O Globo
A sociedade tem direito a voz a respeito de
seu futuro? Esta é uma das principais questões nas cédulas americanas, hoje. Se
as empresas do Vale podem fazer o que quiserem. Ou se não podem
À medida que os americanos depositarem seus
votos nas urnas, durante o dia de hoje, de certo modo o futuro da indústria da
tecnologia será decidido. Muitos dos casos antitruste movidos contra as grandes
empresas da região seguirão com mais ou menos agressividade dependendo de quem
será o próximo presidente dos Estados
Unidos. E não é só isso. O Vale do Silício rachou ideologicamente
pela primeira vez na História.
Nenhum estado é tão explicitamente americano quanto a Califórnia. Quando o México declarou independência, aquele era um canto tão longínquo que a elite branca se recusou a ocupá-lo. Foi o tempo dos dons, fazendeiros de gado de chifres longos, equivalentes a nossos coronéis do Nordeste ou caudilhos do Sul. Não durou muito. Os americanos viram na Baía de San Francisco um portal dos Estados Unidos para o comércio com a China através do Pacífico. Desde cedo, a Califórnia foi multicultural. San Francisco já nasceu uma cidade em que se falava, em qualquer esquina, espanhol, inglês e cantonês, em que sempre se comeram burritos e dim sum. Jamais deixou de ser assim, um caldeirão onde as culturas se misturam.
Com a descoberta do ouro por ali, em 1849,
americanos e chineses chegaram em levas maiores. As calças jeans foram
inventadas, o mito do faroeste se consolidou, e a Califórnia ganhou a aura de
ser o lugar onde qualquer um, não importa a origem, pode chegar pobre e
ascender socialmente. Fazer fortuna. O Vale do Silício, imediatamente ao sul de
San Francisco, ganhou forma ao redor da Universidade Stanford, fundada por um
governador da Califórnia que fez fortuna construindo linhas de trem que uniram
o país ao extremo Oeste. Deixou toda a sua fortuna para o campus, erguido em
homenagem ao filho único que morreu adolescente. Os americanos, ao longo do
tempo, migraram para lá sonhando em achar ouro no século XIX, depois em virar
estrelas de Hollywood nos primeiros três quartos do século XX, como a partir
dos anos 1970 passaram a sonhar com startups, internet, inteligência
artificial.
A base ideológica da Califórnia é e sempre
foi esta: não importa onde você nasceu ou a língua que fala, ali alguém só
depende de seu talento e trabalho árduo. É a terra das oportunidades, a terra
da tolerância com o diferente, a terra do Sol o ano inteiro, coisa rara para um
país do Hemisfério Norte. Um terço da população americana vive no estado por
causa disso. Essa união de liberalismo com diversidade criou um ambiente fértil
à cultura. Não é só cinema. Muito da música vem de lá, o movimento hippie, a literatura
de John Steinbeck, Jack London, os beatniks. É lá que o movimento LGBTQIA+ é
forte como em nenhum outro canto. É da Califórnia, mais até que de Nova York,
que os Estados Unidos emanaram sua imagem para o mundo desde o Pós-Guerra.
O Vale sempre foi progressista, mas rachou. À
medida que a indústria digital cresceu e assumiu as rédeas do mundo, a
preocupação com a formação de monopólios se impôs. Os clamores por regulação
vindos de todo o mundo, nos últimos dez anos, acirraram a divisão. Parte dos
investidores e dos inovadores se radicalizou à direita. Elon Musk é o caso mais
público. Há dez anos sua preocupação era com mudanças climáticas e diversidade
na Tesla. Hoje é um dos principais apoiadores de Donald Trump.
Ele não está sozinho. Peter Thiel, um dos mais influentes investidores do Vale,
é padrinho de J.D. Vance, o vice republicano. Mark Zuckerberg não se manifesta
publicamente, mas já foi gravado falando com entusiasmo da reação de Trump
depois do atentado contra sua vida. Do outro lado, há nomes como Bill Gates e
Laurene Powell Jobs, viúva do fundador da Apple e amiga de Kamala Harris.
Há investidores da OpenAI, como Reid Hoffman e Vinod Khosla.
No fundo, o que os divide é a compreensão
sobre a relação entre cada indivíduo e sociedade. Todos acreditam em ambição
pessoal, em trabalhar para crescer, na vitória do talento individual. Mas, a
partir daí, quem constrói algo que leva à capacidade de influir sobre o futuro
de toda a sociedade pode tomar sozinho decisões a respeito de para onde vamos
coletivamente? A turma que escolheu Trump acredita que sim. Alguns, como Thiel,
dizem isso com clareza. Que não acreditam em democracia. Porque é disso que se trata.
A sociedade tem direito a voz a respeito de
seu futuro? Essa é uma das principais questões nas cédulas americanas, hoje. Se
as empresas do Vale podem fazer o que quiserem. Ou se não podem.
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