sentimento é de que sua tarefa
parece ser uma espécie de Sísifo contemporâneo: apesar de todos os esforços e
das largas evidências, milhões de pessoas ainda acreditam em narrativas falsas,
por exemplo, sobre eleições e vacinas. Há quem cite a Lei de Brandolini, aquela
segundo a qual é necessário muito mais energia para refutar informações ruins
do que para produzi-las. Se os resultados indicam a formação crescente de
consenso entre a comunidade acadêmica global sobre o estado deteriorante do ambiente
de informação, o mesmo não se aplica às saídas para melhorá-lo. Diante do
pessimismo, há, por um lado, uma certa resignação, com a aceitação de que a
natureza imperfeita do ambiente informacional é parte do jogo e, portanto,
resta aceitá-la e trabalhar apenas para reduzir os danos e cicatrizar as
feridas enquanto outras se abrem; e, por outro lado, há o risco do
catastrofismo e da superestimação do seu impacto e, pior, de enfrentá-la com
leis iliberais que tanto agridem a liberdade de expressão como se mostram
contraproducentes.
Em sua edição 2024, o Índice Chapultepec, da
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), colocou a desinformação como um dos
problemas que agravam o status da liberdade de expressão nas Américas. Nenhum
dos 22 países analisados alcançou pontuação suficiente para figurar na faixa
“com liberdade de expressão”. A pesquisa identificou inércia no combate à
desinformação e influência de Executivo, Legislativo e Judiciário em situações
desfavoráveis à liberdade de expressão. Como o Estadão já citou neste
espaço, leis que criminalizam a desinformação estão se proliferando e, em boa
parte dos casos (inclusive no Brasil), fake news são mal definidas e
dão ao Estado discricionariedade para decidir o que é e o que não é
desinformação. Não falta quem no governo e no Judiciário imagine ainda a
criação de órgão assemelhado a uma “política de informação”, capaz de buscar
informações supostamente mentirosas e de colocar uma espada de Dâmocles sobre a
cabeça de investigados até o final do processo.
Desinformação, insista-se, é combatida
prioritariamente com informação, e o direito penal deve ser o último recurso
para casos específicos e extremos. Isso, no entanto, não pode servir de
pretexto para ignorar o tamanho do problema.
Mural da vergonha
O Estado de S. Paulo
Projeto que expõe acusados de crimes sexuais
fere princípio da presunção da inocência
O Senado aprovou há poucos dias o projeto de
lei que cria o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, por meio do
qual poderá ser consultada a identidade de réus por crimes contra a dignidade
sexual a partir da condenação em primeira instância. Essa espécie de mural da
vergonha, que foi à sanção do presidente Lula da Silva, é daquelas iniciativas
que se prestam apenas a aplacar o clamor popular por medidas drásticas contra
acusados de pedofilia, um crime particularmente abjeto. Mas demagogia, como se
sabe, nunca foi boa conselheira.
O art. 5.º da Constituição assegura o amplo
direito de defesa aos acusados de cometer quaisquer crimes, mesmo os mais
repulsivos. O inciso LVII do referido artigo estabelece que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” –
ou seja, quando não há mais possibilidade de recurso. Um réu condenado em
primeira instância, evidentemente, ainda pode provar sua inocência, razão pela
qual deve ser tratado como inocente, à luz da Lei Maior, até o fim do processo.
Os legisladores, ora vejam, até deram ao juiz
a liberdade de avaliar se, no caso concreto sob seu julgamento, cabe manter em
sigilo a identidade do réu em decisão obviamente fundamentada. Contudo, se o
projeto em questão for sancionado, o nome do réu já estará exposto à execração
pública antes que possa recorrer da condenação, situação que, é fácil presumir,
dificilmente será revertida, mesmo que um recurso seja eventualmente deferido.
Dadas as múltiplas implicações dos crimes
sexuais, não foi à toa que os legisladores decidiram prever no Código Penal o
sigilo dos envolvidos em delitos dessa natureza, distinguindo-os dos demais.
Trata-se de proteger as vítimas, em primeiro lugar, mas também os réus, que,
vale reiterar, poderão ser inocentados até o trânsito em julgado do processo.
Embora o projeto preveja a exclusão do nome do condenado do tal rol de
predadores sexuais caso sua inocência seja comprovada posteriormente, ser
identificável por até dez anos, enquanto há possibilidades recursais, a
pretexto de afastar os acusados do mercado de trabalho, é um convite ao
justiçamento – e sabe-se lá com que desfecho.
Em qualquer país civilizado, como o Brasil,
justiça não se confunde com vingança ou humilhação. Mas tamanha é a ânsia
popular de castigar os acusados de crimes sexuais que os defensores do projeto
parecem ter deliberadamente ignorado os direitos fundamentais assegurados a
todos os cidadãos – inclusive os condenados pela Justiça. Para o senador Marcos
Rogério (PL-RO), relator do projeto, “a presunção de inocência cai” após “a
condenação em primeira instância”, mas isso não está escrito em nenhum lugar da
Constituição.
Roga-se ao presidente da República que vete
esse projeto eivado de arbitrariedade e populismo. A medida, tal como foi
proposta e aprovada pelos parlamentares, terá apenas o efeito de reforçar
estigmas e, não menos gravoso, promover a condenação moral injusta mesmo
daqueles que conseguirem provar sua inocência. A isso se pode chamar de
qualquer coisa, menos de justiça.
Enem e outros desafios na educação
Correio Braziliense
Aumentar os número professores e tornar real
a universalização do ensino no Brasil é, sem dúvidas, um dos grandes desafios
do Estado
As abstenções no Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) deste ano caíram 1,5 ponto percentual na comparação com a edição
de 2023 — 26,6% contra 28,1%. Nos últimos cinco anos, a tendência era de
crescimento. Os percentuais mais elevados foram registrados em 2020 (55,3%) e
2021 (67%), devido à pandemia de covid-19. Apesar de tímida, a queda no número
de faltosos sinaliza que a criação do programa Pé-de-Meia, que garantiu R$ 200
para os estudantes de famílias inscritas no CadÚnico que comparecessem ao
exame, começou a surtir um dos resultados esperados pelo Ministério da Educação
(MEC).
Há outros indícios positivos. Entre os mais
de 4 milhões de inscritos no Enem 2024, o número de jovens que concluíram o
ensino médio aumentou de 1,18 milhão, em 2023, para 1,66 milhão na edição deste
ano. Os formandos do ensino médio na rede pública passaram 53%, em 2023, para
94% em 2024. Segundo o ministro da Educação, Camilo Santana, em vários estados,
eles chegaram a ser 100% — o DF foi um deles — com base no Censo Escolar.
Os números são, de fato, animadores, mas o
estímulo à permanência dos estudantes nos bancos escolares passa também pela
valorização dos professores. Nesse sentido, o anúncio de um novo formato do
Pé-de-Meia feito, na semana passada, pelo governo federal chama a atenção. A
versão licenciatura terá como objetivo incentivar a formação de professores
para suprir o deficit de profissionais nas unidades de ensino. Um desafio tão
ou mais complexo quanto o ingresso nas universidades.
Os estudantes que optarem pela licenciatura
nas diferentes áreas do conhecimento receberão uma bolsa mensal superior a R$
500. A intenção do MEC é se espelhar no programa Mais Médicos, a fim de que não
faltem professores em nenhuma parte do país. Mais detalhes do projeto deverão
ser anunciados nos próximos dias.
De antemão, despertar o interesse dos jovens
pela carreira de docentes exigirá muito do governo. Hoje, há uma crise no
setor, uma vez que os professores estão entre as categorias menos valorizadas
no país. A pesquisa Perfil e desafios dos professores de educação básica no
Brasil — realizada pelo Instituto Semesp, do Sindicato das Mantenedoras de
Ensino Superior, com 444 docentes do ensino infantil ao médio, de todas as
regiões do país e das redes pública e privada — mostra que quase 80% pensaram
em desistir da carreira.
Os motivos são: falta de valorização e
estímulo da carreira (74,8%), começando pelos baixos salários da categoria. Na
sequência, a falta de disciplina e de interesse dos alunos (62,8%), falta de
apoio e de reconhecimento da sociedade (61,3%) e falta de envolvimento e
participação das famílias dos alunos (59%). As diferentes expressões de
violência também reforçam o desestímulo de boa parte dos profissionais. Diante
de um cenário tão complexo, cabe perguntar se também não é importante melhorar
as condições de trabalho de quem já atua na docência.
Aumentar os número professores e tornar real
a universalização do ensino no Brasil é, sem dúvidas, um dos grandes desafios
do Estado. O êxito dependerá não só do governo federal, mas dos governos
estaduais e municipais, a fim de tornar concreto o discurso de que a educação é
prioridade para o desenvolvimento do país e para a erradicação das iniquidades
sociais e econômicas.
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