- Valor Econômico
O Brasil não se emenda, e as histórias quase sempre se repetem
Essas propostas cabem em qualquer
plataforma do Brasil de hoje, seja de esquerda, seja de direita. Mas elas não
são de nenhum político atual. Foram itens do programa de governo anunciado por
Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1930, um dia antes de assumir o poder com um
golpe civil-militar que o manteria na Presidência da República durante 15 anos.
Passando por São Paulo em comboio ferroviário a caminho do Rio para assumir o
poder, Getúlio fez uma parada na Estação da Luz e foi ao Palácio dos Campos
Elíseos, então sede do governo do Estado. Nas escadarias, discursou para até 7
mil pessoas, segundo estimativa dos jornais da época, e descreveu os principais
pontos de seu futuro governo.
A plataforma, naturalmente, não se
limitava a esses seis pontos. Ditador assumido, ele anunciou e cumpriu suas
promessas totalitárias: suspendeu a Constituição, dissolveu o Congresso, as
assembleias e as câmaras municipais, destituiu governantes dos Estados e
prefeitos, eliminou prerrogativas individuais, instituiu um tribunal de exceção
para julgar crimes políticos e impôs censura à imprensa. Enfim, um ditador com
D maiúsculo que iria fazer germinar a revolução constitucionalista de 1932.
Leitura prazerosa e instrutiva para tempos de isolamento, a extensa obra
“Getúlio”, de Lira Neto, detalha minuciosamente esses momentos da República.
Fica claro ao se estudar a história
política brasileira do século XX que os problemas do país se arrastam durante
décadas, por mais bem intencionados que tenham sido alguns governos posteriores
à República Velha.
O primeiro item de um programa de governo já era, há 90 anos, a reforma
tributária, hoje ainda em discussão no Congresso Nacional e que, pelo visto,
não será ampla. O combate à corrupção já estava entre os principais itens
citados em 1930 e assim continua hoje. A reforma eleitoral, uma necessidade
atual para limitar o número de partidos e a influência do poder econômico nas
eleições, já era um clamor. Avançamos muito nesses anos na área eleitoral,
porque o voto não era secreto, as mulheres não votavam nem eram votadas, assim
como os analfabetos. E os eleitos eram escolhidos por atas das juntas
apuradoras, uma aberração. Mas o impacto do poder econômico na escolha dos
políticos continua enorme, embora mais disfarçado e sofisticado.
Os candidatos a presidente têm usado
constantemente o discurso de combate à corrupção para se eleger - o tema é e
quase sempre foi um excelente cabo eleitoral (ou ditatorial), em geral
abandonado no meio do mandato. Getúlio o usou para dar o golpe em 1930 e depois
para se eleger com voto popular, em 1950. Jânio Quadros, em 1960, impulsionou
sua campanha com a marchinha “Varre, varre, vassourinha!/Varre, varre a bandalheira!/Que
o povo já tá cansado de sofrer dessa maneira”. Os militares deram o golpe de
1964 com o discurso do combate à corrupção e à subversão. Fernando Collor se
elegeu como o político novo que iria acabar com os marajás sugadores dos
recursos públicos. Fernando Henrique, Lula e Dilma deixaram mais para segundo
plano o discurso anticorrupção, até porque tinham enormes desafios na área da
economia. Mas Jair Bolsonaro voltou à carga, usando bastante a pecha da
corrupção e se apropriando da Operação Lava-Jato para atingir os adversários
políticos.
Getúlio se tornou ditador em plena crise
econômica global, muito similar em sua magnitude à que ocorre hoje. Nossa
democracia, não tão consolidada quanto se imagina, terá de ser suficientemente
forte para impedir que o totalitarismo seja, outra vez, a via por onde passarão
as medidas necessárias para superar a crise e administrar a pós-pandemia.
Corrida pela vacina
Mudando de assunto, mas
nem tanto, a grande corrida brasileira (e global) de hoje não é contra a
corrupção, mas sim a da vacina contra a covid-19. Há quase duas centenas de
vacinas em desenvolvimento pelo mundo, em todos os continentes. Os russos,
afoitos, prometem começar a imunizar as pessoas a partir de setembro. Chineses,
americanos, ingleses e vários laboratórios pelo mundo já estão no fim da fase
de testes, incentivados pelos governos e também por doações da iniciativa
privada.
No Brasil, é fácil observar que os
políticos espertos já perceberam que essa corrida pode oferecer um magnífico
troféu na linha de chegada.
O presidente Jair Bolsonaro já apostou
suas fichas na vacina da Universidade de Oxford. Liberou quase R$ 2 bilhões.
João Doria, governador de São Paulo, que tem o competente Instituto Butantan em
suas mãos, trabalha arduamente para conseguir ser o primeiro a oferecer 240
milhões de doses da vacina chinesa da Sinovac para a “totalidade dos
brasileiros”, não apenas para os paulistas, e “de graça”, como gosta de
enfatizar. Evidentemente, eles não podem ser criticados por isso. Trata-se de
uma causa nobre, porque a vacina é a grande esperança dos brasileiros e de toda
a humanidade neste momento para vencer a pandemia.
Fernando Henrique Cardoso também não podia ser criticado quando apadrinhou o lançamento do Plano Real. Ele não é economista nem fez um único cálculo para sustentar o plano macroeconômico. Cercou-se de técnicos. Entretanto, ao patrocinar o programa que venceu a inflação, a maior aspiração da sociedade brasileira na época, passou a ser um candidato imbatível ao Planalto. A vacina pode ser hoje aquilo que o Real foi para FHC em 1994.
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