domingo, 23 de março de 2025

Para entender o tempo presente - Míriam Leitão

O Globo

No Poeira, Andrea Beltrão conta uma história que rompe a barreira do tempo num país ainda assombrado por tentativas de golpe

O aconchego que se sente ao entrar no Teatro Poeira é necessário para a história que será contada ali. Uma advogada pernambucana de presos políticos na ditadura militar, Mércia Albuquerque, enfrentará tudo pelas pessoas que defende e vai expor as vísceras de uma máquina de tortura e morte. Os fatos se passam nos piores anos da ditadura. Andréa Beltrão encarnará a personagem de forma intensa, andará pelo palco, fará rir e chorar, ocupando todos os espaços. O Poeira vai abraçar a plateia e isso será bom e necessário.

É a peça “Lady Tempestade” que encerra a segunda temporada no dia 27 de abril no Rio e vai para São Paulo, numa turnê que Andrea deseja que chegue ao Recife, onde a intrépida Mércia viveu e lutou contra os gafanhotos, como chamava os agentes da repressão. O espetáculo estreou em janeiro de 2024, ano em que os 60 anos da ditadura deveriam ser lembrados em 31 de março, mas o governo decidiu desmarcar os eventos. O silêncio sobre golpes não conseguiu chegar ao fim do ano, porque os fatos se impuseram.

Em 21 de novembro, a Polícia Federal indiciou 37 pessoas, entre elas 24 militares de alta patente, além do ex-presidente Jair Bolsonaro, por tentativa de golpe de Estado. Em 18 de fevereiro, o procurador-geral da República apresentou sua denúncia contra 34 pessoas. Esta semana, na terça e quarta-feira, o STF decidirá se recebe ou não a denúncia contra o primeiro grupo, no qual estão Bolsonaro, três generais, um almirante, um tenente-coronel. Se aceitar, eles serão réus. Dias depois, será 31 de março.

“Essas coisas aconteceram, acontecem e acontecerão”, repete Andrea na peça de Silvia Gomez e direção de Yara de Novaes. Mulheres que contam a história de outra mulher. Este alerta dos fatos repetidos na história assusta. “Janeiro começará assim e, logo, 1973 será um ano terrível. As prisões serão violentas”, escreve Mércia em seu diário. “Amanhã termina 1973. Quantas coisas eu não tive tempo de fazer, quantas coisas não me deixaram fazer. A vida é assim mesmo. Vou seguir tentando em 1974”.

Parte do esforço nacional para evitar que essas coisas que aconteceram voltem a acontecer passa pelo processo que transcorre agora diante dos nossos olhos. Não por sentimento de vingança, mas porque é preciso, em algum momento, o país aprender com a sua própria história.

Semana passada, voltei ao Teatro Poeira, em Botafogo, essa pequena jóia da cultura do Rio, espaço criado e mantido por duas atrizes, Marieta Severo e Andréa Beltrão. Fui entrevistar Andrea para meu programa na GloboNews. “Seria ótimo se a gente esquecesse e as coisas desaparecessem efetivamente, seria muito bom. Mas a gente esquece e elas ficam ali, por baixo, a gente pisa nelas”, diz Andrea, na entrevista, falando do espírito da peça.

Era difícil transformar o diário de uma advogada de presos políticos em peça. Mas Silvia Gomez consegue, criando um ambiente fluido em que A. recebe o diário, não gostaria de ler, mas lê, e começa o seu intenso diálogo com Mércia e com a plateia, numa linguagem que respeita as leis da dramaturgia. “O teatro não se presta a ser somente porta-voz da mensagem ou da sua ideologia pessoal, dos seus conceitos. O teatro é muito cruel quando você o usa para fazer alguma coisa que não esteja na carne dele, do que o teatro é em si”, explica Andrea.

Quem é A. personagem que conta a história na peça? “A. sou eu também, e somos vários da plateia que gostaríamos que isso nem tivesse acontecido. Ela fala pelo nosso incômodo”, diz Andrea. Mércia confortará as mães, soltará presos, encontrará corpos desaparecidos. “Os restos de Zé Carlos viajarão pelo voo 125 da Cruzeiro do Sul com destino a Belo Horizonte”, diz Mércia na peça.

Nos últimos anos, fantasmas de um tempo que parecia pertencente apenas à História voltaram a assombrar o Brasil. Eles foram derrotados e responderão por seus atos. Mas ficou essa fratura no país, que não se sabe como curar. “Eu fico impressionada com a dificuldade de conexão, de conversa, com as pessoas que pensam diferente”, disse Andrea. “Já não importa mais se você é de direita ou de esquerda. A questão é que mundo a gente quer, que país a gente quer.” O diário virou um roteiro, que virou uma peça, que virou um livro que será lançado na Travessa de Botafogo, no dia 31 de março. Na orelha, Andrea escreve: “Contar e recontar uma história, muitas e muitas vezes é uma maneira de impedir que o horror aconteça de novo”.

 

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