domingo, 23 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

A guerra de Trump contra a verdade

O Globo

Ataque a universidades, instituições científicas e imprensa ameaça inaugurar era de trevas e ignorância

Os alvos de Donald Trump em seu segundo mandato eram todos conhecidos, mencionados à exaustão em comícios e redes sociais. São — entre tantos outros, da desregulamentação ambiental ao combate a políticas de diversidade — universidades, instituições científicas, veículos de imprensa, juízes independentes. Ele tem investido com ímpeto inaudito sobre quem identifica como adversário.

Cortou US$ 250 milhões em bolsas e verbas dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), responsáveis por pesquisas contra câncer, Alzheimer, diabetes e outras doenças. Cortou US$ 400 milhões da verba destinada à Universidade Columbia, sob a acusação de leniência com o antissemitismo no campus — outras 59 universidades foram postas sob investigação pelo mesmo motivo. Cortou US$ 175 milhões da Universidade da Pensilvânia, por ela ter permitido a uma atleta transgênero competir em provas de natação femininas.

Cortou metade da força de trabalho do Departamento de Educação, responsável por bolsas para universitários e alunos da educação básica de baixa renda, e determinou por decreto sua extinção, quando isso exige aval do Congresso. Pesquisadores estrangeiros, inclusive brasileiros, têm sido barrados no país. Trump vetou a presença no Salão Oval e no avião presidencial de veículos que se recusam a chamar o Golfo do México de Golfo da América, como determinara em decreto. Abriu as portas a publicações sem relevância, mas ideologicamente afins.

A guerra de Trump é contra as instituições que, nas democracias, se encarregam de investigar e revelar fatos, produzir ciência e conhecimento original. São as instituições de que os Estados Unidos dependeram historicamente para alcançar a liderança científica e tecnológica de que deriva seu poderio econômico e militar. A guerra de Trump é, no fundo, contra a verdade.

Até o momento, a reação da sociedade tem sido tímida. Processos judiciais têm questionado as medidas, mas com pouco efeito. Magistrados têm sido alvos de ameaças. No meio acadêmico, o diretor da Faculdade de Direito da Universidade Georgetown foi um dos poucos a não aceitarem intervenção no currículo. O silêncio decorre do medo.

Trump não parece disposto a obedecer às ordens judiciais que o contrariem. Deportou venezuelanos que alega, sem apresentar provas cabais, integrarem uma gangue e, contrariado por decisão de um juiz, defendeu o impeachment dele. Em rara manifestação pública, o presidente da Suprema Corte, John Roberts, afirmou: “Impeachment não é a resposta apropriada quando se discorda de uma decisão judicial”.

É razoável a preocupação com o antissemitismo nas universidades, com protestos violentos e com a adesão à agenda identitária extremista. Nada disso, porém, é motivo para a truculência. “O governo pode responder às preocupações sem violar a liberdade acadêmica. Deveria usar os processos exigidos por lei”, escreveu de forma corajosa na revista The Atlantic o presidente da Universidade de Princeton, Christopher Eisgruber, enquanto líderes de outras universidades, como Columbia, dão sinal de capitulação. De um mentiroso contumaz como Trump, não se poderia esperar reverência à verdade. Mas o custo será alto. “A liberdade atraiu os melhores acadêmicos do mundo e facilitou a busca pelo conhecimento”, diz Eisgruber. O fim da colaboração entre governo e academia dará início a uma era de trevas e ignorância.

Infraestrutura deficiente de transporte exige maior participação privada

O Globo

Se Brasil mantiver mesmo patamar de investimento de 2024, levará 54 anos para obter uma rede logística razoável

O déficit crônico nas contas públicas tem implicações na vida real que vão além dos efeitos dos juros altos necessários para conter a inflação. O caminhoneiro que padece em estradas malconservadas e o empresário que enfrenta toda sorte de problemas de logística para sua mercadoria chegar aos portos também estão entre as vítimas dos problemas fiscais do governo.

Em artigo no GLOBO, Vanilton Tadini e Roberto Guimarães, dirigentes da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), reuniram dados que expõem a situação crítica que resulta da falta de investimentos em transportes e logística (rodovias, ferrovias, hidrovias, aeroportos e mobilidade urbana). No ano passado, considerando recursos públicos e privados, foram destinados R$ 63 bilhões a infraestrutura, quando teriam sido necessários R$ 264 bilhões. Em dez anos faltarão mais R$ 2 trilhões em investimentos fundamentais para erguer e manter a rede de transportes do país.

Tais números explicam o cenário de rodovias precárias, portos congestionados, trens urbanos e metrôs superlotados. Nem a equivocada opção do Brasil no Pós-Guerra de tornar-se um país sobre pneus — deixando os trilhos e a navegação em plano secundário — garantiu uma malha de estradas decente. Na matriz de transportes, o rodoviário representa 70%. Há 1,8 milhão de quilômetros de rodovias, mas o Japão, cuja área corresponde a uma fração da brasileira, conta com 1,2 milhão. Os Estados Unidos têm 6,6 milhões, e a Índia, com menos da metade do território brasileiro, conta com 6,4 milhões de quilômetros. A situação não melhora quando se analisa a qualidade das rodovias. Apenas 220 mil quilômetros, 12,2% do total das rodovias federais, estaduais e municipais, são pavimentados. E 32 mil quilômetros, ou 14,5%, estão sob administração privada. São em geral as mais bem avaliadas pelos usuários.

Mesmo que o poder público quisesse voltar a investir em estradas, não teria condição, tamanha a crise fiscal. E, ainda que o poder público pudesse investir, a melhor alternativa seria avançar com as concessões. O agravamento dos eventos climáticos extremos aumentará a frequência de inundações, queda de pontes e barreiras, com vítimas e interrupção do tráfego. Não há como tornar as rodovias mais seguras sem investimento.

As concessões têm avançado. No final do ano, 19,1% das estradas pavimentadas estarão sob gestão privada — 32% das federais e 15,4% das estaduais. Ainda assim, restará 1,6 milhão de quilômetros com o setor público, dos quais apenas 178 mil quilômetros são pavimentados. A infraestrutura do país é um encadeamento de gargalos. Se continuarmos a investir em transporte e logística os mesmos R$ 63 bilhões de 2024, seriam necessários 54 anos para obter uma rede adequada. Não faltam argumentos para defender a maior presença da iniciativa privada no setor. Tarefa dos governos.

Democracia brasileira, 40, pode se fortalecer

Folha de S. Paulo

País vive mais longo período sob o regime; julgamento de Bolsonaro e demais acusados de golpismo no STF deve ser técnico

O Brasil merece celebrar o aniversário da redemocratização. Há 40 anos, em 15 de março de 1985, o general João Batista Figueiredo, último dos generais presidentes da ditadura militar, deixou o poder.

Há algo de arbitrário nesse marco. Não seria absurdo antecipá-lo em um par de anos, a partir da constatação de que, após a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979, e as eleições diretas para governador, em 1982, o país já vivia, na prática, um clima de liberdades públicas. A campanha pelas diretas (1983-84), apesar de derrotada no Congresso, transcorreu sem repressão.

Por outro lado, puristas podem alegar que máculas ditatoriais, como senadores biônicos e a Constituição autoritária de 1967, se projetaram para além de 1985. No limite, seria possível afirmar que a democracia só foi plenamente restabelecida em 1990, já sob a nova Carta e com a posse do primeiro presidente eleito diretamente após o hiato ditatorial.

Qualquer que seja o caso, o Brasil vive seu mais longo período da história sob um regime democrático. Há, é claro, falhas pontuais, dado que imperfeiçoes ocorrem mesmo nas democracias mais maduras, mas o regime de quatro décadas mostra vigor.

No plano teórico, o único elemento que pode conferir legitimidade a um governo é o consentimento dos governados. E só a democracia, em suas múltiplas configurações, é logicamente capaz de proporcionar isso.

No plano prático, comparações internacionais mostram que democracias tendem a sair-se melhor do que outras formas de governo em várias dimensões. Elas são muito superiores na promoção de direitos individuais e coletivos, envolvem-se em menos conflitos e costumam produzir maior prosperidade e melhor distribuição de renda.

É nos dois últimos aspectos que o Brasil ainda não se sai bem.

Democracias, a exemplo de outras instituições valiosas, precisam ser cultivadas e protegidas. O fato de o país contar cada vez menos pessoas com memória viva dos horrores ditatoriais seria fator de preocupação. Os cientistas políticos, porém, nos reservam uma boa notícia: um dos fatores protetivos da democracia é seu tempo de existência.

Também é animador constatar que sobrevivemos bem à recente ofensiva contra o regime e o resultado de uma eleição sob Jair Bolsonaro (PL), cuja extensão está prestes a ser examinada pelo Supremo Tribunal Federal. Apologistas do arbítrio militar, que não o reconhecem como tal, serão processados e julgados com o amplo direito à defesa inexistente naquele período.

Bastaria essa diferença para desmoralizar a tese bolsonarista de que o país vive uma ditadura judicial, como proclama o filho do ex-presidente, ora encenando a condição de exilado político nos EUA. O STF, que de fato tem cometido excessos, pode fortalecer a democracia com um julgamento técnico e equilibrado dos acusados de golpismo.

Ano de sacrifício termina com recuperação na Argentina

Folha de S. Paulo

Economia caiu 1,7% em 2024, mas com alta no 4ª trimestre e redução de pobreza; desafio é recompor reservas em dólar

Depois da forte queda da atividade e da piora dos indicadores de pobreza no primeiro semestre de 2024, a Argentina encerrou o ano em situação mais positiva —não sem riscos de recaída, porém.

O Produto Interno Bruto (PIB) teve contração anual de 1,7% no ano passado, mas houve recuperação na segunda metade do ano, com altas de 4,3% no terceiro trimestre e de 1,4% no quarto, encerrando uma recessão que castigava o país desde o final de 2023.

Tal desempenho, impulsionado por consumo privado, investimentos e exportações, especialmente no setor agrícola, oferece um alento ao governo de Javier Milei, que completou seu primeiro ano com resultados melhores que as projeções iniciais.

A vitória, no entanto, é insuficiente diante dos indicadores sociais ruins. A pobreza, que atingiu 54,8% da população no primeiro trimestre de 2024, caiu a ainda muito altos 38,9% no terceiro trimestre, patamar próximo ao observado em 2023.

E a inflação, embora tenha desacelerado de 211,4% para 117,8% no ano passado, segue em níveis elevados, pressionando o poder de compra dos argentinos. É positiva, mesmo assim, a tendência de altas mensais menores.

As perspectivas parecem favoráveis em 2025. A projeção mais recente da OCDE é de crescimento de 5,7%, que, se confirmado, posicionaria a Argentina como uma das economias de maior expansão na América Latina.

Consolidar esse cenário, porém, depende da negociação de um novo empréstimo com o FMI, que pode chegar a US$ 20 bilhões, tida como essencial para reforçar as reservas do Banco Central.

Parte da diminuição da carestia só foi possível graças à grande valorização real (descontada a inflação) do peso, o que compromete a competitividade das exportações e não é sustentável. Corrigir o problema não será fácil. A remoção dos controles cambiais é uma bandeira de Milei, mas o processo é delicado.

Uma liberalização abrupta poderia disparar o dólar e reavivar a inflação. Um novo empréstimo traria dólares para as reservas e daria margem para uma desvalorização controlada do peso, mas virá com condições rigorosas, como metas fiscais e reformas.

Milei buscará ainda manter sua popularidade —que segue acima de 40% apesar de não poucas dificuldades e uma tendência recente de queda. A maneira mais virtuosa de fazê-lo é manter a redução da pobreza e da inflação. Resultantes de anos de má gestão, os sacrifícios do país, ora refletidos em protestos de aposentados, não podem ser em vão.

Governo premia a pirraça do Congresso

O Estado de S. Paulo

Em acordo com Executivo, Congresso aprova mais um Orçamento com receitas e despesas pouco realistas e garante incríveis R$ 61,7 bi em recursos para viabilizar pagamento de emendas

Para quem levou meses para votar o Orçamento deste ano, o Legislativo demonstrou uma presteza ímpar na última quinta-feira. Em questão de horas, a Comissão Mista de Orçamento e o Congresso aprovaram a proposta após um acordo com a ministra Gleisi Hoffmann, que recentemente assumiu a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. Pudera. A negociação custou a bagatela de R$ 61,7 bilhões.

O Congresso fixou a verba reservada para as emendas parlamentares em R$ 50,5 bilhões. Mas deputados e senadores também terão voz na indicação de R$ 11,2 bilhões em despesas discricionárias do Executivo. Esses recursos poderão ser usados para retomar emendas de anos anteriores, as quais o governo havia se comprometido a pagar nas negociações para aprovação do pacote fiscal, no fim do ano passado, mas que haviam sido suspensas por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, por falta de transparência a respeito da autoria ou do destino das indicações.

O pacto abriu caminho para destravar a apreciação da peça orçamentária, que caminhava para entrar no mês de abril sem ser aprovada. Sem o Orçamento, o governo só podia executar uma fração dos gastos previstos para o ano, equivalente a 1/18 avos. O boicote do Congresso chegou ao ponto de prejudicar a liberação de financiamentos do Plano Safra aos agricultores e exigiu do governo a edição de uma medida provisória, com abertura de crédito extraordinário, para evitar que as operações fossem suspensas.

Agora que o Orçamento foi finalmente aprovado, problemas como esse não devem se repetir, mas outros certamente surgirão. A proposta, afinal, continua com uma previsão otimista de receitas e uma projeção subestimada de despesas, e será difícil remanejar recursos para garantir que todos os gastos previstos sejam realmente executados.

O Pé-de-Meia, que concede bolsas a estudantes inscritos no Cadastro Único para incentivá-los a concluir os estudos e a fazerem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tem apenas R$ 1 bilhão para este ano. O programa ainda precisa de R$ 13 bilhões, a serem incluídos depois, por meio de um projeto de lei ou eventual remanejamento.

O Bolsa Família teve a verba cortada em R$ 7,7 bilhões para garantir dinheiro para o Auxílio Gás. Ninguém, no entanto, espera uma redução no número de famílias beneficiadas, mas apenas um pente-fino para apurar irregularidades.

Gastos com aposentadorias e pensões, Benefício de Prestação Continuada (BPC), seguro-desemprego e abono salarial foram suplementados, mas os valores reservados continuam insuficientes para arcar com o gasto previsto para o ano todo.

Quanto à arrecadação, o Orçamento projeta uma arrecadação de R$ 28,5 bilhões com julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ainda que eles tenham rendido apenas R$ 307,8 milhões ao governo no ano passado.

Também estão previstas receitas de R$ 20,9 bilhões com o aumento das alíquotas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto de Renda dos Juros sobre Capital Próprio (JCP), embora as propostas não tenham sido aprovadas pelo Legislativo.

E a despeito desse evidente descasamento entre receitas e despesas, os parlamentares ainda acreditam que o País encerrará o ano com um superávit de R$ 15 bilhões, prova de que o papel, de fato, aceita tudo. Já a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado estima um déficit de R$ 15 bilhões.

Atingir um superávit estrutural entre receitas e despesas só será possível quando houver reformas, e não é isso que governo e Congresso almejam. Parece absurdo para um país como o Brasil contar com um Orçamento pouco realista, mas é isso que possibilita ao governo adiar ao máximo a necessidade de bloquear ou contingenciar despesas.

Para o Executivo, isso significa assegurar verba para os programas sociais que serão usados como bandeiras eleitorais de Lula da Silva, e para o Congresso, é o caminho para garantir o pagamento de suas emendas parlamentares. A contrapartida é uma taxa básica de juros a 14,25% ao ano, mas isso não parece incomodá-los.

Europa se aproxima da hora da verdade

O Estado de S. Paulo

A Alemanha deu um passo importante para financiar a defesa. Mas o futuro da Europa dependerá da capacidade de concertar uma grande estratégia entre segurança, governança e economia

Em 23 de fevereiro, quando Friedrich Merz venceu as eleições para governar a Alemanha, os EUA, o principal aliado da Europa desde a 2.ª Guerra, já era visto como um parceiro pouco confiável. Em questão de semanas, tornou-se um potencial adversário. O presidente dos EUA, Donald Trump, está cortejando a Rússia, hoje a principal inimiga da Europa, e culpou a Ucrânia pela guerra, alijou os europeus das mesas de negociação, prestigiou partidos radicais do continente, ameaça a economia com uma bateria de tarifas e reivindica territórios soberanos como a Groenlândia. Em seu primeiro discurso após as eleições, Merz declarou que sua “prioridade absoluta” seria “fortalecer a Europa o mais rápido possível” e “conquistar a independência em relação aos EUA”. Agora ele está mostrando quanto leva a sério essa missão.

Mesmo antes de formar o novo governo, o líder da democracia cristã concertou com seus prováveis parceiros no governo, os social-democratas, além dos verdes, a aprovação de mudanças constitucionais que deslocam o eixo geopolítico alemão. Revertendo décadas de ortodoxia fiscal, o pacote aprovado pelo Bundestag (Parlamento) franqueará ao governo capacidades ilimitadas de emprestar dinheiro para defesa, além de criar um fundo de 500 bilhões de euros para investimentos em infraestrutura por 12 anos. “Essa decisão que estamos tomando hoje sobre a prontidão da defesa de nosso país”, disse Merz, “é nada menos que o primeiro grande passo para uma nova comunidade de defesa europeia”.

É um grande passo. Mas, após décadas de complacência sob o guarda-chuva militar dos EUA, a Europa não só precisa reaprender a caminhar com as próprias pernas, mas encontrar o caminho mais curto para a sua autonomia – e tudo isso o mais rápido possível. Enquanto a aliança transatlântica desmorona a olhos vistos e a Rússia acelera sua economia de guerra, o drama da Europa é que ela precisa enfrentar uma ameaça existencial externa ao mesmo tempo em que precisa solucionar uma crise existencial interna.

Mais gastos com defesa são uma condição sine qua non para a sobrevivência da Europa, e o pacote alemão reconhece essa urgência. Mas décadas de prudência fiscal garantiram ao país a latitude para se endividar que será útil agora. Não é assim para outros países, que precisarão fazer sacrifícios em outras áreas. E a médio e longo prazo, a sustentabilidade desses gastos dependerá de mais receitas fiscais, que dependerão de mais crescimento e produtividade.

Há outros desafios interdependentes ao financiamento no âmbito militar, político e cultural. Na hipótese de os europeus precisarem enviar tropas para a Ucrânia, não se sabe quantos soldados cada país enviará nem como os países europeus construirão um guarda-chuva nuclear para substituir o americano. Não há consenso sobre esses e outros compromissos de defesa.

A Europa precisará concertar uma estratégia ampla e coerente interligando segurança, economia e governança com as ferramentas de uma política notoriamente fragmentada. Para agravar a situação, esse modelo está sob forte ameaça de partidos extremistas apoiados por Trump e de interferências do Kremlin. E a Europa precisa rapidamente revitalizar a sua economia e recuperar a competitividade. Seus líderes precisarão fazer escolhas difíceis e convencer seus eleitores a fazer sacrifícios incontornáveis, por exemplo sobre benefícios sociais.

Há muitas oportunidades, mas muitas incertezas. A União Europeia e o Reino Unido conseguirão estreitar novamente seus laços após o Brexit? A Europa conseguirá negociar salvaguardas dos EUA enquanto ergue sua estrutura de defesa? Em que termos reconfigurará sua relação com a China? Como desenvolverá novos laços com a África ou a América Latina?

Não se trata de ser pessimista. Os países europeus já se reergueram de grandes choques geopolíticos antes, emergindo mais coesos, como no fim da 2.ª Guerra ou da guerra fria. Mas os europeus tampouco podem se dar ao luxo de serem otimistas. Trump despertou o continente de seu sono geoestratégico. Mas agora virá a parte dura, levantar da cama e ganhar o dia. A Europa tem recursos e potencialidades para isso, mas ela e o mundo estão para descobrir se terá a determinação política.

Guarda Civil não é só um nome

O Estado de S. Paulo

TJ-SP barra a criação da Polícia Municipal de SP e alerta para violações constitucionais

A Justiça barrou a mudança de nome da Guarda Civil Metropolitana (GCM) para Polícia Municipal de São Paulo, num revés da Câmara Municipal e da Prefeitura. Como ainda se trata de uma decisão provisória, os vereadores e o prefeito Ricardo Nunes terão de esperar o julgamento de mérito, cuja decisão será proferida pelo Órgão Especial da corte, o que adia o desfecho dessa investida populista das autoridades municipais na segurança pública.

O imbróglio em torno da repaginação da GCM começou após o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão equivocada, afirmar que guardas-civis podem atuar em policiamento ostensivo, patrulhamento, buscas pessoais e revista de suspeitos. Esses agentes, no entanto, não estão autorizados a fazer investigação e agora se submetem ao controle externo do Ministério Público.

Tão logo o STF cometeu esse erro, municípios começaram a mudar suas legislações para que cada prefeito possa ter a sua própria “polícia”. Não foi diferente com a maior cidade do País. Com o entusiasmo de Nunes, que busca uma marca na segurança pública, os vereadores paulistanos mudaram a Lei Orgânica do Município para chamar a GCM de Polícia Municipal.

O procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no TJ-SP. Segundo ele, há violação tanto da Constituição estadual como da Constituição federal. Como afirma Costa na ADI, “a expressão ‘polícia’ é usada para órgãos específicos, com atribuições bem delineadas no texto constitucional, que não se confundem com as das guardas”.

Isso ocorre porque, embora o STF tenha ampliado as atribuições das guardas e as integrado ao sistema de segurança pública, em nenhum momento foi dado a legisladores municipais o direito de rebatizá-las. Não há previsão constitucional para três polícias, quais sejam: militar, civil e municipal. Se duas polícias hoje em São Paulo mal se entendem e pouco trabalham juntas, imagine três.

Ademais, tanto a Constituição estadual como a federal são cristalinas em autorizar os municípios a criarem guardas municipais “destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”, e não polícias. Não à toa, a redação é idêntica nos dois textos.

Aos Estados cabe a elaboração de políticas públicas na área de segurança pública, e aos governadores, o comando das polícias. Enquanto não houver uma proposta de emenda à Constituição (PEC), debatida no Congresso Nacional, e não em Câmaras de Vereadores, não há que se falar em “polícia municipal”.

Por tudo isso, do Órgão Especial do TJ-SP espera-se o sepultamento dessa mudança feita pela Câmara, declarando a inconstitucionalidade da iniciativa. Quanto a Nunes e os vereadores paulistanos, é melhor que trabalhem no bom treinamento dos guardas municipais após a expansão das atribuições feitas pelo STF, garantam o funcionamento de uma ouvidoria forte e aberta às queixas dos cidadãos e atentem ao controle externo exercido pelo Ministério Público. Isso tudo vai muito além de adesivar viaturas com a logomarca “Polícia Municipal”.

País deve agir contra sarampo

Correio Braziliense

O Brasil precisa reiterar sua tradição de país comprometido com a vacinação, de modo a intensificar o enfrentamento à ameaça sanitária

O surgimento de um caso de sarampo no Distrito Federal reforça o alerta sobre a necessidade imperiosa de atualizar o cartão de vacinação. Enquanto especialistas advertem da periculosidade da doença, muito mais transmissível do que a covid-19, a população ainda está desatenta quanto à importância de se proteger de uma enfermidade que pode matar ou provocar sequelas graves, como cegueira. Ao abrir mão da tríplice viral, imunizante que está disponível há décadas nos serviços de saúde, o brasileiro se esquece de um ditado tão antigo quanto verdadeiro: é melhor prevenir do que remediar. 

Segundo informações da Secretaria de Saúde do DF, o caso registrado na última semana se denomina "importado". O paciente é uma mulher, entre 30 e 39 anos, que teria contraído a enfermidade em viagem internacional. Manchas vermelhas pelo corpo — sinal característico do sarampo — surgiram três dias após os primeiros sintomas. Segundo a literatura médica, outras manifestações comuns são febre alta, coriza, irritação nos olhos, tosse seca e mal-estar intenso. Um trabalho de vigilância para identificar possível transmissão local tem sido mantido pelas autoridades brasilienses. Segundo o Ministério da Saúde, há três casos confirmados de sarampo no Brasil, todos importados. Outros 60 estão sob investigação.

A ameaça epidemiológica remete a um problema grave de saúde pública: a baixa imunização. Essa situação tornou-se dramática especialmente na pandemia de covid-19, em particular em 2021, quando negacionistas de ocasião — a começar pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro — colocavam em dúvida os benefícios da vacina contra o coronavírus. O imunizante foi essencial para o país vencer a guerra contra a covid-19, mas 700 mil brasileiros pereceram na batalha. O número de vítimas poderia ter sido significativamente menor se houvesse mais consciência e espírito público. 

Nos últimos anos, a evolução do sarampo no Brasil retrata bem por que a prevenção é essencial. Após ser reconhecido, em 2016, como livre do sarampo, o país voltou a apresentar casos a partir de 2018, por causa de um surto na Venezuela, somado a um enfraquecimento na cobertura vacinal. Em 2019, mais de 21 mil casos foram registrados, em um cenário comparável somente aos anos 1990. O quadro foi revertido somente em 2024, quando o Brasil reconquistou o título de país imune à doença viral.

Apesar dos avanços, a imunização precisa ser reforçada. Segundo nota técnica do Ministério da Saúde, o Brasil alcançou a meta de 95% de cobertura vacinal para a primeira dose da tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), mas ainda abaixo do recomendado para a segunda dose. 

É importante ressaltar que a ameaça da doença viral se constitui um fenômeno global. Em 2024, houve 334 mil ocorrências registradas em todas as regiões do planeta — um aumento de 6,3% em relação a 2023. África, Ásia Central e Europa concentram a maioria dos casos. Nas Américas, em 2025, o controle epidemiológico dedica atenção ao surgimento de sarampo na Argentina, nos Estados Unidos e no Canadá. 

Está claro, pois, que o Brasil precisa reiterar sua tradição de país comprometido com a vacinação, de modo a intensificar o enfrentamento à ameaça sanitária. Essa missão não cabe apenas ao governo, mas também à sociedade. 


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