Vinculação
de receitas foi instituída na hiperinflação
Durou
poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a
possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC
Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo
de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores
defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na
"corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos
corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.
As
vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera
Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de
vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi
debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a
sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade
social estava reprimida.
A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.
Se
por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como
cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós,
independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao
acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à
saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos,
acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.
A
Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico
aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas
do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo
nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.
É
evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de
dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de
juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a
aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência
Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao
funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para
todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos
da ativa e aposentados.
O
texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de
18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da
receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências,
"na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados
oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto
de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.
A
vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de
fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela
nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o
antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa
estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que
figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a
taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.
Nota
do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso",
que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de
monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das
crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais
pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.
O
que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A
despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas
orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao
funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos
previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e
educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de
incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o
que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são
discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito
pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos
de Estados e municípios.
"O
Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de
secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à
rigidez orçamentária que nos governa.
A
primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes
não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme
bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a
vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à
corrupção.
No
interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na
educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que
têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?
Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário