- Nas entrelinhas | Correio Braziliense
“A disputa em torno da manutenção
ou não do ‘teto de gastos’, apontada como condição para ‘achatar a curva’ da
dívida pública, está instalada dentro do próprio governo e no Congresso“
Houve
uma mudança na relação do presidente Jair Bolsonaro com a política. É evidente
que o convite, prontamente aceito, ao ex-presidente Michel Temer, para chefiar
a missão de solidariedade ao Líbano, aproxima do seu governo de forma
irreversível uma força política que sempre teve um papel decisivo para a
governabilidade do país: o MDB. Simboliza outra estratégia de governo, que
deixa a rota de colisão com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF),
ainda que as tensões com o Judiciário tendam a se manter ao longo do processo,
por causa do caso Fabrício Queiroz. Onde há política, há salvação para a
democracia representativa.
A
postura humanitária de Bolsonaro em relação ao Líbano é até um contraponto à
espantosa falta de empatia com as mais de 100 mil famílias enlutadas por causa
da covid-19. O luto oficial decretado pelo Congresso e pelo STF não mereceu o
mesmo tratamento do Executivo. “Nos próximos dias partirá do Brasil, rumo ao
Líbano, uma aeronave da Força Aérea Brasileira, com medicamentos e insumos
básicos de saúde, reunidos pela comunidade libanesa radicada no Brasil. Também
estamos preparando o envio, por via marítima, de 4.000 toneladas de arroz para
atenuar as consequências das perdas de estoque de cereais destruídos na
explosão”, anunciou o presidente da República, que até hoje não nomeou um
ministro efetivo para a Saúde. Em algum momento, a pandemia cobrará seu preço.
Mais
uma razão para a avaliação de que o gesto em relação ao Líbano vai além das
motivações humanitárias e mira o futuro da relação do governo com o Congresso,
uma vez que o MDB tem chances reais de liderar tanto a Câmara como o Senado. O
deputado federal Baleia Rossi (SP), atual presidente do MDB, pode vir a ser o
nome apoiado pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à própria sucessão. Além
disso, no Senado, embora o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenha a ambição
de se reeleger –– quebrando a tradição —, a bancada do MDB já é a principal
força de sustentação do governo na Casa. O líder do governo, Fernando Bezerra
(PE); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de
Constituição e Justiça, Simone Tebet (MT), são nomes capazes de liderar uma
maioria robusta, mais governista ou mais independente, dependendo de quem for
capaz de manter o partido unido e tecer uma aliança ampla.
Novas
bases
Bolsonaro está descobrindo as vantagens da governabilidade, depois de quase pôr
seu governo a perder numa trajetória suicida de confronto com os demais
Poderes, ameaçando as instituições da democracia representativa. Por muito
pouco não pautou o seu próprio afastamento pelo Congresso. Parece que os
militares que ocupam o centro do poder no Palácio do Planalto, finalmente,
conseguiram levar o governo a um ponto de equilíbrio institucional, na medida
em que Bolsonaro colhe os frutos do pacote de medidas de emergência aprovadas
pelo Congresso para combater os efeitos dramáticos da crise. Esse é outro
elemento que explica os novos rumos adotados. Está havendo uma mudança de
composição na base social de apoio ao governo: ao mesmo tempo em que perde
apoio da classe média, cresce o prestígio de Bolsonaro com a população mais
pobre do país, principalmente do Norte e do Nordeste.
De
um lado, o caso Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flávio
Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho, e amigo do presidente da República,
afasta cada vez mais a bandeira da ética do atual governo e, consequentemente,
uma grande parcela da classe média. Blindado pela Constituição, Bolsonaro não
pode ser investigado, mas a primeira-dama Michelle Bolsonaro pode. Além disso,
o ex-ministro da Justiça Sergio Moro é identificado como o grande protagonista
da Lava-Jato; seus adversários, dentro e fora do governo, não conseguem
desconstruir essa imagem. Em contrapartida, a aliança com o Centrão juntou a
fome com a vontade de comer: o inesperado apoio popular conquistado com a
migração das parcelas mais pobres da população do Bolsa Família para o abono
emergencial e a aliança com os políticos patrimonialistas do Norte e Nordeste,
que sempre souberam manipular as carências populares dessas regiões.
Toda calmaria, porém, precede a tempestade. O cenário da economia para o segundo semestre e 2021 não é nada bom. Com uma dívida interna de R$ 6,1 trilhões, que equivale a 85,5% do PIB, a dívida pública deve saltar de 75,8% para mais de 100% em 2022. A disputa em torno da manutenção ou não do “teto de gastos”, apontada pela maioria dos economistas como condição para “achatar a curva” da dívida, está instalada dentro do próprio governo, entre a equipe econômica e os ministros militares, e no Congresso. A linha que separa um governo conservador do populismo de direita está sob forte pressão, exacerbada ainda mais pela aproximação das eleições municipais. Os dados estão sendo lançados.
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