terça-feira, 5 de novembro de 2024

A democracia e o Vale do Silício – Pedro Doria

O Globo

A sociedade tem direito a voz a respeito de seu futuro? Esta é uma das principais questões nas cédulas americanas, hoje. Se as empresas do Vale podem fazer o que quiserem. Ou se não podem

À medida que os americanos depositarem seus votos nas urnas, durante o dia de hoje, de certo modo o futuro da indústria da tecnologia será decidido. Muitos dos casos antitruste movidos contra as grandes empresas da região seguirão com mais ou menos agressividade dependendo de quem será o próximo presidente dos Estados Unidos. E não é só isso. O Vale do Silício rachou ideologicamente pela primeira vez na História.

Nenhum estado é tão explicitamente americano quanto a Califórnia. Quando o México declarou independência, aquele era um canto tão longínquo que a elite branca se recusou a ocupá-lo. Foi o tempo dos dons, fazendeiros de gado de chifres longos, equivalentes a nossos coronéis do Nordeste ou caudilhos do Sul. Não durou muito. Os americanos viram na Baía de San Francisco um portal dos Estados Unidos para o comércio com a China através do Pacífico. Desde cedo, a Califórnia foi multicultural. San Francisco já nasceu uma cidade em que se falava, em qualquer esquina, espanhol, inglês e cantonês, em que sempre se comeram burritos e dim sum. Jamais deixou de ser assim, um caldeirão onde as culturas se misturam.

Com a descoberta do ouro por ali, em 1849, americanos e chineses chegaram em levas maiores. As calças jeans foram inventadas, o mito do faroeste se consolidou, e a Califórnia ganhou a aura de ser o lugar onde qualquer um, não importa a origem, pode chegar pobre e ascender socialmente. Fazer fortuna. O Vale do Silício, imediatamente ao sul de San Francisco, ganhou forma ao redor da Universidade Stanford, fundada por um governador da Califórnia que fez fortuna construindo linhas de trem que uniram o país ao extremo Oeste. Deixou toda a sua fortuna para o campus, erguido em homenagem ao filho único que morreu adolescente. Os americanos, ao longo do tempo, migraram para lá sonhando em achar ouro no século XIX, depois em virar estrelas de Hollywood nos primeiros três quartos do século XX, como a partir dos anos 1970 passaram a sonhar com startups, internet, inteligência artificial.

A base ideológica da Califórnia é e sempre foi esta: não importa onde você nasceu ou a língua que fala, ali alguém só depende de seu talento e trabalho árduo. É a terra das oportunidades, a terra da tolerância com o diferente, a terra do Sol o ano inteiro, coisa rara para um país do Hemisfério Norte. Um terço da população americana vive no estado por causa disso. Essa união de liberalismo com diversidade criou um ambiente fértil à cultura. Não é só cinema. Muito da música vem de lá, o movimento hippie, a literatura de John Steinbeck, Jack London, os beatniks. É lá que o movimento LGBTQIA+ é forte como em nenhum outro canto. É da Califórnia, mais até que de Nova York, que os Estados Unidos emanaram sua imagem para o mundo desde o Pós-Guerra.

O Vale sempre foi progressista, mas rachou. À medida que a indústria digital cresceu e assumiu as rédeas do mundo, a preocupação com a formação de monopólios se impôs. Os clamores por regulação vindos de todo o mundo, nos últimos dez anos, acirraram a divisão. Parte dos investidores e dos inovadores se radicalizou à direita. Elon Musk é o caso mais público. Há dez anos sua preocupação era com mudanças climáticas e diversidade na Tesla. Hoje é um dos principais apoiadores de Donald Trump. Ele não está sozinho. Peter Thiel, um dos mais influentes investidores do Vale, é padrinho de J.D. Vance, o vice republicano. Mark Zuckerberg não se manifesta publicamente, mas já foi gravado falando com entusiasmo da reação de Trump depois do atentado contra sua vida. Do outro lado, há nomes como Bill Gates e Laurene Powell Jobs, viúva do fundador da Apple e amiga de Kamala Harris. Há investidores da OpenAI, como Reid Hoffman e Vinod Khosla.

No fundo, o que os divide é a compreensão sobre a relação entre cada indivíduo e sociedade. Todos acreditam em ambição pessoal, em trabalhar para crescer, na vitória do talento individual. Mas, a partir daí, quem constrói algo que leva à capacidade de influir sobre o futuro de toda a sociedade pode tomar sozinho decisões a respeito de para onde vamos coletivamente? A turma que escolheu Trump acredita que sim. Alguns, como Thiel, dizem isso com clareza. Que não acreditam em democracia. Porque é disso que se trata.

A sociedade tem direito a voz a respeito de seu futuro? Essa é uma das principais questões nas cédulas americanas, hoje. Se as empresas do Vale podem fazer o que quiserem. Ou se não podem.

 

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