Folha de S. Paulo
Os avanços institucionais não atenuam
aspectos obscuros e negativos na imaginação arquetípica do feminino
Se a distância mais curta entre dois pontos não é mesmo a linha reta, e sim o ponto de vista, vale aplicar esta regra poética a dois recentes e distantes acontecimentos chocantes. Primeiro, a revelação por uma ativista afegã de que, as mulheres em seu país, proibidas de trabalhar, estudar, cantar e andar sozinhas nas ruas, agora têm de abafar os sons dos saltos de sapato. Segundo, uma atriz brasileira a bordo de avião norte-americano foi brutalmente coagida a ceder o assento preferencial, pelo qual havia pagado sobretaxa, a um passageiro deslocado da classe executiva. Mulher sozinha, o motivo covarde.
O ponto de vista apoia-se na evidência de
recrudescimento mundial do antifeminismo. Se racismo e misoginia são variantes
de um mal-estar civilizatório, pode-se talvez atribuir maior peso à segunda. O
racismo começa a ser coibido na esfera pública, mas o ataque à condição
feminina persiste em público e em privado.
Na quase totalidade dos países islâmicos, uma
política de Estado misógina vê mulher como outra espécie humana. A violência
simbólica desdobra-se em números amplos ao plano físico. Entre nós, enquanto a
cada 17 horas ocorre um feminicídio, ascendem as estatísticas de estupro. Nos
EUA, "feminismo"
e "pessoas grávidas" integram a lista trumpista de palavras
proibidas.
O fenômeno agrava-se em meio à intensificação
da luta feminina por conquistas civis. O fato social mais relevante do século
passado foi a incorporação massiva de mulheres ao mercado de trabalho, ao lado
da tomada de consciência de seu papel sob o patriarcado. Mas os avanços
institucionais não atenuam aspectos obscuros e negativos na imaginação
arquetípica do feminino. "Arquétipos" não designam imagens eternas,
mas regras de representação do que não se vê, isto é, do que se imagina.
São "modelos de duração variável que
persistem através dos sistemas sociais e até mesmo de civilizações
diferentes" (Raymond Ledrut em "La Révolution Cachée"), com peso
considerável sobre os modos de pensar. O patriarcado leva a conceber uma
divisão antropológica entre homens e mulheres, como se fossem raças diversas.
Isso aflora nos discursos feministas.
Entretanto, há algo maior enraizado na
personalidade masculina, que é o "arquétipo" feminino, uma
representação ativadora de energia vital, ou libido. Nas potencialidades
expressivas do corpo e do sexo, o imaginário articula como desejo as imagens
arquetípicas de gênero. Mas também uma forma cultural de existência, permeável
aos sistemas sociais. Os dois planos interligam-se por laços societários
(econômicos, jurídicos) e sensíveis, onde predominam imagens camuflantes
do machismo.
Mas o sensível vislumbra mudanças no
arquétipo. Por isso, nas ditaduras islâmicas, a alteridade feminina, objeto de
medo primal, é sufocada por tortura lenta até o apagamento público de sua
imagem. E na tortura, em que nada mais se deseja senão a morte do outro, até o
sexo opressivo prescinde de desejo. O mesmo ocorre no extremismo (Trump, Orban,
integristas religiosos) incubador de misoginia.
O Ocidente democrático aguardava um futuro
radioso para a questão. Mas o século 21 cancelou o futuro: o temor/tremor
patriarcal ante as alterações do arquétipo suscita ódio e violência. Na
ultradireita, assim como a bordo do avião. Dessa vez, mexeram com a mulher
errada. Acontece.
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