A guerra de Trump contra a verdade
O Globo
Ataque a universidades, instituições
científicas e imprensa ameaça inaugurar era de trevas e ignorância
Os alvos de Donald Trump em
seu segundo mandato eram todos conhecidos, mencionados à exaustão em comícios e
redes sociais. São — entre tantos outros, da desregulamentação ambiental ao
combate a políticas de diversidade — universidades, instituições científicas,
veículos de imprensa, juízes independentes. Ele tem investido com ímpeto
inaudito sobre quem identifica como adversário.
Cortou US$ 250 milhões em bolsas e verbas dos
Institutos Nacionais de Saúde (NIH), responsáveis por pesquisas contra câncer,
Alzheimer, diabetes e outras doenças. Cortou US$ 400 milhões da verba destinada
à Universidade Columbia, sob a acusação de leniência com o antissemitismo no
campus — outras 59 universidades foram postas sob investigação pelo mesmo
motivo. Cortou US$ 175 milhões da Universidade da Pensilvânia, por ela ter
permitido a uma atleta transgênero competir em provas de natação femininas.
Cortou metade da força de trabalho do Departamento de Educação, responsável por bolsas para universitários e alunos da educação básica de baixa renda, e determinou por decreto sua extinção, quando isso exige aval do Congresso. Pesquisadores estrangeiros, inclusive brasileiros, têm sido barrados no país. Trump vetou a presença no Salão Oval e no avião presidencial de veículos que se recusam a chamar o Golfo do México de Golfo da América, como determinara em decreto. Abriu as portas a publicações sem relevância, mas ideologicamente afins.
A guerra de Trump é contra as instituições
que, nas democracias, se encarregam de investigar e revelar fatos,
produzir ciência e
conhecimento original. São as instituições de que os Estados Unidos dependeram
historicamente para alcançar a liderança científica e tecnológica de que deriva
seu poderio econômico e militar. A guerra de Trump é, no fundo, contra a
verdade.
Até o momento, a reação da sociedade tem sido
tímida. Processos judiciais têm questionado as medidas, mas com pouco efeito.
Magistrados têm sido alvos de ameaças. No meio acadêmico, o diretor da
Faculdade de Direito da Universidade Georgetown foi um dos poucos a não
aceitarem intervenção no currículo. O silêncio decorre do medo.
Trump não parece disposto a obedecer às
ordens judiciais que o contrariem. Deportou venezuelanos que alega, sem
apresentar provas cabais, integrarem uma gangue e, contrariado por decisão de
um juiz, defendeu o impeachment dele. Em rara manifestação pública, o
presidente da Suprema Corte, John Roberts, afirmou: “Impeachment não é a
resposta apropriada quando se discorda de uma decisão judicial”.
É razoável a preocupação com o antissemitismo
nas universidades, com protestos violentos e com a adesão à agenda identitária
extremista. Nada disso, porém, é motivo para a truculência. “O governo pode
responder às preocupações sem violar a liberdade acadêmica. Deveria usar os
processos exigidos por lei”, escreveu de forma corajosa na revista The Atlantic
o presidente da Universidade de Princeton, Christopher Eisgruber, enquanto
líderes de outras universidades, como Columbia, dão sinal de capitulação. De um
mentiroso contumaz como Trump, não se poderia esperar reverência à verdade. Mas
o custo será alto. “A liberdade atraiu os melhores acadêmicos do mundo e
facilitou a busca pelo conhecimento”, diz Eisgruber. O fim da colaboração entre
governo e academia dará início a uma era de trevas e ignorância.
Infraestrutura deficiente de transporte exige
maior participação privada
O Globo
Se Brasil mantiver mesmo patamar de
investimento de 2024, levará 54 anos para obter uma rede logística razoável
O déficit crônico nas contas públicas tem
implicações na vida real que vão além dos efeitos dos juros altos necessários
para conter a inflação. O caminhoneiro que padece em estradas malconservadas e
o empresário que enfrenta toda sorte de problemas de logística para sua
mercadoria chegar aos portos também estão entre as vítimas dos problemas
fiscais do governo.
Em
artigo no GLOBO, Vanilton Tadini e Roberto Guimarães, dirigentes da
Associação Brasileira da Infraestrutura e
Indústrias de Base (Abdib), reuniram dados que expõem a situação crítica que
resulta da falta de investimentos em transportes e logística (rodovias,
ferrovias, hidrovias, aeroportos e mobilidade urbana). No ano passado,
considerando recursos públicos e privados, foram destinados R$ 63 bilhões a
infraestrutura, quando teriam sido necessários R$ 264 bilhões. Em dez anos
faltarão mais R$ 2 trilhões em investimentos fundamentais para erguer e manter
a rede de transportes do país.
Tais números explicam o cenário de rodovias
precárias, portos congestionados, trens urbanos e metrôs superlotados. Nem a
equivocada opção do Brasil no Pós-Guerra de tornar-se um país sobre pneus —
deixando os trilhos e a navegação em plano secundário — garantiu uma malha de
estradas decente. Na matriz de transportes, o rodoviário representa 70%. Há 1,8
milhão de quilômetros de rodovias, mas o Japão, cuja área corresponde a uma
fração da brasileira, conta com 1,2 milhão. Os Estados Unidos têm 6,6 milhões,
e a Índia, com menos da metade do território brasileiro, conta com 6,4 milhões
de quilômetros. A situação não melhora quando se analisa a qualidade das
rodovias. Apenas 220 mil quilômetros, 12,2% do total das rodovias federais,
estaduais e municipais, são pavimentados. E 32 mil quilômetros, ou 14,5%, estão
sob administração privada. São em geral as mais bem avaliadas pelos usuários.
Mesmo que o poder público quisesse voltar a
investir em estradas, não teria condição, tamanha a crise fiscal. E, ainda que
o poder público pudesse investir, a melhor alternativa seria avançar com as
concessões. O agravamento dos eventos climáticos extremos aumentará a
frequência de inundações, queda de pontes e barreiras, com vítimas e
interrupção do tráfego. Não há como tornar as rodovias mais seguras sem
investimento.
As concessões têm avançado. No final do ano,
19,1% das estradas pavimentadas estarão sob gestão privada — 32% das federais e
15,4% das estaduais. Ainda assim, restará 1,6 milhão de quilômetros com o setor
público, dos quais apenas 178 mil quilômetros são pavimentados. A
infraestrutura do país é um encadeamento de gargalos. Se continuarmos a
investir em transporte e logística os mesmos R$ 63 bilhões de 2024, seriam
necessários 54 anos para obter uma rede adequada. Não faltam argumentos para
defender a maior presença da iniciativa privada no setor. Tarefa dos governos.
Democracia brasileira, 40, pode se fortalecer
Folha de S. Paulo
País vive mais longo período sob o regime;
julgamento de Bolsonaro e demais acusados de golpismo no STF deve ser técnico
O Brasil merece celebrar o aniversário da
redemocratização. Há 40 anos, em 15 de março de 1985, o general João Batista
Figueiredo, último dos generais presidentes da ditadura
militar, deixou o poder.
Há
algo de arbitrário nesse marco. Não seria absurdo antecipá-lo em um par de
anos, a partir da constatação de que, após a anistia e a volta do
pluripartidarismo, em 1979, e as eleições diretas
para governador, em 1982, o país já vivia, na prática, um clima de liberdades
públicas. A campanha pelas diretas (1983-84), apesar de derrotada no Congresso,
transcorreu sem repressão.
Por outro lado, puristas podem alegar que
máculas ditatoriais, como senadores biônicos e a Constituição autoritária
de 1967, se projetaram para além de 1985. No limite, seria possível afirmar que
a democracia só foi plenamente restabelecida em 1990, já sob a nova Carta e com
a posse do primeiro presidente eleito diretamente após o hiato ditatorial.
Qualquer que seja o caso, o Brasil vive seu
mais longo período da história sob um regime democrático. Há, é claro, falhas
pontuais, dado que imperfeiçoes ocorrem mesmo nas democracias mais maduras, mas
o regime de quatro décadas mostra vigor.
No plano teórico, o único elemento que pode
conferir legitimidade a um governo é o consentimento dos governados. E só a
democracia, em suas múltiplas configurações, é logicamente capaz de
proporcionar isso.
No plano prático, comparações internacionais
mostram que democracias tendem a sair-se melhor do que outras formas de governo
em várias dimensões. Elas são muito superiores na promoção de direitos
individuais e coletivos, envolvem-se em menos conflitos e costumam produzir
maior prosperidade e melhor distribuição de renda.
É nos dois últimos aspectos que o Brasil
ainda não se sai bem.
Democracias, a exemplo de outras instituições
valiosas, precisam ser cultivadas e protegidas. O fato de o país contar cada
vez menos pessoas com memória viva dos horrores ditatoriais seria fator de
preocupação. Os cientistas políticos, porém, nos reservam uma boa notícia: um
dos fatores protetivos da democracia é seu tempo de existência.
Também é animador constatar que sobrevivemos
bem à recente ofensiva contra o regime e o resultado de uma eleição sob Jair
Bolsonaro (PL),
cuja extensão está prestes a ser examinada pelo Supremo Tribunal Federal.
Apologistas do arbítrio militar, que não o reconhecem como tal, serão
processados e julgados com o amplo direito à defesa inexistente naquele
período.
Bastaria essa diferença para desmoralizar a
tese bolsonarista de que o país vive uma ditadura judicial, como proclama o
filho do ex-presidente, ora encenando a condição de exilado político nos EUA.
O STF, que
de fato tem cometido excessos, pode
fortalecer a democracia com um julgamento técnico e equilibrado dos
acusados de golpismo.
Ano de sacrifício termina com recuperação na
Argentina
Folha de S. Paulo
Economia caiu 1,7% em 2024, mas com alta no
4ª trimestre e redução de pobreza; desafio é recompor reservas em dólar
Depois da forte queda da atividade e da piora
dos indicadores de pobreza no primeiro semestre de 2024, a Argentina encerrou
o ano em situação mais positiva —não sem riscos de recaída, porém.
O Produto Interno Bruto (PIB) teve
contração anual de 1,7% no ano passado, mas houve recuperação na segunda
metade do ano, com altas de 4,3% no terceiro trimestre e de 1,4% no quarto,
encerrando uma recessão
que castigava o país desde o final de 2023.
Tal desempenho, impulsionado por consumo
privado, investimentos e exportações, especialmente no setor agrícola, oferece
um alento ao governo de Javier Milei,
que completou seu primeiro ano com resultados melhores que as projeções
iniciais.
A vitória, no entanto, é insuficiente diante
dos indicadores sociais ruins. A pobreza, que atingiu 54,8% da população no
primeiro trimestre de 2024, caiu a ainda muito altos 38,9% no terceiro
trimestre, patamar próximo ao observado em 2023.
E a inflação,
embora tenha desacelerado de 211,4% para 117,8% no ano passado, segue em níveis
elevados, pressionando o poder de compra dos argentinos. É positiva, mesmo
assim, a tendência de altas mensais menores.
As perspectivas parecem favoráveis em 2025. A
projeção mais recente da OCDE é de
crescimento de 5,7%, que, se confirmado, posicionaria a Argentina como uma das
economias de maior expansão na América
Latina.
Consolidar esse cenário, porém, depende
da negociação de um novo empréstimo com o FMI, que pode
chegar a US$ 20 bilhões, tida como essencial para reforçar as reservas do Banco
Central.
Parte da diminuição da carestia só foi
possível graças à grande valorização real (descontada a inflação) do peso, o
que compromete a competitividade das exportações e não é sustentável. Corrigir
o problema não será fácil. A remoção dos controles cambiais é uma bandeira de
Milei, mas o processo é delicado.
Uma liberalização abrupta poderia disparar
o dólar e
reavivar a inflação. Um novo empréstimo traria dólares para as reservas e daria
margem para uma desvalorização controlada do peso, mas virá com condições
rigorosas, como metas fiscais e reformas.
Milei buscará ainda manter sua popularidade —que segue acima de 40% apesar de não poucas dificuldades e uma tendência recente de queda. A maneira mais virtuosa de fazê-lo é manter a redução da pobreza e da inflação. Resultantes de anos de má gestão, os sacrifícios do país, ora refletidos em protestos de aposentados, não podem ser em vão.
Governo premia a pirraça do Congresso
O Estado de S. Paulo
Em acordo com Executivo, Congresso aprova
mais um Orçamento com receitas e despesas pouco realistas e garante incríveis
R$ 61,7 bi em recursos para viabilizar pagamento de emendas
Para quem levou meses para votar o Orçamento
deste ano, o Legislativo demonstrou uma presteza ímpar na última quinta-feira.
Em questão de horas, a Comissão Mista de Orçamento e o Congresso aprovaram a
proposta após um acordo com a ministra Gleisi Hoffmann, que recentemente
assumiu a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República.
Pudera. A negociação custou a bagatela de R$ 61,7 bilhões.
O Congresso fixou a verba reservada para as
emendas parlamentares em R$ 50,5 bilhões. Mas deputados e senadores também
terão voz na indicação de R$ 11,2 bilhões em despesas discricionárias do
Executivo. Esses recursos poderão ser usados para retomar emendas de anos
anteriores, as quais o governo havia se comprometido a pagar nas negociações
para aprovação do pacote fiscal, no fim do ano passado, mas que haviam sido
suspensas por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio
Dino, por falta de transparência a respeito da autoria ou do destino das
indicações.
O pacto abriu caminho para destravar a
apreciação da peça orçamentária, que caminhava para entrar no mês de abril sem
ser aprovada. Sem o Orçamento, o governo só podia executar uma fração dos
gastos previstos para o ano, equivalente a 1/18 avos. O boicote do Congresso
chegou ao ponto de prejudicar a liberação de financiamentos do Plano Safra aos
agricultores e exigiu do governo a edição de uma medida provisória, com
abertura de crédito extraordinário, para evitar que as operações fossem
suspensas.
Agora que o Orçamento foi finalmente
aprovado, problemas como esse não devem se repetir, mas outros certamente
surgirão. A proposta, afinal, continua com uma previsão otimista de receitas e
uma projeção subestimada de despesas, e será difícil remanejar recursos para
garantir que todos os gastos previstos sejam realmente executados.
O Pé-de-Meia, que concede bolsas a estudantes
inscritos no Cadastro Único para incentivá-los a concluir os estudos e a
fazerem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tem apenas R$ 1 bilhão para
este ano. O programa ainda precisa de R$ 13 bilhões, a serem incluídos depois,
por meio de um projeto de lei ou eventual remanejamento.
O Bolsa Família teve a verba cortada em R$
7,7 bilhões para garantir dinheiro para o Auxílio Gás. Ninguém, no entanto,
espera uma redução no número de famílias beneficiadas, mas apenas um pente-fino
para apurar irregularidades.
Gastos com aposentadorias e pensões,
Benefício de Prestação Continuada (BPC), seguro-desemprego e abono salarial
foram suplementados, mas os valores reservados continuam insuficientes para
arcar com o gasto previsto para o ano todo.
Quanto à arrecadação, o Orçamento projeta uma
arrecadação de R$ 28,5 bilhões com julgamentos no Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (Carf), ainda que eles tenham rendido apenas R$ 307,8 milhões
ao governo no ano passado.
Também estão previstas receitas de R$ 20,9
bilhões com o aumento das alíquotas da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL) e do Imposto de Renda dos Juros sobre Capital Próprio (JCP),
embora as propostas não tenham sido aprovadas pelo Legislativo.
E a despeito desse evidente descasamento
entre receitas e despesas, os parlamentares ainda acreditam que o País
encerrará o ano com um superávit de R$ 15 bilhões, prova de que o papel, de
fato, aceita tudo. Já a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado estima
um déficit de R$ 15 bilhões.
Atingir um superávit estrutural entre
receitas e despesas só será possível quando houver reformas, e não é isso que
governo e Congresso almejam. Parece absurdo para um país como o Brasil contar
com um Orçamento pouco realista, mas é isso que possibilita ao governo adiar ao
máximo a necessidade de bloquear ou contingenciar despesas.
Para o Executivo, isso significa assegurar
verba para os programas sociais que serão usados como bandeiras eleitorais de
Lula da Silva, e para o Congresso, é o caminho para garantir o pagamento de
suas emendas parlamentares. A contrapartida é uma taxa básica de juros a 14,25%
ao ano, mas isso não parece incomodá-los.
Europa se aproxima da hora da verdade
O Estado de S. Paulo
A Alemanha deu um passo importante para
financiar a defesa. Mas o futuro da Europa dependerá da capacidade de concertar
uma grande estratégia entre segurança, governança e economia
Em 23 de fevereiro, quando Friedrich Merz
venceu as eleições para governar a Alemanha, os EUA, o principal aliado da
Europa desde a 2.ª Guerra, já era visto como um parceiro pouco confiável. Em
questão de semanas, tornou-se um potencial adversário. O presidente dos EUA,
Donald Trump, está cortejando a Rússia, hoje a principal inimiga da Europa, e
culpou a Ucrânia pela guerra, alijou os europeus das mesas de negociação,
prestigiou partidos radicais do continente, ameaça a economia com uma bateria
de tarifas e reivindica territórios soberanos como a Groenlândia. Em seu
primeiro discurso após as eleições, Merz declarou que sua “prioridade absoluta”
seria “fortalecer a Europa o mais rápido possível” e “conquistar a
independência em relação aos EUA”. Agora ele está mostrando quanto leva a sério
essa missão.
Mesmo antes de formar o novo governo, o líder
da democracia cristã concertou com seus prováveis parceiros no governo, os
social-democratas, além dos verdes, a aprovação de mudanças constitucionais que
deslocam o eixo geopolítico alemão. Revertendo décadas de ortodoxia fiscal, o
pacote aprovado pelo Bundestag (Parlamento) franqueará ao governo capacidades
ilimitadas de emprestar dinheiro para defesa, além de criar um fundo de 500
bilhões de euros para investimentos em infraestrutura por 12 anos. “Essa decisão
que estamos tomando hoje sobre a prontidão da defesa de nosso país”, disse
Merz, “é nada menos que o primeiro grande passo para uma nova comunidade de
defesa europeia”.
É um grande passo. Mas, após décadas de
complacência sob o guarda-chuva militar dos EUA, a Europa não só precisa
reaprender a caminhar com as próprias pernas, mas encontrar o caminho mais
curto para a sua autonomia – e tudo isso o mais rápido possível. Enquanto a
aliança transatlântica desmorona a olhos vistos e a Rússia acelera sua economia
de guerra, o drama da Europa é que ela precisa enfrentar uma ameaça existencial
externa ao mesmo tempo em que precisa solucionar uma crise existencial interna.
Mais gastos com defesa são uma condição sine
qua non para a sobrevivência da Europa, e o pacote alemão reconhece essa
urgência. Mas décadas de prudência fiscal garantiram ao país a latitude para se
endividar que será útil agora. Não é assim para outros países, que precisarão
fazer sacrifícios em outras áreas. E a médio e longo prazo, a sustentabilidade
desses gastos dependerá de mais receitas fiscais, que dependerão de mais
crescimento e produtividade.
Há outros desafios interdependentes ao
financiamento no âmbito militar, político e cultural. Na hipótese de os
europeus precisarem enviar tropas para a Ucrânia, não se sabe quantos soldados
cada país enviará nem como os países europeus construirão um guarda-chuva
nuclear para substituir o americano. Não há consenso sobre esses e outros
compromissos de defesa.
A Europa precisará concertar uma estratégia
ampla e coerente interligando segurança, economia e governança com as
ferramentas de uma política notoriamente fragmentada. Para agravar a situação,
esse modelo está sob forte ameaça de partidos extremistas apoiados por Trump e
de interferências do Kremlin. E a Europa precisa rapidamente revitalizar a sua
economia e recuperar a competitividade. Seus líderes precisarão fazer escolhas
difíceis e convencer seus eleitores a fazer sacrifícios incontornáveis, por exemplo
sobre benefícios sociais.
Há muitas oportunidades, mas muitas
incertezas. A União Europeia e o Reino Unido conseguirão estreitar novamente
seus laços após o Brexit? A Europa conseguirá negociar salvaguardas dos EUA
enquanto ergue sua estrutura de defesa? Em que termos reconfigurará sua relação
com a China? Como desenvolverá novos laços com a África ou a América Latina?
Não se trata de ser pessimista. Os países
europeus já se reergueram de grandes choques geopolíticos antes, emergindo mais
coesos, como no fim da 2.ª Guerra ou da guerra fria. Mas os europeus tampouco
podem se dar ao luxo de serem otimistas. Trump despertou o continente de seu
sono geoestratégico. Mas agora virá a parte dura, levantar da cama e ganhar o
dia. A Europa tem recursos e potencialidades para isso, mas ela e o mundo estão
para descobrir se terá a determinação política.
Guarda Civil não é só um nome
O Estado de S. Paulo
TJ-SP barra a criação da Polícia Municipal de
SP e alerta para violações constitucionais
A Justiça barrou a mudança de nome da Guarda
Civil Metropolitana (GCM) para Polícia Municipal de São Paulo, num revés da
Câmara Municipal e da Prefeitura. Como ainda se trata de uma decisão
provisória, os vereadores e o prefeito Ricardo Nunes terão de esperar o
julgamento de mérito, cuja decisão será proferida pelo Órgão Especial da corte,
o que adia o desfecho dessa investida populista das autoridades municipais na
segurança pública.
O imbróglio em torno da repaginação da GCM
começou após o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão equivocada,
afirmar que guardas-civis podem atuar em policiamento ostensivo, patrulhamento,
buscas pessoais e revista de suspeitos. Esses agentes, no entanto, não estão
autorizados a fazer investigação e agora se submetem ao controle externo do
Ministério Público.
Tão logo o STF cometeu esse erro, municípios
começaram a mudar suas legislações para que cada prefeito possa ter a sua
própria “polícia”. Não foi diferente com a maior cidade do País. Com o
entusiasmo de Nunes, que busca uma marca na segurança pública, os vereadores
paulistanos mudaram a Lei Orgânica do Município para chamar a GCM de Polícia
Municipal.
O procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio
de Oliveira e Costa, ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no
TJ-SP. Segundo ele, há violação tanto da Constituição estadual como da
Constituição federal. Como afirma Costa na ADI, “a expressão ‘polícia’ é usada
para órgãos específicos, com atribuições bem delineadas no texto
constitucional, que não se confundem com as das guardas”.
Isso ocorre porque, embora o STF tenha
ampliado as atribuições das guardas e as integrado ao sistema de segurança
pública, em nenhum momento foi dado a legisladores municipais o direito de
rebatizá-las. Não há previsão constitucional para três polícias, quais sejam:
militar, civil e municipal. Se duas polícias hoje em São Paulo mal se entendem
e pouco trabalham juntas, imagine três.
Ademais, tanto a Constituição estadual como a
federal são cristalinas em autorizar os municípios a criarem guardas municipais
“destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”, e não polícias.
Não à toa, a redação é idêntica nos dois textos.
Aos Estados cabe a elaboração de políticas
públicas na área de segurança pública, e aos governadores, o comando das
polícias. Enquanto não houver uma proposta de emenda à Constituição (PEC),
debatida no Congresso Nacional, e não em Câmaras de Vereadores, não há que se
falar em “polícia municipal”.
Por tudo isso, do Órgão Especial do TJ-SP
espera-se o sepultamento dessa mudança feita pela Câmara, declarando a
inconstitucionalidade da iniciativa. Quanto a Nunes e os vereadores
paulistanos, é melhor que trabalhem no bom treinamento dos guardas municipais
após a expansão das atribuições feitas pelo STF, garantam o funcionamento de
uma ouvidoria forte e aberta às queixas dos cidadãos e atentem ao controle
externo exercido pelo Ministério Público. Isso tudo vai muito além de adesivar
viaturas com a logomarca “Polícia Municipal”.
País deve agir contra sarampo
Correio Braziliense
O Brasil precisa reiterar sua tradição de
país comprometido com a vacinação, de modo a intensificar o enfrentamento à
ameaça sanitária
O surgimento de um caso de sarampo no
Distrito Federal reforça o alerta sobre a necessidade imperiosa de atualizar o
cartão de vacinação. Enquanto especialistas advertem da periculosidade da
doença, muito mais transmissível do que a covid-19, a população ainda está
desatenta quanto à importância de se proteger de uma enfermidade que pode matar
ou provocar sequelas graves, como cegueira. Ao abrir mão da tríplice viral,
imunizante que está disponível há décadas nos serviços de saúde, o brasileiro
se esquece de um ditado tão antigo quanto verdadeiro: é melhor prevenir do que
remediar.
Segundo informações da Secretaria de Saúde do
DF, o caso registrado na última semana se denomina "importado". O
paciente é uma mulher, entre 30 e 39 anos, que teria contraído a enfermidade em
viagem internacional. Manchas vermelhas pelo corpo — sinal característico do
sarampo — surgiram três dias após os primeiros sintomas. Segundo a literatura
médica, outras manifestações comuns são febre alta, coriza, irritação nos
olhos, tosse seca e mal-estar intenso. Um trabalho de vigilância para identificar
possível transmissão local tem sido mantido pelas autoridades brasilienses.
Segundo o Ministério da Saúde, há três casos confirmados de sarampo no Brasil,
todos importados. Outros 60 estão sob investigação.
A ameaça epidemiológica remete a um problema
grave de saúde pública: a baixa imunização. Essa situação tornou-se dramática
especialmente na pandemia de covid-19, em particular em 2021, quando
negacionistas de ocasião — a começar pelo então presidente da República, Jair
Bolsonaro — colocavam em dúvida os benefícios da vacina contra o coronavírus. O
imunizante foi essencial para o país vencer a guerra contra a covid-19, mas 700
mil brasileiros pereceram na batalha. O número de vítimas poderia ter sido significativamente
menor se houvesse mais consciência e espírito público.
Nos últimos anos, a evolução do sarampo no
Brasil retrata bem por que a prevenção é essencial. Após ser reconhecido, em
2016, como livre do sarampo, o país voltou a apresentar casos a partir de 2018,
por causa de um surto na Venezuela, somado a um enfraquecimento na cobertura
vacinal. Em 2019, mais de 21 mil casos foram registrados, em um cenário
comparável somente aos anos 1990. O quadro foi revertido somente em 2024,
quando o Brasil reconquistou o título de país imune à doença viral.
Apesar dos avanços, a imunização precisa ser
reforçada. Segundo nota técnica do Ministério da Saúde, o Brasil alcançou a
meta de 95% de cobertura vacinal para a primeira dose da tríplice viral
(sarampo, caxumba e rubéola), mas ainda abaixo do recomendado para a segunda
dose.
É importante ressaltar que a ameaça da doença
viral se constitui um fenômeno global. Em 2024, houve 334 mil ocorrências
registradas em todas as regiões do planeta — um aumento de 6,3% em relação a
2023. África, Ásia Central e Europa concentram a maioria dos casos. Nas
Américas, em 2025, o controle epidemiológico dedica atenção ao surgimento de
sarampo na Argentina, nos Estados Unidos e no Canadá.
Está claro, pois, que o Brasil precisa reiterar sua tradição de país comprometido com a vacinação, de modo a intensificar o enfrentamento à ameaça sanitária. Essa missão não cabe apenas ao governo, mas também à sociedade.
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