- O Estado de S.Paulo
Bom
senso recomenda menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional
Em 90 dias o mundo conhecerá o futuro presidente dos EUA. As pesquisas
de opinião pública indicam hoje uma vitória de Joe Biden sobre Donald Trump,
com margem de cerca de 10 pontos porcentuais. Esse número daria a vitória a
Biden caso a eleição fosse majoritária. Cabe, porém, um elemento de cautela,
visto que nos EUA a eleição para presidente é decidida em colégio eleitoral,
composto por delegados de todos os Estados, eleitos a partir dos resultados nas
votações locais. Refletindo a profunda divisão da sociedade americana, a
eleição deverá ser decidida nos Estados que oscilam entre conservadores e
democratas, (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Flórida, Idaho) e Trump ameaça
contestá-la.
A mudança do cenário eleitoral nos últimos três meses deveu-se à percepção
negativa sobre a forma como Donald Trump vem conduzindo as medidas contra a
pandemia, a queda no crescimento econômico, o aumento do desemprego e sua
reação aos movimentos raciais que se espalharam por todo o país. Passou a
haver, assim, uma chance de Joe Biden vencer as eleições de novembro, com
mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa.
O Partido Democrata, no governo, tentará uma política econômica que
recupere o dinamismo da economia e reduza o desemprego. Deverá prevalecer viés
nacionalista, que incluirá forte componente ambiental (Green New Deal),
modificações no sistema de saúde e busca de liderança no combate à pandemia. Os
EUA voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o retorno à
Organização Mundial de Saúde, o fortalecimento da OMC e a adesão ao Acordo de
Paris. As crescentes tensões geopolíticas entre EUA e China, no governo
democrata, deverão continuar e mesmo ampliar-se. Nesse contexto, deverão
aumentar a pressão sobre governos autoritários e a defesa da democracia,
agravando as tensões nas áreas comercial, tecnológica e militar, pois Beijing é
tratada hoje como adversário pelo establishment norte-americano.
Como ficariam as relações Brasil-EUA com um presidente democrata?
Numa de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro, ao comentar o
cenário da eleição presidencial americana, confirmou que torce por Trump, mas
vai tentar aproximação caso Biden seja o vencedor. “Se não quiserem,
paciência”, simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John
Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, de buscar fazer pontes
com o candidato democrata.
Costumo fazer distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a
relação institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana.
Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação pessoal estabelecida com
Trump por influência ideológica. Manifestação de Eduardo Bolsonaro a favor de
Trump recebeu imediata resposta de deputado democrata, presidente da Comissão
de Relações Exteriores: “A família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição dos
EUA”.
Em termos institucionais, o relacionamento bilateral continuará a ter
baixa prioridade e o novo presidente poderá até fazer alguns gestos para
afastar o Brasil da China. As críticas continuarão, como vimos recentemente,
quando, por conta da política ambiental e de direitos humanos em relação aos
índios, Comitê de Orçamento da Câmara, relatório do Departamento de Estado e
carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja
negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, haja sanções contra Brasília e
seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da Otan. O
alinhamento com os EUA, nem sempre concretizado nas relações bilaterais,
tornou-se automático nas votações de resoluções sobre costumes, mulheres,
direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais
(ONU, OMS, OMC). Em muitos casos o Brasil fica isolado com EUA e Israel e nas
questões de costumes fica acompanhado de países conservadores, como Arábia
Saudita, Líbia, Congo e Egito. Com a mudança na política de Biden nos
organismos multilaterais, o Brasil tenderá a ficar ainda mais isolado, sem a
companhia dos EUA.
A geopolítica será o dilema mais sério para o governo brasileiro caso
Biden vença a eleição. A crescente presença da China na América do Sul está na
raiz da decisão de Washington de apresentar candidato a presidência do BID
contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse
político dos EUA para conter Beijing com pressão financeira sobre os países da
região. Seria a volta da Doutrina Monroe. O apoio brasileiro à proposta dos EUA
para discutir se países que não são economia de mercado podem ser membros da
OMC – o que, na prática, excluiria a China – e uma eventual decisão contra a
empresa chinesa na licitação do 5G indicariam que o Brasil teria escolhido seu
lado no confronto. Será que os EUA levarão o governo brasileiro a se chocar com
a China? Não convém ao Brasil ajudar a trazer a disputa geopolítica para a
região, nem tomar partido por um dos lados numa longa disputa que está apenas
começando. Permanecer equidistante é o que defende o vice-presidente Hamilton
Mourão.
Menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional é o que o bom
senso recomenda nesse momento de incerteza nos rumos da relação Brasil-EUA.
*Presidente do IRICE
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