Nada
poderia ser mais inconsequente do que tomar medidas de flexibilização da
quarentena como sinal inequívoco de que tudo voltou ao normal.
A julgar pelo comportamento de muitos brasileiros, a pandemia de covid-19 parece ser uma catástrofe que ficou para trás. Nada poderia ser mais inconsequente neste momento do que tomar as medidas de flexibilização da quarentena que têm sido adotadas pelo poder público como um sinal inequívoco de que o pior já passou e que tudo voltou ao normal. Afinal, a pandemia, cumpre reafirmar, não acabou. Ao contrário, ganha força.
Há
algumas semanas, muita gente relaxou nos cuidados para conter a disseminação do
novo coronavírus. Observaram-se grandes congestionamentos nos grandes feriados,
praias lotadas, aglomerações em bares, festas e reuniões entre familiares e
amigos, ou seja, comportamentos totalmente alheios à dura realidade: o vírus
mortal ainda está em circulação no País.
Como
o patógeno é implacável e não liga para o estado de espírito das pessoas,
muitas exauridas nesses quase nove meses de quarentena, o número de infectados
e mortos tornou a subir após semanas de queda e estabilidade. De acordo com o
Imperial College de Londres, referência internacional no estudo da pandemia, a
taxa de transmissão (Rt) do novo coronavírus no Brasil voltou a ficar acima de
1 pela primeira vez desde setembro. No dia 17 passado, a instituição britânica
revelou que a Rt no País estava em 1,10, vale dizer, cada grupo de 100
infectados pelo Sars-Cov-2 transmitia o vírus para outras 110 pessoas. Apenas
uma semana antes, a Rt estava em 0,68, então a menor taxa registrada desde
abril. Uma taxa de transmissão acima de 1 indica que a doença está se
expandindo. Abaixo, indica que está perdendo intensidade.
De
acordo com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), que monitoram a taxa de transmissão no Estado, a Rt
em São Paulo está em 1,05, o que indica aumento da propagação da doença. Este
aumento pôde ser sentido na ocupação dos leitos dos hospitais públicos e
privados, que voltou a subir na primeira quinzena de novembro. As redes de
laboratórios também registraram maior procura por exames para detecção do novo
coronavírus, com aumento de cerca de 20% no número de diagnósticos positivos.
Isso é mais do que um alerta. São vigorosos sinais do alto preço que o novo
coronavírus cobra por qualquer descuido.
Diante
desse quadro absolutamente preocupante, o governador de São Paulo, João Doria
(PSDB), agiu bem ao editar um decreto prorrogando a quarentena em todo o Estado
até o dia 16 de dezembro. Não houve a progressão para a faixa verde do Plano
São Paulo, menos restritiva, em 90% do Estado, como planejado. As atividades
consideradas não essenciais, portanto, poderão ser novamente suspensas nos
termos do Decreto 64.879, de março deste ano, caso a Secretaria de Estado da
Saúde julgue necessário, a depender da evolução da doença nos próximos dias.
“Se tivermos índices aumentados, seguramente medidas mais austeras e
restritivas serão tomadas. Reforço que não estamos no nosso normal, e sequer no
nosso novo normal”, disse o secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn.
Na
capital paulista, o quadro é menos crítico, porém, não menos preocupante. De
acordo com o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, não foi observado
aumento significativo no número de internações em hospitais da rede pública
municipal como se observou nos hospitais da rede privada. Mas houve interrupção
da queda notada no mês de outubro.
O
governo estadual afirma que não há que se falar, ao menos por ora, em “segunda
onda” da covid-19 no Estado, pois o aumento do número de casos se dá em
comparação com uma semana de feriados. Mas é fato que não é pequeno o
contingente de paulistas que retomaram hábitos de antes da pandemia de forma
menos cautelosa.
O
comportamento de cada paulista determinará o próximo estágio da pandemia no
Estado. Quanto maior a cautela, mais segura e duradoura será a retomada das
atividades normais. Quanto mais negligente, maior o risco de aumento de
contágios e mortes e mais duras serão as medidas de contenção do vírus.
O calvário peruano – Opinião | O Estado de S. Paulo
Com
a escolha de Francisco Sagasti, o país teve em uma semana três presidentes.
A autofagia política no Peru chegou ao paroxismo. As acusações de corrupção abundam por todos os lados e, em meio ao fogo cruzado entre o Legislativo e o Executivo, nenhum dos representantes eleitos em 2016 está de posse de seu mandato.
Sob
ameaça de impeachment, supostamente por corrupção, o presidente Pedro Pablo
Kuczynski renunciou em 2018. Seu sucessor, Martín Vizcarra, por sua vez,
aumentou a pressão por reformas políticas alegadamente motivadas pela repressão
à corrupção, chegando a ponto de dissolver o Parlamento e convocar novas
eleições em 2019. Em retaliação, a nova legislatura passou a pressionar
Vizcarra até conseguir o seu impeachment, no último dia 9, e a ascensão à
presidência do líder oposicionista no Parlamento, Manuel Merino. Este por sua
vez foi pressionado pelo povo nas ruas até cair, no domingo passado. Com a
escolha do parlamentar Francisco Sagasti como presidente interino, o Peru teve
em uma semana três presidentes.
A
queda de Vizcarra é classificada por muitos peruanos como um golpe. A
Constituição prevê a possibilidade de o Congresso depor um presidente por
“incapacidade moral permanente”, mas as investigações sobre um suposto
recebimento de propina por Vizcarra quando governador de Moquegua entre 2011 e
2014 ainda estão em curso. Além disso, Vizcarra tinha mais de 50% de aprovação
popular e 75% dos peruanos eram contra a sua deposição.
Mas,
se a legalidade do impeachment já era questionável – e está sendo questionada
no Tribunal Constitucional –, quaisquer rudimentos de legitimidade do regime de
Merino foram pulverizados em poucos dias.
Merino,
que como presidente do Congresso promoveu diversas medidas populistas e
arbitrárias, ao invés de apaziguar os ânimos, montou rapidamente um gabinete
sectário e rancoroso. Uma multidão de peruanos foi às ruas. Ao mesmo tempo que
o novo regime tentava deslegitimar os protestos, empenhou as forças policiais
em uma truculenta repressão que deixou um rastro de mais de cem feridos,
diversos desaparecidos e dois mortos. Em poucos dias o regime se mostrou
totalmente insustentável e Merino renunciou. A procuradoria peruana iniciou uma
investigação por delitos de homicídio doloso, abuso de autoridade, lesões
graves e desaparições forçadas.
Após
dois dias de convulsão parlamentar, na segunda-feira o Congresso elegeu
Sagasti. Tudo indica que as forças políticas chegaram a uma solução de
compromisso minimamente estável, capaz de conduzir o país à renovação nas urnas
em abril. Sagasti está entre os 19 parlamentares que, contra 105, votaram
contra o impeachment. Ele é engenheiro e fez carreira na vida pública como
tecnocrata, servindo em vários órgãos de Estado e organismos internacionais
como o Banco Mundial. Só em 2020, aos 76 anos, foi eleito parlamentar pelo
partido de centro-direita Morado.
Assim
como tem considerável experiência na gestão pública, Sagasti parece ser
suficientemente independente das oligarquias parlamentares que foram incapazes
de controlar a crise que elas mesmas produziram. Seu ex-chefe no Ministério das
Relações Exteriores, Allan Wagner, o descreveu como “afável, conversador, sempre
em busca de consensos e especialista em dinâmica de grupo”. Ao ser nomeado,
Sagasti cuidou de adotar um tom conciliador e comprometido com o combate à
pandemia e a recuperação econômica. O mercado reagiu positivamente.
Há
pelo menos 20 anos as forças políticas peruanas estão em atrito permanente,
sobretudo em razão de uma epidemia de corrupção, frequentemente retaliada por
virulentos espasmos anticorrupção. O terremoto da última semana deitou por
terra muitas partes podres do edifício institucional peruano e aprofundou suas
fissuras até os alicerces. Espera-se que o novo regime consiga manter um mínimo
de paz civil para que o povo peruano possa restaurar aquilo que há de mais
sólido em suas estruturas e deliberar sobre uma nova arquitetura a fim de iniciar
a reconstrução da sua vida política nas eleições de 2021.
A integração comercial na Ásia-Oceania – Opinião | O Estado de S. Paulo
Um
novo bloco regional está surgindo, em que UE e EUA têm menos voz e a China,
cada vez mais.
No dia 15, após quase uma década de negociações, 15 países da Ásia e da Oceania firmaram a Parceria Regional Econômica Abrangente (Rcep, em inglês), um dos maiores acordos comerciais do mundo. Em certos sentidos é o maior, compreendendo cerca de um terço da população e da produção mundiais. Num momento em que a pandemia tem abalado a cooperação internacional e o Ocidente dá mostras de ceticismo em relação ao livre-comércio e ao multilateralismo, trata-se de um enorme passo para a integração econômica da região, com grande potencial de impacto sobre a nova ordem global em vias de ser definida no século 21.
Em
certos aspectos o acordo é simbólico. Ele ainda terá de ser ratificado por
todos os 15 países participantes e em grande medida não cria novas regras, só
uniformiza uma pluralidade de acordos vigentes entre os diversos países da
região. Mas é um símbolo poderoso. Se não chega a estabelecer uma zona de livre
comércio, como a União Europeia (UE) ou o acordo entre EUA, Canadá e México, dá
um passo significativo nessa direção ao incluir aspectos como tarifas, custos
aduaneiros, medidas sanitárias, serviços, investimentos e outros.
Do
ponto de vista da mecânica comercial, a grande inovação refere-se às regras de
origem dos insumos e componentes utilizados em produtos industriais.
Atualmente, um produto manufaturado, por exemplo, no Japão pode ter tarifas
diferentes na Coreia do Sul se tiver ou não componentes originários da
Indonésia. A Parceria uniformiza as regras eliminando esse tipo de barreira. “A
Ásia está integrada, mas para oferecer bens a outros mercados”, disse Deborah
Elms, diretora da consultoria Asian Trade em Cingapura. “A Rcep muda isso.” Os
economistas estimam que a Parceria pode somar mais de US$ 180 bilhões à
economia global e 0,2% do PIB de seus membros.
Outro
aspecto crucial é que se trata do primeiro acordo comercial abrangente entre
China, Japão e Coreia do Sul, as três grandes usinas tecnológicas da região,
criando condições para uma zona de livre comércio trilateral, mesmo em meio a
atritos de natureza política.
O
acordo só não foi maior pela ausência da Índia, a terceira maior economia da
região, que abandonou as negociações em 2019, temendo um dilúvio de produtos
industriais chineses, sem maiores avanços no comércio de serviços, área na qual
o país leva vantagem. Ainda assim, a Rcep deixa uma porta aberta para a futura
adesão da Índia.
O
acordo é menos ambicioso do que a Parceria Transpacífica, mas mais efetivo.
Esta última, ainda em negociação, prevê a participação de países da América,
como Canadá e Peru; cobre áreas como legislação trabalhista, meio ambiente e
regras para empresas estatais; e projeta a eliminação de 100% das tarifas. A
Rcep, por sua vez, se restringe a regulamentos comerciais e prevê a eliminação
de 90% das tarifas, mas ao longo de 20 anos. Ela também avança pouco na
integração do comércio de serviços e a agricultura foi em boa medida deixada de
fora – um dado importante para o Brasil.
Na
configuração global, a Parceria fortalece a presença da China na região –
especialmente após a saída da Índia – e enfraquece mais a dos EUA.
Os
EUA se retiraram, pelas mãos de Donald Trump, da Parceria Transpacífica, e é
improvável que Joe Biden reverta este quadro. As suspeitas em relação a novos
acordos comerciais, sobretudo com a China, são compartilhadas, por diferentes
razões, por eleitores republicanos e democratas.
Quanto
à China, além dos benefícios comerciais diretos e da facilitação indireta de
negociações geopolíticas na Ásia, a Rcep lhe oferece uma oportunidade de se
apresentar ao mundo como uma nação comprometida com a cooperação internacional.
A Parceria é “uma vitória do multilateralismo e do livre-comércio”, disse o seu
primeiro-ministro, Li Keqiang, “um raio de luz e esperança entre as nuvens”.
Ainda
há muito por fazer, mas o fato é que um novo bloco regional está surgindo, no
qual as duas grandes superpotências comerciais, a União Europeia e os EUA, têm
cada vez menos voz e a China tem cada vez mais.
Isolacionismo de Bolsonaro já faz do Brasil um pária – Opinião | O Globo
Participação
na cúpula do Brics deixa clara a ameaça de o país persistir na política externa
solitária
A
participação de Jair Bolsonaro na cúpula virtual do Brics serviu para que ele
desse indicações de que o Brasil pós-Trump persistirá no isolacionismo,
distante dos organismos multilaterais, no negacionismo de sempre diante da
pandemia e dos crimes ambientais cometidos na Amazônia. Aproveitou para deixar
isso claro ao vivo, na frente do presidente da China, Xi Jinping, principal
parceiro comercial do país, que tem assumido discurso oposto, em defesa da
globalização e da cooperação entre os países. A postura de Bolsonaro tem um
certo aspecto suicida, já que vai contra o interesse nacional e lança por terra
toda a tradição diplomática do Itamaraty.
Bolsonaro
usou a cúpula para mandar recado aos críticos da passividade com que seu
governo trata o desmatamento e os incêndios na Amazônia. Na tentativa evidente
de transferir responsabilidades pela destruição da floresta, anunciou a
divulgação de uma lista de países que criticam o Brasil e importam madeira
ilegal. Tenta, assim, se contrapor de maneira canhestra a informações sólidas
de que o relaxamento do Ibama nos controles sobre a exportação de madeira, já
em seu mandato, é que tem facilitado o comércio criminoso. A responsabilidade
está na origem, não no destino.
Outro
atrito gratuito com Xi ocorreu quando Bolsonaro renovou suas críticas à
Organização Mundial da Saúde (OMS), num eco a seu inspirador Donald Trump. Xi
deu uma resposta que, fosse numa reunião em pessoa, decerto traria mal-estar,
mas terminou passando em branco. Citou a vacina que a chinesa Sinovac
desenvolve com o Instituto Butantan, de São Paulo, atacada por Bolsonaro em sua
rivalidade infantil com o governador João Doria.
Bolsonaro
voltou a defender reformas nos organismos multilaterais, como OMS, OMC e a
própria ONU. Só esqueceu que seu próprio governo tem deixado de pagar o que
deve a tais organismos, deixando o Brasil sem acesso a vários benefícios.
Apenas em contribuições à ONU, o Brasil deve US$ 458 milhões este ano.
Ao
fazer reparos ao multilateralismo, Bolsonaro revela que continuará a seguir os
passos de Trump na política internacional, mesmo que o aliado já tenha data
marcada para sair da Casa Branca. A motivação é exclusivamente ideológica: a
rejeição à Ciência no combate à Covid-19 e à própria globalização. O descaso
com a integração mundial não deverá ter maiores consequências imediatas, já que
o Brics vem perdendo importância com o distanciamento indiscutível da China do
bloco.
Mas
as declarações de Bolsonaro, dadas também na presença virtual do russo Vladimir
Putin, do indiano Narendra Modi e do sul-africano Cyril Ramaphosa, dispararam o
alarme para o risco do isolacionismo brasileiro. É um risco que só crescerá com
a posse de Joe Biden nos Estados Unidos. É preciso que os interesses reais do
Brasil — na economia, na cultura, na política externa, no meio ambiente
—prevaleçam sobre mais este desastre anunciado. Ou o país seguirá a visão do
chanceler Ernesto Araújo e se tornará mesmo um pária.
Deterioração das contas públicas exige resposta urgente do governo – Opinião | O Globo
Situação
fiscal crítica mostra que Executivo e Legislativo não podem mais protelar
agenda de reformas
Cada
dia que o Brasil passa sem aprovar reformas que tragam fôlego às contas
públicas, a situação fiscal se deteriora e nos aproxima de um abismo trágico. O
último relatório da Instituição Fiscal Independente (IFI), publicado esta
semana, revela a gravidade do problema, que precisa estar no topo da agenda do
governo.
É
verdade que os indicadores melhoraram em relação à última análise, publicada em
junho. Mesmo assim, o quadro é crítico. A recessão prevista para 2020 será de
5%, em vez de 6,5%. O déficit primário ficará em torno de R$ 780 bilhões, ou
11% do PIB, não mais em R$ 878 bilhões, ou 13%. O gasto primário do governo
somará 27,4% do PIB este ano (ante 20% em 2019). Só com a pandemia, serão
gastos 7% do PIB, ou quase R$ 500 bilhões, dos quais R$ 268 bilhões destinados
ao auxílio a vulneráveis e R$ 35 bilhões ao benefício de preservação do
emprego.
O
gasto do governo com pessoal, 4,5% do PIB este ano, continuará a pressionar o
custo do Estado para a sociedade. Apenas em 2022 poderá voltar ao patamar de
4,3% registrado no ano passado. Queda, só a partir de 2023. Isso supondo os
efeitos de algum ajuste. A versão edulcorada de reforma administrativa
encaminhada ao Congresso não mexe nos funcionários públicos da ativa e mal faz
cócegas no Orçamento nos próximos anos. Mesmo que o Congresso aprove a PEC
Emergencial, que prevê gatilhos (como congelamento de reajustes e contratações)
para evitar romper o teto de gastos, o risco permanece altíssimo.
Para
cumprir o teto em 2021, as despesas discricionárias do governo teriam de ser
cortadas a irrisórios R$ 113 bilhões, ou 1,5% do PIB, o menor patamar desde
pelo menos 2008. É inverossímil, já que qualquer programa de renda básica teria
impacto imediato. Pagar R$ 300 mensais a 45 milhões ao longo de 2021, calcula a
IFI, implicaria gastar mais R$ 118 bilhões.
Não
é à toa que não se vislumbra superávit primário até 2030 ou, na hipótese
otimista, até 2026. A relação entre dívida e PIB, prevê a IFI, crescerá para 93%
este ano e chegará, no cenário base, a 100% até 2024. “Até lá, dificilmente
serão alcançadas condições de sustentabilidade”, diz o relatório. O esforço
fiscal necessário para isso seria da ordem de 3,9 pontos percentuais do PIB.
“O
reequilíbrio das contas públicas”, afirma a IFI, “exigirá responsabilidade
fiscal e reversão, ainda que gradual, do déficit primário que já persiste desde
2014, num ambiente bastante desafiador de pressões por novos gastos e baixo
crescimento econômico”. O quadro exige do presidente Jair Bolsonaro e do
Congresso um grau de dedicação às reformas que não temos visto. A proximidade
do abismo fiscal comprova que não dá para adiar mais um segundo a agenda de
reformas.
Cara de pau – Opinião | Folha de S. Paulo
Bolsonaro,
que nunca se importou com madeireiros ilegais, quer fustigar europeus
Nada
há de errado em denunciar importadores de madeira ilegalmente extraída no
Brasil. Organizações não governamentais com frequência usam o recurso da
responsabilização pública para desestimular a demanda por produtos oriundos de
desmatamento irregular, ou que empreguem trabalhadores em situação degradante.
Dito
isso, é imperioso assinalar o ridículo —para não falar do risco diplomático—
da ameaça de
Jair Bolsonaro de divulgar uma lista de compradores de madeira apreendida
pela Polícia Federal. Se a intenção era constranger líderes europeus que o
pressionam para conter a devastação da Amazônia, o disparo sairá pela culatra.
A
extração não autorizada de madeira não é o principal motor da destruição. Abrir
estradas e pátios clandestinos degrada a floresta, verdade, mas o corte raso se
faz no interesse de grileiros e pecuaristas associados a toreiros que atuam no
início da cadeia predatória.
A
extração é seletiva, concentrando-se nas espécies de maior valor comercial.
Derrubada a mata, 90% da madeira fica no chão e termina queimada. Dos 10% que
seguem para serrarias, talvez a maior parte se destine ao mercado interno, não
à exportação.
É
diminuto o volume apreendido na operação Arquimedes, da PF, invocada por
Bolsonaro. Os 2.400 m³ de madeira ilegal que seguiriam para Alemanha, Bélgica,
Dinamarca, França, Itália, Holanda, Portugal e Reino Unido representam mero
0,02% da produção de madeira em tora em 2019.
O
presidente favorece a ilegalidade ao impor seguidas desautorizações ao Ibama
quando seus agentes incendeiam tratores e caminhões de madeireiros infratores.
O presidente do órgão, Eduardo Fortunato Bim, dispensou em fevereiro
autorização específica para exportação do produto, facilitando delitos.
A
operação Arquimedes desvendou toda uma rede de criminosos, de engenheiros
florestais a funcionários públicos, que fraudam documentos para dar aparência
de legalidade às cargas de madeireiros clandestinos. A propaganda do Planalto,
entretanto, elegeu como bodes expiatórios compradores fora de sua jurisdição.
Assim
agindo, Bolsonaro logrará desacreditar ainda mais a disposição e a capacidade
do Estado brasileiro de fazer cumprir as próprias normas. De permeio, ajuda a
estigmatizar um produto nacional e, pior, reacende picuinhas com a União
Europeia, que resiste a um acordo com o Mercosul.
A
eleição do democrata Joe Biden nos EUA tornou ainda mais urgente uma
reorientação da política ambiental, o que passa pela saída do ministro Ricardo
Salles. Bolsonaro, entretanto, prefere a briga cotidiana com a sensatez.
Etiópia à beira do caos – Opinião | Folha de S. Paulo
País
vive ameaça de guerra civil apenas um ano após premiê receber Nobel da Paz
O possível
início de uma guerra civil na Etiópia é fato de consequências
potencialmente catastróficas para a África, com ingredientes que o tornam
especialmente perigoso.
Segundo
país mais populoso e sétima maior economia do continente, a Etiópia sempre
projetou influência para muito além de suas fronteiras. É a potência
indiscutível da volátil região do Chifre da África e tem tradição
pan-africanista, sediando a União Africana.
O
conflito tem como pano de fundo tensões entre o governo central e a região de
Tigré, no norte. Como ocorre com frequência no continente, o componente étnico
é preponderante.
Sentindo-se
alijados das decisões nacionais, os tigrínios, que comandaram politicamente o
país entre 1991 e 2012, decidiram ignorar a ordem do governo de postergar a
eleição para o Parlamento regional e seguiram em frente, o que foi visto como
uma provocação.
A
escalada militar não demorou, e as Nações Unidas já alertam para uma crise
humanitária.
O
adiamento do pleito havia sido determinado em razão do coronavírus —e por isso
o conflito etíope já vem sendo chamado de primeira guerra da Covid-19.
O
embate ameaça anular os ganhos da Etiópia em um raro período de estabilidade de
sua turbulenta história —que incluiu, no último século, uma monarquia
absolutista e uma ditadura comunista.
Nos
últimos 15 anos, a economia do país cresceu a taxas anuais próximas de 10%, com
políticas inovadoras em agricultura e maciços investimentos, sobretudo
chineses. A taxa de pobreza caiu de 45% para menos de 30% da população.
Nada
simboliza melhor esse renascimento do que a construção de uma gigantesca
represa no rio Nilo, atualmente em fase final, que foi pensada para alimentar
décadas de expansão econômica futura.
Sem
estabilidade política, o investimento terá sido apenas mais um exemplo de
desperdício de recursos públicos e falta de planejamento num continente
acostumado a elefantes brancos.
Uma
guerra civil pode gerar ondas de refugiados que desestabilizariam os já frágeis
vizinhos do país. Há afinidades étnicas em jogo que ultrapassam fronteiras.
Numa
ironia final, um dos protagonistas da atual crise, o premiê etíope, Abiy Ahmed,
ganhou o Nobel da Paz por contribuir para ao fim de um conflito com a Eritreia,
há apenas um ano. Agora, no entanto, preferiu as bombas ao diálogo.
China dribla guerra comercial com grande acordo multilateral – Opinião | Valor Econômico
China
aproveitou o vácuo deixado por Donald Trump para urdir uma rede compacta de
relações econômicas em sua própria região
Desde
a crise financeira de 2008, os acordos de livre comércio entraram em compasso
de espera, em meio a uma onda de restrições e protecionismo que encontrou seu
ápice na guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo, Estados
Unidos e China. A União Europeia fechou acordo com o Mercosul, que passará por
um processo lento e difícil de aprovação, com contestações ao descaso
brasileiro com o ambiente. A China agora deu um passo à frente e fez acordo com
14 países do eixo Ásia-Pacífico, que detêm 30% do PIB global.
Há
um bom tempo, pelo menos desde o advento de Donald Trump à Presidência dos EUA,
não se ouvia frases como a do primeiro-ministro, Li Keqiang, para quem o novo
acordo mostrou que o multilateralismo e o livre comércio “ainda representam a
direção certa da economia mundial e da humanidade”. A China, no entanto, é, sob
vários aspectos, um dos países mais fechados do mundo, com o processo de
formação de preços menos transparente entre as economias desenvolvidas e muitas
das emergentes.
De
qualquer forma, a China aproveitou o vácuo deixado por Donald Trump para não só
aparecer como um campeão da globalização como também para urdir uma rede
compacta de relações econômicas em sua própria região, uma natural área de
influência geopolítica. A Parceria Econômica Regional Abrangente engloba as
principais nações que negociaram com os EUA, sob a presidência de Barack Obama,
a Parceria Transpacífica. Os EUA tinham com a iniciativa a intenção de impedir
que os chineses passassem cada vez mais a ditar as regras do comércio global.
O
objetivo de Obama não era apenas geopolítico, mas vitalmente econômico. Se a
TPP fosse fechada, seria de fato o maior acordo global do mundo em comércio e
PIB na região de maior expansão global. Trump tomou posse atacando os acordos
assinados ou em gestação feitos pelas administrações anteriores como “os piores
do mundo” e mais tarde resolveu investir contra a China com uma escalada
protecionista que foi um fracasso - em vez de reduzir o déficit comercial
americano, como pretendia, ele aumentou. A pressão pretendia trazer de volta as
fábricas que empresas americanas alocaram no exterior, boa parte delas em solo
chinês. Não houve a revoada para casa. Trump se retirou da TPP no início de
governo.
A
Parceria Abrangente incluiu Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul,
Vietnã, Malásia, Indonésia, Tailândia, Cingapura e demais países da Asean. Em
duas décadas as tarifas serão eliminadas em 91% das linhas tarifárias e as
regras de origem para o comércio intrabloco serão unificadas. Ao determinar o
percentual de nacionalização aceito na produção de bens entre si, o acordo
delimita barreiras para expansão de importações de países fora do acordo. Essa
foi uma das exigências de Trump ao México na revisão do Nafta, para restringir,
no caso dos automóveis, por exemplo, que empresas estrangeiras instaladas no
México importassem grandes volumes de autopeças e modelos premontados das
matrizes e seus carros ingressassem com baixas tarifas no mercado americano.
Acordos
anteriores já uniam todos os participantes da nova Parceria, com exceção do
Japão e da Coreia do Sul. O Japão terá 92% dos bens que exporta ao coreanos
livres de tarifas (hoje, são só 19%) e 86% para a China (8% atualmente). Os
países participantes terão um aumento de renda total de US$ 189 bilhões em
2030, calcula o Petersen Institute.
Nenhum
acordo é isento de conflitos e a Parceria levou 8 anos para ser costurada.
Perto do fim, a Índia, hoje em conflito político com Pequim, se retirou por
temer especialmente a concorrência de produtos baratos chineses. A China
retaliou sem pestanejar as importações vindas da Austrália, depois que os
serviços de inteligência australianos apontarem que as redes de 5G da Huawei
tinham brechas de segurança que poderiam favorecer a bisbilhotagem chinesa. As ilhas
do Mar do Sul da China são fonte de disputa e atritos com o governo japonês.
O novo presidente americano, Joe Biden, pode tentar ressuscitar a Parceria Transpacífico, que conta com 7 países também signatários da Parceria Abrangente. Pode chegar à conclusão que já é tarde demais. A retórica globalista de Pequim, porém, abre brecha para que os EUA arregimentem o apoio da Europa para pressionar a China e enquadrar a China em regras comerciais mais explícitas e transparentes, no âmbito de uma reforma da Organização Mundial do Comércio. Biden tentará retomar a iniciativa, mas a China obteve trunfo de primeira grandeza com o acordo.
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