“(...) Ocorre ainda hoje que homens relativamente jovens (com pouco mais de 40 anos), de ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de vinte e cinco anos de serviço público, não se dediquem mais a nenhuma atividade produtiva, mas vegetem com aposentadorias mais ou menos elevadas, ao passo que um operário só pode desfrutar de uma aposentadoria depois de 65 anos e um camponês não tem limite de idade para o trabalho (por isso, o italiano médio se surpreende quando ouve dizer que um americano multimilionário continua ativo até o último dia de sua vida consciente). Se numa família um padre se torna cônego, imediatamente o ‘trabalho manual’ se torna ‘uma vergonha’ para toda a parentela; no máximo, é possível dedicar-se ao comércio”
Antonio Gramsci - Caderno 22: “Americanismo e fordismo” pp. 245-246.
O seriado “Os Quatro da Candelária” é uma oportunidade para elaborar um balanço político sobre as últimas três décadas da política carioca. Em quatro episódios, nós testemunhamos as idas e vindas de seus personagens moradores de rua num país a beira da hiperinflação. Um país na “antessala” do Plano Real (1994). As considerações de Antonio Gramsci em “Americanismo e Fordismo”, provavelmente escritas em 1934, sugerem uma teoria política sobre as sociedades “infladas” pelos mais diversos níveis de “clientelismo” pela via da superestrutura estatal.
Não busquemos frases feitas para
comentar “Os Quatro da Candelária”. Elas podem esvaziar a complexidade política
e social dessa série. Lembremos que o esvaziamento econômico carioca
foi, gradualmente, se consolidando na sua desindustrialização com encerramento
das antigas fábricas de tecidos e outras de bens básicos. O fenômeno não foi
compreendido em tempo para se perceber que, mais que uma “herança maldita” da
escravidão, a sociedade carioca estava se inserindo numa nova etapa de modernização
conservadora pela via do setor de serviços.
Não há rodeios no roteiro numa contagem
regressiva até o desfecho que foi o “11 de setembro” das forças democráticas no
município. Pela postura cada vez mais belicista das forças da segurança pública
numa cidade cada vez mais esvaziada economicamente. A Candelária está na
memória política da luta democrática por causa do comício das Diretas Já em 10
de abril de 1984. Os tiros da noite do dia 23 de julho de 1993 atingiram muito
a nossa vitalidade democrática. Na sequência os chamados “Cavalos Corredores”;
as guerras das facções criminosas; a milicialização do espaço público; os tiros
numa vereadora em plena intervenção da segurança pública estadual em 2018.
Lembrai-vos do 12 de junho de 2000. Um
sequestro que tem suas “linhas tênues” no episódio de 1993. A política carioca
foi se entregando cada vez mais a ao esvaziamento de sua capacidade de
reflexão. O distanciamento do mundo acadêmico da vida pública ficou cada vez
mais evidente na baixa qualidade das assessorias políticas que predominam
muitos políticos uma vez que seriam funções contaminadas pelo parasitismo do
“mistério de Nápoles”.
Olhar para os desafios do Rio de Janeiro a 40
anos atrás e projetar os desafios para os próximos 40 anos – um pouco do sonho
utópico “afro futurista” do último episódio. Do Jesus “surfista de trem” ou
“Wakanda carioca”. O parasitismo da cidade com suas instituições que
retroalimentaram um viés mais tecnocrático na vida política através de grupos
políticos de assessoramento a parlamentares com pouca vivência política. A
festividade carioca foi inserida numa dinâmica mais de mercado e o liberalismo
em economia se incorporou no liberalismo social das classes subalternas. Os
personagens Douglas, Sete, Pipoca e Jesus se comunicam com essas transformações
em que a pressão dos interesses mal compreendidos se revela. Por fim, a cena do
filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1980) é a “cereja de bolo” de uma série
que convida aos jovens intelectuais a muitas reflexões.
Portanto, deslumbramos na série uma nova
oportunidade para nos olhar pelo espelho da representatividade. Nos dizeres de
Bernad Manin,
“(...) O governo representativo parecia, assim, aproximar-se do ideal de autogoverno, do povo governando a si mesmo. Esse progresso rumo à democracia, entendida como o governo do povo pelo povo, chegou a ser interpretado como um prolongamento da história dos Whigs ou, numa versão mais próxima de Tocqueville, como um degrau no avanço inexorável dos direitos de igualdade e autonomia dos indivíduos, que o ‘parlamentarismo liberal’ realizava de modo imperfeito.” (Bernard Manin, “As metamorfoses do governo representativo” in: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 5-34, 1995)
*Doutorando do PPGCP-UNIRIO
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