Maricas
é quem só usa palavras dóceis, como as de Bolsonaro para Trump: ‘Love’
Pertencente
à grande nação tupi, o povo tupiniquim foi o primeiro desta terra a descobrir
os portugueses. Quando caravelas lusitanas aportaram no litoral do continente
que agora habitamos, os navegantes deram de cara com os tupiniquins. Não se
sabe bem que histórias contaram os índios, de geração em geração, sobre o dia
em que descobriram Pedro Álvares Cabral, mas o nome deles virou um sinônimo
“brasileiro”. Com razão.
No
mais das vezes há um viés jocoso nessa acepção da palavra. Normalmente, quando
dizem que isso ou aquilo é uma versão “tupiniquim” de uma mercadoria ou de uma
ideia vinda de fora, querem dizer que ela é pior que a original estrangeira.
Portanto, na fala do brasileiro que desvaloriza o próprio brasileiro quando usa
a palavra “tupiniquim” como um termo pejorativo existe um preconceito contra si
mesmo, um impulso autodepreciativo.
É
bem verdade que outras vezes a memória da nossa ancestralidade indígena não tem
preconceito algum, mas o contrário. Quando sabe devorar a identidade do outro
que, chegado de “Oropa” ou França, cai na Bahia com más intenções, o brasileiro
não se desvaloriza em nada, mas cria valor novo para si. O Manifesto
Antropófago, proclamado por Oswald de Andrade em 1928, o “ano 374 da Deglutição
do Bispo Sardinha”, defendeu com ênfase esse tipo de mastigação simbólica. As
chanchadas no cinema brasileiro, que tantas paródias fizeram para caçoar dos
galãs empostados de Hollywood, também tinham que ver com isso, embora sem o
apetite revolucionário de Oswald. Se você consegue rir do opressor, meio
caminho gástrico andado. “A alegria é a prova dos noves.” Assim, se o uso
autopreconceituoso do termo “tupiniquim” internaliza no brasileiro a opressão vinda
de fora para dentro, a antropofagia política e cultural vira a opressão do
avesso e, de dentro para fora, gargalha.
Tudo
isso para perguntar o seguinte: quando imita Donald Trump com tanta paixão,
quando posa de cover do seu ídolo imperial, o atual presidente da
terra dos tupiniquins incorre numa vertente do autopreconceito ou está apenas
exercendo seu suspeito direito de fazer da política uma paródia? Devemos olhar
para ele – para o presidente daqui – como um personagem que despencou de uma
chanchada fora de cartaz há décadas, mais ou menos como um lobisomem de filme
de Mazzaropi, ou como um vassalo voluntarista oferecendo solicitudes não
solicitadas ao senhor estrangeiro que o despreza? A atitude do brasileiro que
quer ser um Trump tropical fortalece ou desmerece o Brasil? Há nele um piadista
de mau gosto ou um índio encarcerado que sonha em se fantasiar de Pedro Álvares
Cabral para se olhar no espelho? No caso do presidente local, de quem é o
preconceito? E contra quem é?
Antes
de respondermos – o que, aliás, talvez não seja necessário –, levemos em conta
que a divindade blonde foi destronada, o que solapa não o chão de seu
servo, que pés no chão nunca os teve, mas o poleiro em que ele se dependura,
pelo lado de baixo. O que estamos vendo é uma tragédia amorosa escancarada,
explícita, cheia de dilacerações e lágrimas. O subalterno vai perdendo o objeto
do desejo à medida que o poleiro perde a materialidade. O sôfrego adulador não
reconhece que o cetro ao qual devota sua reverência genuflexa está sumindo do
horizonte. Entra em desespero sentimental. Não reconhece a perda de poder em
seu amo e patrão.
O
espetáculo inspira pena. Quanta dor. Dia destes, o presidente dos tupiniquins
usou a palavra “love”. Em seu vocabulário, o termo “love” mora no coração do termo
“obediência”. Incondicional. O escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch
concordaria. Em via de perder o ser idolatrado, o ser idolatrante enlouquece em
seu fetiche adente. Sua fantasia não era devorar, nunca foi. Sua fantasia mais
sublime era ser devorado. O que fazer agora? Ele entra em pane. Entra em
parafusos abstratos. Endoida. Fica fora de controle. Então, para assombro dos
mortais, o homem começa a falar em maricas. Ele grita: “Maricas!”. Haja
maricas. O presidente destampa a sua obsessão pelo vocábulo. Ele, que nunca
pensa coisa alguma, agora só pensa em maricas.
O
que vem a ser isso, “maricas”, em tão presidencial vocabulário? Em primeiro
lugar, o termo denota algo – no referido vocabulário – como falta de valentia.
No mesmo léxico, tem que ver com “bundão”, palavra já pronunciada publicamente
pela mais alta autoridade da República para insultar os jornalistas e os que
adoecem com a covid-19. “Quando pega num bundão de vocês, a chance de
sobreviver é bem menor”, disse ele aos repórteres em agosto. “Maricas” é quem
não usa pólvora, só saliva, só palavras dóceis, como as dele para Trump.
“Love”.
Niquim
é o nome indígena de um peixe marinho de corpo mole e cabeça achatada (Thalassophryne
nattereri). A palavra, de origem tupi-guarani, significa feio (ni) e espinhoso
(quim). Com cerca de 15 centímetros quando adulto, o niquim gosta de ficar
parado no fundo de areia em águas rasas. Tem espinhos venenosos no dorso. Se
você pisa nele, bem, pode ser um aborrecimento e tanto. Caminhemos com cuidado.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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