terça-feira, 11 de agosto de 2020

Pedro Cafardo - Corrida da vacina no país oferece um belo troféu

- Valor Econômico

O Brasil não se emenda, e as histórias quase sempre se repetem

Essas propostas cabem em qualquer plataforma do Brasil de hoje, seja de esquerda, seja de direita. Mas elas não são de nenhum político atual. Foram itens do programa de governo anunciado por Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1930, um dia antes de assumir o poder com um golpe civil-militar que o manteria na Presidência da República durante 15 anos.

Passando por São Paulo em comboio ferroviário a caminho do Rio para assumir o poder, Getúlio fez uma parada na Estação da Luz e foi ao Palácio dos Campos Elíseos, então sede do governo do Estado. Nas escadarias, discursou para até 7 mil pessoas, segundo estimativa dos jornais da época, e descreveu os principais pontos de seu futuro governo.

A plataforma, naturalmente, não se limitava a esses seis pontos. Ditador assumido, ele anunciou e cumpriu suas promessas totalitárias: suspendeu a Constituição, dissolveu o Congresso, as assembleias e as câmaras municipais, destituiu governantes dos Estados e prefeitos, eliminou prerrogativas individuais, instituiu um tribunal de exceção para julgar crimes políticos e impôs censura à imprensa. Enfim, um ditador com D maiúsculo que iria fazer germinar a revolução constitucionalista de 1932. Leitura prazerosa e instrutiva para tempos de isolamento, a extensa obra “Getúlio”, de Lira Neto, detalha minuciosamente esses momentos da República.

Fica claro ao se estudar a história política brasileira do século XX que os problemas do país se arrastam durante décadas, por mais bem intencionados que tenham sido alguns governos posteriores à República Velha.

O primeiro item de um programa de governo já era, há 90 anos, a reforma tributária, hoje ainda em discussão no Congresso Nacional e que, pelo visto, não será ampla. O combate à corrupção já estava entre os principais itens citados em 1930 e assim continua hoje. A reforma eleitoral, uma necessidade atual para limitar o número de partidos e a influência do poder econômico nas eleições, já era um clamor. Avançamos muito nesses anos na área eleitoral, porque o voto não era secreto, as mulheres não votavam nem eram votadas, assim como os analfabetos. E os eleitos eram escolhidos por atas das juntas apuradoras, uma aberração. Mas o impacto do poder econômico na escolha dos políticos continua enorme, embora mais disfarçado e sofisticado.

Os candidatos a presidente têm usado constantemente o discurso de combate à corrupção para se eleger - o tema é e quase sempre foi um excelente cabo eleitoral (ou ditatorial), em geral abandonado no meio do mandato. Getúlio o usou para dar o golpe em 1930 e depois para se eleger com voto popular, em 1950. Jânio Quadros, em 1960, impulsionou sua campanha com a marchinha “Varre, varre, vassourinha!/Varre, varre a bandalheira!/Que o povo já tá cansado de sofrer dessa maneira”. Os militares deram o golpe de 1964 com o discurso do combate à corrupção e à subversão. Fernando Collor se elegeu como o político novo que iria acabar com os marajás sugadores dos recursos públicos. Fernando Henrique, Lula e Dilma deixaram mais para segundo plano o discurso anticorrupção, até porque tinham enormes desafios na área da economia. Mas Jair Bolsonaro voltou à carga, usando bastante a pecha da corrupção e se apropriando da Operação Lava-Jato para atingir os adversários políticos.

Getúlio se tornou ditador em plena crise econômica global, muito similar em sua magnitude à que ocorre hoje. Nossa democracia, não tão consolidada quanto se imagina, terá de ser suficientemente forte para impedir que o totalitarismo seja, outra vez, a via por onde passarão as medidas necessárias para superar a crise e administrar a pós-pandemia.

Corrida pela vacina

Mudando de assunto, mas nem tanto, a grande corrida brasileira (e global) de hoje não é contra a corrupção, mas sim a da vacina contra a covid-19. Há quase duas centenas de vacinas em desenvolvimento pelo mundo, em todos os continentes. Os russos, afoitos, prometem começar a imunizar as pessoas a partir de setembro. Chineses, americanos, ingleses e vários laboratórios pelo mundo já estão no fim da fase de testes, incentivados pelos governos e também por doações da iniciativa privada.

No Brasil, é fácil observar que os políticos espertos já perceberam que essa corrida pode oferecer um magnífico troféu na linha de chegada.

O presidente Jair Bolsonaro já apostou suas fichas na vacina da Universidade de Oxford. Liberou quase R$ 2 bilhões. João Doria, governador de São Paulo, que tem o competente Instituto Butantan em suas mãos, trabalha arduamente para conseguir ser o primeiro a oferecer 240 milhões de doses da vacina chinesa da Sinovac para a “totalidade dos brasileiros”, não apenas para os paulistas, e “de graça”, como gosta de enfatizar. Evidentemente, eles não podem ser criticados por isso. Trata-se de uma causa nobre, porque a vacina é a grande esperança dos brasileiros e de toda a humanidade neste momento para vencer a pandemia.

Fernando Henrique Cardoso também não podia ser criticado quando apadrinhou o lançamento do Plano Real. Ele não é economista nem fez um único cálculo para sustentar o plano macroeconômico. Cercou-se de técnicos. Entretanto, ao patrocinar o programa que venceu a inflação, a maior aspiração da sociedade brasileira na época, passou a ser um candidato imbatível ao Planalto. A vacina pode ser hoje aquilo que o Real foi para FHC em 1994.

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