O Estado de S. Paulo
É da nossa experiência comum a noção de que se possa ou se deva simplificar os conflitos e os contrastes inevitáveis da vida social
Política e antipolítica permeia mas mais
diferentes correntes e tradições, sem exceção. Salvo em período de guerra
declarada, a decisão de fazer política é sinal de maturidade do ator, indica a
intenção de se inserir no movimento real da História e, usando a metáfora
weberiana, dispor-se a perfurar com paixão e discernimento a madeira dura de
que ela é feita. A antipolítica, ainda quando assume aparência de recusa
radical, acenando, por exemplo, coma mudança imediata e a regeneração integral
dos homens e da sociedade, tem o sinal contrário do entusiasmo fácil e da
ilusão que em geral lhe serve de base.
Dispensável dizer que entre uma e outra posição há uma infinidade de nuances e passagens, mas o fato é que no coração do fazer política existe apercepção das múltiplas mediações que definem a concretude das coisas, tão difícil de capturar em meio à digitalização generalizada dos nossos dias. De fato, é da nossa experiência comum a noção de que se possa ou se deva simplificar os conflitos e os contrastes inevitáveis da vida social. Diz-se que vivemos num tempo de polarizações afetivas, enraizadas em sentimentos e ainda mais cortantes do que as polarizações ideológicas de antes – embora estas persistam e ainda sejam, também, o motor de desastres incomensuráveis.
Sobrepostas e mutuamente reforçadas, as duas
polarizações tornam mais efetivo do que nunca aquilo que, há cem anos, se
costumava teorizar como a redução da política a um jogo de soma zero entre
amigo e inimigo. Entendido o inimigo como irrecorrível ameaça existencial, nada
restava a fazer senão sua eliminação, inclusive pela violência e pela guerra. A
teoria sofisticada de um Carl Schmitt e a prática brutal dos fascismos
representaram pontos culminantes da negação da política nos anos 30 – e é
alarmante que tais concepções voltem a circular num mundo em que a direita não
constitucional agride a ordem democrática com uma insolência que desde então
não se via.
Socialistas e comunistas, irmãos desavindos
pelo menos desde 1917, nem sempre souberam responder à altura. Os comunistas,
em particular, cuja revolução nasce condicionada pela tragédia da Grande Guerra
e pela esperança de redenção universal que suscitaria em seguida, nem sempre
souberam escapar da dialética empobrecida dos antagonismos irreconciliáveis.
Num momento decisivo – o da ascensão dos fascismos, precisamente – propuseram
cegamente uma versão extremada do “nós contra eles”, a saber, a estratégia de
“classe contra classe”, em que aos inimigos burgueses tradicionais eram
acrescentados os próprios socialistas e sociaisdemocratas, tidos como expressão
reformista da aristocracia operária em acordo tácito ou explícito com os
poderes dominantes.
Desapareceram assim, também deste lado, a
política e suas possibilidades de aliança e mediação, em prejuízo dos setores
que sempre mais precisam delas. A antipolítica, nesta conjuntura e em outras
semelhantes, se manifesta como espera passiva da explosão revolucionária: nada
a fazer até que esta ocorra com a irrevogabilidade de um fenômeno natural. As
instituições democráticas, resultado complexo de princípios liberais e lutas
dramáticas também protagonizadas pela própria esquerda, tornam-se então mero cenário
de ações de agitação e propaganda. A partir daquelas instituições não seria
possível incidir na relação entre as classes, reforçar a coesão social e
regular a economia. Na verdade, como hoje sabemos, estabelecido tal critério, o
caminho da derrota está pavimentado.
Seria injusto omitir que os velhos comunistas
em outras circunstâncias propuseram políticas de frente bem-sucedidas,
inclusive, para mencionar nosso país, na resistência pacífica e eleitoral ao
regime de 1964. Retornando até os anos 30, aos trancos e barrancos, as frentes
populares se estabeleceram em Espanha, França, Itália e outras partes.
Conservadores, liberais, socialistas e comunistas negociaram politicamente suas
diferenças e obtiveram, em aliança, a vitória decisiva do século contra o
nazismo e o fascismo. Como a contradição habita o cerne das coisas, a realidade
do stalinismo na então URSS tinha o peso do chumbo: a política de frente viria
a coincidir, entre outros absurdos, com os infames processos de Moscou,
destacando a duplicidade constitutiva da cultura comunista. E, no pós-guerra, o
déficit de democracia do “socialismo real” selaria a subalternidade desta
experiência muito antes que viesse a ruir.
Pode bem ser que, nas novas condições da
sociedade digital, não haja mais partidos com os contornos de classe que
marcaram a vida da esquerda, reformista ou revolucionária que fosse. As
desigualdades, no entanto, não dão nenhum indício de que vão arrefecer, assim
como não desaparecerá a necessidade de construir “poderes compensatórios”, para
lembrar Kenneth Galbraith. O novo lance da grande política consistirá em
reatar, desta vez sem a ambiguidade do passado, o nexo entre a luta contra as
desigualdades e o método democrático, desafiando em ambos os planos do
assustador projeto da extrema direita contemporânea.
*Tradutor e ensaísta, é coeditor das ‘Obras’
de Gramsci no Brasil
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