domingo, 23 de março de 2025

Uma decisão histórica - Raul Jungmann*

Correio Braziliense

Decisão do ministro Flávio Dino surge como um alento que pode contribuir efetivamente para o ordenamento na utilização de recursos hídricos e minerais

Num ano em que se discute como será o nosso futuro, em como as mudanças climáticas já afetam a qualidade de vida no planeta, uma decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), surge como um alento que pode contribuir efetivamente para o ordenamento na utilização de recursos hídricos e minerais, e a efetiva e justa distribuição de benefícios e pagamentos às populações indígenas pelo seu uso.

O ministro Flávio Dino determinou que as comunidades indígenas afetadas pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA), devem receber 100% do valor repassado pela concessionária à União como participação nos resultados do empreendimento. 

Apesar de a decisão responder a uma ação específica, referente ao pagamento aos indígenas do Médio Xingu de participação nos resultados da UHE Belo Monte, a concessão de eficácia erga omnes à vista de possíveis casos similares extrapola o objeto da ação, podendo ser aplicado a outros aproveitamentos energéticos de recursos hídricos.

Mais ainda, a decisão, ao dar um prazo de 24 meses para que os artigos 176, § 1º e 231, §§ 3º e 6º da Constituição Federal estejam regulamentados, aprovados e publicados, e não prever somente o seu encaminhamento no âmbito do Congresso Nacional, acaba por suprir uma lacuna de regulamentação de 37 anos!

A amplitude dessa decisão vai bem além de reparar essa omissão, ao viabilizar a aplicação de instrumentos importantíssimos para a proteção da natureza, assegurar os direitos indígenas e contribuir no combate à ilegalidade e aos crimes praticados contra o meio ambiente e os direitos das populações originárias. 

A omissão legislativa verificada, quanto à edição de leis reclamadas pelos artigos 176, § 1º, e 231, §§ 3º e 6º da Constituição Federal (CF), impede que os povos indígenas recebam participação nos resultados de empreendimentos hidrelétricos, como no caso de Belo Monte, bem como de empreendimentos de lavra e pesquisa de recursos minerais, também compreendidas nos artigos referenciados. 

Essa regulamentação contribui para que a Amazônia possa ser desenvolvida de forma justa e sustentável social, cultural e ambientalmente, por proporcionar a devida retribuição a essas populações e viabilizar a permanência em seus territórios, com as condições econômicas de se fixarem, de produzirem e de progredirem. 

Essa ocupação e uso do território e a disponibilização de meios de manutenção e produção representam uma ferramenta de prevenção à ocupação ilegal e irregular, e, portanto, de combate à grilagem, ao desmatamento, ao garimpo ilegal, ao "narco garimpo" e à crescente atuação de organizações criminosas. 

Tais organizações criminosas operam o financiamento, a logística e a lavagem de dinheiro em atividades irregulares, como no garimpo ilegal, na grilagem de terras, na exploração madeireira ilegal e no desmatamento, pressionando os territórios indígenas permanentemente. Com as práticas atualmente verificadas, os povos indígenas ficam com pesados ônus, sem benefícios, levando muitos a se associarem ao garimpo ilegal. 

Configura, portanto, crime. Essencialmente, quando se fala em desmatamento na Amazônia, estamos lidando com ilegalidade. A exploração ilegal de ouro na Amazônia tem provocado a destruição da floresta e de vidas, sobretudo de populações indígenas. Já as medidas adotadas para reduzir o desmatamento, como demonstra a experiência, não prejudicaram a produção agropecuária, a mineração ou outras atividades econômicas regularizadas.

De acordo com o Instituto Igarapé, foi de 495% o crescimento da área ocupada pela mineração ilegal dentro de Terras Indígenas na Amazônia entre 2010 e 2020; e 126 mil hectares de Floresta Amazônica foram desmatados em 2021, um aumento de 65% na comparação com 2018, segundo o MapBiomas.

A presente decisão, ainda a ser referendada pelo Pleno, portanto, significa um marco em relação à indenização e participação das populações indígenas nos resultados da exploração energética de recursos hídricos e da lavra de recursos minerais, dando-lhes os meios para a gestão dos seus territórios e para o seu desenvolvimento, com sustentabilidade.  

Em audiência com a ministra Marina Silva, afirmamos que a regulamentação do artigo 231 da CF não é prioridade para a mineração, mas para a  floresta, a segurança da Amazônia, o Brasil e o clima. 

*Foi ministro da Defesa e da Segurança Pública. Diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram)

 

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