Valor Econômico
Embornal de promessas inclui adoção de fortes medidas protecionistas e ameaças de imposição de sanções aos países que ousarem escapar do dólar
Na campanha eleitoral, Donald Trump sacou de
seu embornal de promessas a adoção de fortes medidas protecionistas. O embornal
abrigou também ameaças de imposição de sanções aos países que ousarem escapar
do dólar. Vou arriscar modestas considerações a respeito das peripécias da
“moeda universal” ao longo da história.
A história da economia mundial, desde meados dos anos 40, não pode ser contada sem a compreensão das peripécias do dólar em seu papel de moeda-reserva universal. No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar sustentou três processos simultâneos:
1) a expansão da grande empresa americana e a
presença das bases militares de Tio Sam mundo afora gerou o déficit na conta de
capitais dos Estados Unidos, o que garantiu o abastecimento da liquidez
requerida para o crescimento do comércio mundial;
2) no mesmo movimento, o Plano Marshall e a
força do dólar abundante incitaram a reconstrução dos sistemas industriais da
Europa e do Japão; e
3) na esteira da recuperação de suas
economias, as empresas europeias e japonesas, já na segunda metade dos anos 50,
moveram-se para colher as oportunidades oferecidas pelos projetos de
industrialização na periferia.
No final dos anos 60 do século XX, os
desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano determinaram a
desvinculação da moeda americana em relação ao ouro em 1971 e, em 1973,
promoveram a introdução das taxas de câmbio flutuantes.
A continuada desvalorização do dólar nos anos
70 colocou em apuros a supremacia da moeda americana. Essa ameaça foi
enfrentada com a elevação da policy rate deflagrada por Paul Volcker em 1979. A
elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar
o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para
a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como
moeda-reserva. Os países periféricos, como o Brasil, abarrotados de dívidas
denominadas na moeda americana, soçobraram no abismo da inflação desmesurada.
O gesto de Paul Volcker promoveu uma nova
onda de transformações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir
do início dos anos 80, a valorização do dólar deflagrou o movimento de migração
da indústria manufatureira americana para as regiões nas quais prevalecia uma
relação câmbio/salários mais atraente. Assim, ampliaram-se os desequilíbrios
nos balanços de pagamentos entre os EUA e a China emergente.
História da economia não pode ser contada sem
compreensão das peripécias do dólar como moeda de reserva
Nas três décadas seguintes, ainda à sombra do
fortalecimento de sua moeda, os Estados Unidos estimularam as políticas de
abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim,
suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração
produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de
gestores da finança e da moeda universais. Isto significa que os bancos
americanos estavam habilitados a:
1) administrar à escala global transformação
da rede de relações débito-crédito, fazendo avançar o processo de
“securitização”;
2) comandar circulação de capitais entre as
praças financeiras e, portanto, afetar a formação das taxas de câmbio e taxas
de juro à escala global;
3) intensificar as mudanças na estrutura da
propriedade, ou seja, promover a concentração patrimonial e produtiva.
Um após outro, os países de moeda não
conversível promoveram a abertura financeira. Nos países centrais, a
desregulamentação financeira rompeu os diques de segurança erigidos depois da
crise dos anos 30. As restrições à finança buscavam impedir que os bancos
comerciais - responsáveis pela criação de moeda - se envolvessem no
financiamento de posições “especulativas” nos mercados de riqueza (ações,
títulos de dívida e imóveis), com consequências indesejáveis para a solidez dos
sistemas bancários.
A subordinação da dinâmica das economias
capitalistas aos caprichos dos Mercados da Riqueza no ciclo dos anos 2000 de
valorização de ativos e de expansão do crédito foi impelida por um intenso e
criativo desenvolvimento das inovações financeiras. O uso de derivativos e a
intensa informatização dos mercados financeiros associaram-se aos métodos de
“originar e distribuir” para ampliar de forma desmesurada o volume de
transações.
A conjugação entre taxas de juros baixas e
práticas frouxas de supervisão e regulação estimularam o acirramento da
concorrência entre as instituições financeiras na busca desaçaimada por maiores
rendimentos. Para tanto, era fundamental ampliar os volumes de crédito a serem
“securitizados” e elevar os coeficientes de alavancagem das instituições que
carregavam esses ativos.
Os cuidados típicos da era keynesiana, a da
“repressão financeira”, estavam voltados, sobretudo para a atenuação da
instabilidade dos mercados de negociação dos títulos representativos de
direitos sobre a riqueza e a renda. Isto significa que as políticas monetárias
e de crédito se ocupavam de atenuar os efeitos da valorização dos títulos de
dívida e de propriedade sobre as decisões de gasto corrente e de investimento
da classe capitalista. Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva (e
desvalorizações catastróficas) dos estoques da riqueza já existente.
No capítulo XII da Teoria Geral do Emprego, Expectativas de Longo Prazo, Keynes tratou do assunto. “Com a separação entre a propriedade e a gestão que prevalece atualmente e com o desenvolvimento de mercados financeiros organizados, surgiu um novo fator de grande importância que por vezes facilita o investimento, mas que, outras vezes, contribui sobremaneira para agravar a instabilidade do sistema. As reavaliações cotidianas efetuadas na bolsa de valores, embora tenham como principal objetivo facilitar a transferência de investimentos já realizados entre indivíduos, exercem, inevitavelmente, uma influência decisiva sobre o montante do investimento corrente. Com efeito, não faz sentido criar uma empresa nova a um custo maior quando se pode adquirir uma empresa semelhante já existente por um preço menor”.
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