Enquanto
o presidente cuida de interesses pessoais e familiares, os mais destacados em
sua agenda, o governo segue sem rumo
Emperrado por um governo inepto e irresponsável e agora ameaçado também pelo fisiologismo triunfante no Congresso, o Brasil continua perdendo espaço na economia internacional, enquanto a pandemia se agrava e a mortandade supera os piores momentos do ano passado. Perdido o primeiro trimestre, é preciso muito otimismo para ainda apostar num crescimento, embora pífio, na faixa de 3% a 3,5%. É a glória do bolsonarismo – do negacionismo, do atraso na compra de vacinas, da exaltação da morte e do desvario administrativo, comprovado mais uma vez na decisão de subordinar a Petrobrás, a maior estatal brasileira, aos interesses de uma categoria profissional, a dos caminhoneiros.
O
carnaval passou, a Semana Santa começará no fim do mês e o ministro da
Economia, Paulo Guedes, continua à espera de verbas para um novo auxílio
emergencial. Enquanto isso, parlamentares tentam cavar mais R$ 18,4 bilhões
para suas emendas. Se conseguirem, o total chegará a R$ 34,7 bilhões, soma
igual, talvez pouco superior, àquela necessária para socorrer as famílias mais
desamparadas, mais uma vez, e dar algum impulso ao consumo.
Se
passar, a expansão das emendas será mais um desarranjo num Orçamento ainda nem
aprovado e muito atrasado. Ficará mais difícil arrumar as contas federais, já
muito esburacadas, controlar a dívida pública e ao mesmo tempo reanimar os
negócios e a criação de empregos. Mesmo em condições políticas mais favoráveis
seria difícil combinar estímulo econômico e ajuste das finanças oficiais.
Enquanto o presidente cuida de interesses pessoais e familiares, sempre os mais destacados em sua agenda, o governo segue sem rumo e o País mal consegue manter a recuperação iniciada em maio do ano passado e já enfraquecida. Esses dados bastariam para compor um quadro preocupante.
Mas
a isso é preciso adicionar inegáveis pressões inflacionárias, claramente
perceptíveis nos preços por atacado. No varejo os consumidores encontram, como
no segundo semestre de 2020, alimentos caros e ainda sujeitos a novas altas. O
câmbio instável é um poderoso combustível para o aumento de preços. Nos últimos
dias o dólar voltou a atingir – e até a superar – a cotação de R$ 5,60.
O
dólar tem oscilado em níveis elevados, no Brasil, principalmente por causa da
insegurança ocasionada pelo quadro político de Brasília, marcado pelo voluntarismo
do presidente Jair Bolsonaro, por sua insistência em conflitos desnecessários e
por suas decisões erráticas e fora de quaisquer padrões compatíveis com a
racionalidade administrativa. A incompetência gerencial do presidente ficou
clara desde os primeiros dias de seu mandato.
Essa
incompetência se manifesta, com frequência, em ordens absurdas, porque ele
tende a confundir a função presidencial com o mero exercício do poder de mando,
concretizado sem respaldo técnico, sem atenção a detalhes legais e com base em
opiniões estritamente particulares e infundadas. Essa tendência o levou, em
2019, a intervir na publicidade veiculada pelo Banco do Brasil, numa desastrada
interferência na gestão de uma empresa de capital aberto.
A
política econômica, apesar da expectativa otimista manifestada por analistas e
investidores, seguiu o padrão de qualidade bolsonariano. O Produto Interno
Bruto (PIB) cresceu menos em 2019 que em 2018 e encolheu no primeiro trimestre
de 2020, antes do choque da pandemia. O crescimento projetado para 2021 será
insuficiente para a retomada do nível pré-crise. Além disso, o País já crescia
menos que outros emergentes antes de 2020, e continuará em desvantagem na
recuperação.
Fraquezas
econômicas acumuladas em vários anos e agravadas a partir de 2019 são parte do
problema. Mas o Brasil ainda carrega desvantagens associadas à pandemia. Com
maior contágio, mais mortes, vacinação lenta, sem coordenação federal das ações
de saúde e com o presidente estimulando o risco da contaminação, a retomada econômica
será mais difícil e insegura. Investidores nacionais e estrangeiros sabem
disso, mas o presidente insiste em viver num mundo próprio.
‘Panorama do Emprego’ – Opinião / O Estado de S. Paulo
Plataformas
digitais necessitam desenhar novos quadros regulatórios
As plataformas digitais que conectam negócios e clientes aos trabalhadores oferecem potenciais vantagens a ambos e, por meio deles, à sociedade. Mas, à medida que borram a tradicional distinção entre empregados e autônomos, também exigem adaptações regulatórias que garantam negócios sustentáveis e oportunidades de trabalho decentes. Tais desafios – abruptamente ampliados pela pandemia – foram o tema principal da edição de 2021 do Panorama do Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Há
dois tipos de plataformas digitais de trabalho: aquelas em que tarefas – como
serviços legais, financeiros, de tradução, programação, etc. – são realizadas
online e remotamente; e aquelas em que os serviços são prestados
presencialmente – como táxi, entregas, tarefas domésticas, etc. A OIT estima
que na última década as plataformas digitais de trabalho quintuplicaram.
Para
os negócios, elas oferecem oportunidades de melhorar a eficiência, reduzir
custos e alcançar mercados mais amplos. Para os trabalhadores, oferecem mais
flexibilidade, diversidade geográfica, demanda, conectividade com clientes,
além de criar ofertas de trabalho para comunidades marginalizadas. Contudo,
para que essas oportunidades sejam aproveitadas, certos desafios – como
remuneração digna, benefícios sociais, segurança, representação ou equilíbrio
de poder – precisarão ser enfrentados.
As
plataformas argumentam que os trabalhadores trabalham para si mesmos, e que
elas apenas intermedeiam a sua oferta à demanda dos clientes. Os críticos
alegam que essa é uma maneira de gozar dos serviços dos trabalhadores,
furtando-se às obrigações trabalhistas.
Decisões
judiciais recentes – paradigmaticamente das cortes na Califórnia, o crisol da
economia digital – têm caminhado na direção de equiparar os prestadores de
serviços nas plataformas digitais a empregados. Considerando que a maioria dos
trabalhadores das plataformas digitais não goza de proteções sociais como
previdência ou seguro-saúde e seguro-desemprego, e frequentemente se submete a
condições estabelecidas unilateralmente pelas empresas, essa é uma solução em
linha de princípio positiva, mas, se mal calibrada, pode encarecer demais os produtos
a ponto de inviabilizar o modelo de negócios ou eliminar vantagens que os
próprios trabalhadores buscam, como a flexibilidade e a autonomia.
O
dilema sugere que os esforços regulatórios precisarão ser orientados a soluções
híbridas, adaptadas à crescente intersecção entre o emprego tradicional e o
trabalho independente. Embora não haja soluções pré-formatadas para um mercado
em formação, entidades como a OIT e o Fórum Econômico Mundial apontam uma série
de princípios que deveriam nortear o diálogo social e a cooperação regulatória
entre as plataformas, os trabalhadores e os governos, rumo a uma distribuição
equitativa de direitos e deveres.
Nesse
processo, é fundamental garantir que os trabalhadores gozem plenamente do
direito de negociação coletiva e que tenham acesso às cortes de sua jurisdição
ou a mecanismos de disputa. Garantir a transparência em relação aos algoritmos
empregados também é peça-chave para atingir uma justa composição entre os
interesses das plataformas e dos trabalhadores. O principal desafio é
estabelecer um sistema de classificação do status dos trabalhadores digitais.
De acordo com a proporção entre o grau de controle das plataformas e o grau de
flexibilidade e autonomia dos trabalhadores, eles podem ser equiparados a
empregados ou classificados como autônomos. Mas muitos países têm se orientado
rumo à criação de uma categoria intermediária.
O
princípio fundamental é que, seja qual for a classificação, todos os
trabalhadores devem gozar de certas garantias, como as relativas à remuneração
justa e proteções sociais básicas – cuja necessidade a covid-19 só acentuou.
Hoje, as plataformas digitais têm muito pouca responsabilidade nesse sentido. A
mesma capacidade de inovação que elas têm demonstrado no campo tecnológico está
para ser testada no campo social.
A Lei das Estatais está em vigor – Opinião / O Estado de S. Paulo
Governo
pretende burlar os requisitos legais para a presidência da Petrobrás
Por
mais estranhos que sejam os tempos atuais, uma lei federal ainda não pode ser
revogada por conversa de corredor nos palácios do poder. Trata-se de uma
obviedade, mas com o governo de Jair Bolsonaro faz-se necessário recordar até o
mais básico. A Lei das Estatais (Lei 13.303/16) está em vigor e suas
disposições devem ser cumpridas.
Segundo
noticiou o Estado, o governo federal pretende burlar os requisitos legais
exigidos para que se ocupe a presidência de uma estatal – a Petrobrás – dizendo
que os anos de generalato de Joaquim Silva e Luna preencheriam as condições
estabelecidas pela Lei das Estatais.
O
art. 17 da Lei 13.303/16 é muito claro. O presidente de sociedade de economia
mista deve ter experiência profissional na área, comprovada a partir de alguns
dos seguintes requisitos mínimos: (i) dez anos de atuação na área da empresa,
(ii) quatro anos de experiência em cargos específicos vinculados à área para a
qual for indicado ou (iii) quatro anos como profissional liberal em atividade
direta ou indiretamente vinculada à área da empresa.
Além
disso, o indicado deve cumprir outras duas condições: ter formação acadêmica
compatível com o cargo para o qual foi indicado e não se enquadrar nas
hipóteses de inelegibilidade previstas na legislação.
A
despeito da clareza das exigências legais, o presidente Jair Bolsonaro ignorou
o seu conteúdo e indicou para a presidência da Petrobrás o general Joaquim
Silva e Luna, que nunca atuou no mercado de petróleo. O general passou à
reserva em 2014 e, em fevereiro deste ano, completou dois anos na presidência
da Itaipu Binacional.
Antes
de mais nada, é preciso reconhecer que o fato de a indicação de Jair Bolsonaro
para a presidência da Petrobrás não cumprir os requisitos legais em nada
desmerece o currículo e o bom nome do general Joaquim Silva e Luna. O erro está
na atitude do presidente Bolsonaro de ignorar a lei e ainda envolver um general
nesse imbróglio.
Não
é o general Joaquim Silva e Luna que está descumprindo a lei. Quem a descumpre
é o presidente Jair Bolsonaro, ao forçar uma indicação que – apesar do
currículo e do bom nome do general, repita-se – não cumpre os requisitos legais
de experiência e de formação acadêmica.
Estivesse
disposto a superar de fato os males trazidos pelas administrações petistas,
Jair Bolsonaro seria o primeiro a cumprir minuciosamente a Lei 13.303/16.
Aprovada em junho de 2016 pelo Congresso, a Lei das Estatais veio justamente
assegurar padrões mínimos de gestão profissional para as empresas públicas e
sociedades de economia mista. Seu objetivo era impedir, ou ao menos dificultar,
o aparelhamento ideológico e a interferência político-partidária nas estatais,
fenômenos muito presentes nos anos do PT no governo federal e que causaram
tantos prejuízos ao País e às empresas públicas.
Agora,
com sua tentativa de interferir na política de preços da Petrobrás, o
presidente Jair Bolsonaro revela, em todas as suas cores, a proximidade do
bolsonarismo com o lulopetismo. Nenhum dos dois quer gestão profissional nas
estatais ou nas sociedades de economia mista. A rigor, aqueles que se
apresentam como politicamente antagônicos almejam o mesmo objetivo, em sua
dupla dimensão: a insubmissão do poder político a critérios profissionais
objetivos e a prevalência do fator eleitoral nas decisões de governo.
Não
é coincidência que o presidente Jair Bolsonaro entre em conflito com a Lei das
Estatais, como também não é coincidência que, uma vez revelado o descumprimento
da lei, ele manifeste tamanho desdém por suas exigências. Com a Lei 13.303/16,
o Congresso tentou impedir a interferência política a que o presidente da
República pretende submeter a Petrobrás.
O
general Joaquim Silva e Luna não merecia estar envolvido nesse embate. A
Petrobrás não merecia estar envolvida em interesses eleitorais do presidente
Jair Bolsonaro. O País não merecia estar submetido a governantes que, quando
lhes parece conveniente, fecham os olhos à lei. Não é demais lembrar que, ainda
vigente no País, o regime republicano é o regime das leis, com seus claros
limites.
Reforma política proposta por Lira traria retrocesso – Opinião / O Globo
Fortalecido pela ascensão de Arthur Lira (PP-AL) para presidir a Câmara dos Deputados, o Centrão, frustrado na tentativa de fazer uma aprovação-relâmpago da “PEC da Impunidade”, dedica-se agora a executar uma ampla reforma política com ingredientes não menos nocivos. Entre eles, o fim da proibição de coligações em pleitos proporcionais, que elegem deputados e vereadores, e a extinção da cláusula de desempenho (ou de barreira), que estabelece um patamar mínimo de votos para um partido obter representação (usual em democracias maduras para reduzir o número excessivo de legendas no Legislativo).
A
pulverização de partidos, por dificultar a construção de uma base que dê
condições de governabilidade ao Executivo, dá espaço a negociações nada
republicanas. É o que esteve por trás do mensalão e de vários outros escândalos
que envolvem a compra —seja literal, seja na base do toma lá dá cá de verbas e
cargos — do apoio de partidos menores ao governo no Congresso.
No
último pleito municipal, em novembro, começou a vigorar a proibição de
coligações na eleição para vereador. Ela se estenderá a deputados estaduais e
federais em 2022. Já houve um nítido sinal de melhora. O fim das coligações
reduziu o número de partidos nas Câmaras municipais e trouxe maior
transparência e consistência programática aos entendimentos com os prefeitos
sobre planos de governo.
Políticos
do Centrão — em que se destacam PP, PSD, PL, PTB e Republicanos — reclamaram e
passaram a trabalhar pela volta dessas coligações espúrias. Elas não passam de
um logro com a representatividade do voto, frequentemente desviado nas
coligações para um candidato que o eleitor não conhece e com quem não concorda.
Nos tempos das amplas alianças do PT, votos da esquerda ajudaram a eleger
políticos de direita e vice-versa. É um acinte à democracia representativa.
Agora,
o bloco de partidos fisiológicos que se tornou a base do governo Bolsonaro
planeja não só revogar o fim dessas coligações, mas também extinguir a cláusula
de barreira em sua reforma política. A iniciativa deve ser vista com suspeição,
analisada e debatida a fundo.
O
respeito ao voto do eleitor instituído pelo veto a coligações em pleitos
proporcionais se conjuga com a cláusula de desempenho para melhorar a
representatividade do Legislativo. No conjunto, ambas são um golpe nas legendas
nanicas interessadas apenas em mercadejar apoios.
É
inaceitável que o país volte atrás na cláusula de barreira, determinação que já
deveria ter sido implementada por uma lei de 25 anos atrás. Já nas eleições de
1996, os partidos que não contassem com pelo menos 5% dos votos para deputado
federal não teriam bancada no Congresso, acesso a fundos partidários e
eleitorais, nem à propaganda em TV e rádio. A implementação foi adiada por dez
anos. Em 2006, o Supremo invalidou a lei, numa decisão equivocada.
Constatado
o erro, a cláusula voltou atenuada na reforma política de 2018 (1,5% dos votos
válidos, numa escala crescente até chegar a 3% em 2030). Pequenos partidos
pressionaram pela derrubada, com a ajuda daquelas legendas que cercam a
presidência de Lira na Câmara, conhecidas mais pela sanha fisiológica que pela
consistência ideológica. A pressão está de volta. Será preciso resistir.
CVM precisa investigar suspeita de informação privilegiada da Petrobras – Opinião / O Globo
É para lá de suspeita a transação com ações da Petrobras revelada ontem pelo blog da colunista Malu Gaspar no site do GLOBO. No final da tarde do dia 18, apenas 20 minutos depois da reunião em que o presidente Jair Bolsonaro discutiu a troca na presidência da empresa, a plataforma da corretora Tullett Prebon começou a ser usada para uma operação inusitada.
Em
duas rodadas de negociação, foram compradas 4 milhões de ações da Petrobras com
a opção de vendê-las na segunda-feira seguinte por 8% abaixo do valor a que os
papéis eram cotados naquela quinta-feira. Horas depois, naquela mesma noite,
Bolsonaro soltou numa transmissão digital que “alguma coisa” aconteceria na
estatal. A queda de Roberto Castello Branco, até aquele momento presidente da
empresa, foi anunciada no dia seguinte. De acordo com os registros da B3, nunca
houve movimentação tão grande nos papéis negociados na operação suspeita. Pelos
cálculos apresentados, as opções custaram R$ 160 mil e podem ter rendido aos
donos até R$ 18 milhões. Os sinais de uso de informação privilegiada são eloquentes.
A
corretora, que não respondeu à indagação da colunista, na certa alegará sigilo
financeiro para não revelar de onde partiram os pedidos para a compra dos
papéis. Mas a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem obrigação de investigar
o caso com urgência. Seria pedagógico, já que são raras, no Brasil, as punições
pelo crime conhecido no mercado como “insider trading”. Um levantamento da
própria CVM com dados entre 2013 e 2018 verificou que apenas 8% de quase 400
julgamentos realizados tinham relação com informações privilegiadas.
Já
vieram à tona casos rumorosos, como o envolvendo papéis da Telebras no governo
Lula. A estatal despertou uma onda de investigações depois que suas ações — que
haviam virado mico depois da privatização — valorizaram mais de 35.000% com o
anúncio da reativação da empresa no plano nacional de banda larga. Mesmo com a
aceleração nas investigações dos últimos anos, casos de “insider trading” ainda
se arrastam, e a maioria resulta em acordos com pagamento de multas por vezes
simbólicas. A punição, quando existe, raramente vai além.
No
caso da Petrobras, não será nada difícil descobrir quem foram os responsáveis
pela operação suspeita. Corretoras têm o dever legal de manter os registros,
ordens, gravações de telefonemas e até filmes da sala de operações. Também não
será difícil descobrir se há alguma conexão com a reunião daquela tarde, a que
estiveram presentes apenas Bolsonaro, os ministros Bento Albuquerque (Minas e
Energia), Paulo Guedes (Economia), Tarcísio Freitas (Infraestrutura), Walter
Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto
Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). A pena para o crime de informação
privilegiada pode chegar a cinco anos de prisão, com multa de até o triplo do
valor obtido ilegalmente. É obrigação de qualquer gestor público saber disso.
Basta de boicote – Opinião / Folha de S. Paulo
País
chega à etapa mais mortífera da pandemia em razão da desorientação federal
Ocorreu
o que estava havia tempos delineado, dada a irresponsabilidade atroz do governo
federal e do presidente da República no manejo da maior crise sanitária em um
século. O Brasil atravessará agora as semanas mais mortíferas da pandemia de
coronavírus.
Com
vacinados em volume pífio e crescendo devagar, o país colhe o fruto envenenado
da desorientação, da ignorância, do desleixo e da imprevidência de suas
lideranças. Os óbitos montam a mais de 1.200 por dia, e essa cifra,
infelizmente, deve continuar crescendo.
No
estado de São Paulo, com o sistema de saúde mais equipado do país, já há perto
de 7.000 doentes de Covid-19 internados em UTIs. Eram menos de 3.000 no início
de novembro. A necessidade de cuidado intensivo cresce mais de 1% ao dia, quase
50% ao mês. Não há capacidade hospitalar que resista a tamanha carga por muito
tempo.
Em
outros estados, como na região Sul, o colapso já deixou de ser uma hipótese e
se concretizou.
O
ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, demonstra mais uma vez a sua monstruosa
incompetência. Prometeu, em meados de janeiro, que o Brasil seria o líder
mundial em vacinas aplicadas em fevereiro. Graças à inépcia da pasta comandada
pelo general da ativa, o país é apenas o 6º nessa corrida, embora seja o 2º a
registrar mais mortes.
O
presidente Jair Bolsonaro mostrou o caminho a seus ministros. Em plena segunda
explosão dos casos, voltou a boicotar o uso de máscaras, estimulou aglomerações
e ameaçou não repassar recursos a governadores que decretem restrições em seus
estados.
Como
a vacinação ainda se arrasta e os hospitais ficam superlotados, restringir a
circulação dos cidadãos é a única ferramenta que restou às autoridades para
reduzir os danos dessa nova maré mortífera. Bolsonaro, mais uma vez, age
deliberadamente contra a vida, o bem mais valioso dos governados.
Secretários
estaduais de Saúde pedem que o governo federal decrete toque de recolher
noturno em todo o território nacional. Num país continental, com regiões em
estágios diferentes e com capacidades de resposta diversas, talvez uma medida
uniforme como essa não seja a mais recomendada.
Em
algumas localidades, as medidas precisarão ser mais duras que em outras. O
espírito do apelo dos governos estaduais, entretanto, deveria ser atendido. O
Executivo federal precisa não apenas deixar de ser um elemento perturbador das
ações contra a pandemia viral.
É
urgente que passe a apoiar os estados e os municípios, que deixe de divulgar
mentiras e diga a verdade à população sobre o que prevenirá milhares de mortes
nos próximos meses: vacinas, máscaras, hábitos de higiene e distanciamento.
The book is not on the table – Opinião / Folha de S. Paulo
É
desafio do setor público superar deficiências decisivas no ensino de inglês
Levantamento
da Folha revelou que as questões de inglês respondem pela maior
desvantagem dos alunos da rede pública ante os das escolas
privadas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal meio de ingresso
na educação superior. Trata-se, portanto, de um gerador de desigualdade.
A
análise mostra que estudantes de bom desempenho das redes pública e particular
têm notas semelhantes, por exemplo, em matemática. O mesmo não se dá, porém,
com a língua inglesa.
Quem
acompanha o ensino dessa disciplina no país concorda que tanto estabelecimentos
públicos como particulares derrapam na tarefa. A diferença fundamental
observada no Enem se deve ao aprendizado fora da escola.
São
os jovens de famílias mais abonadas, afinal, que em geral têm acesso aos cursos
livres de idiomas —sem contar os intercâmbios culturais e outras opções. O
conhecimento de inglês é uma forma importante de inserção cultural e social, o
que na maior parte dos casos motiva o investimento.
No
ensino regular, as deficiências são notórias. Critica-se o excesso de
gramática; mais evidente é o despreparo dos professores.
Dados
do Censo Escolar do MEC mostraram que quase metade dos docentes do ensino médio
do país ministra disciplinas para as quais não tem formação específica.
Parte
integrante da dinâmica escolar há décadas, o ensino de língua inglesa foi
fixado como obrigatório pela Base Nacional Comum Curricular, de 2017, documento
que guia a elaboração de currículos.
A
BNCC determina que o inglês entre na sala de aula a partir dos anos finais do
ensino fundamental, quando os alunos têm, aproximadamente, de 11 a 14 anos.
Retirá-lo
da avaliação do Enem seria uma saída enganosa. A disciplina não deixará de ser
essencial na vida acadêmica por não ser mais objeto de avaliação prévia.
Uma
eventual ausência do inglês como requisito para ingresso no ensino superior na
prática passaria às universidades e faculdades a missão inglória de remediar as
falhas na formação dos alunos. Pode-se prever que as mesmas desigualdades se
evidenciariam em uma etapa mais avançada.
Obrigatório
como deve ser, o aprendizado da língua inglesa precisa se dar na educação
básica, em ampla escala. É desafio do setor público encontrar meios de superar
uma deficiência tão decisiva contra o progresso dos estudantes.
Caos com a pandemia ajuda a depreciar o real – Opinião / Valor Econômico
Situação
pode piorar se os juros nos EUA subirem antes do previsto e o Brasil não
encontrar formas de evitar o massacre da covid-19
As más surpresas econômicas e políticas reservadas pelo governo de Jair Bolsonaro, que parecem não ter fim, deixaram os investidores externos e domésticos preocupados. As ações do governo, não só no campo econômico, criam problemas onde eles não deveriam existir. A inflação ganhou fôlego com elas - hoje o maior fator de impulso aos preços domésticos é a desvalorização do real. Tendências que seriam favoráveis ao crescimento do país, como o atual ciclo de recuperação dos preços das commodities, deixaram ser acompanhadas de valorização do real e tornaram-se um pesadelo para a política monetária, que poderá ser arrastada a uma elevação da taxa de juros mesmo com uma economia com baixa tração.
O dólar ameaçou disparar ontem, diante de mais um ataque de nervos do presidente - o aumento de imposto sobre bancos para abrir espaço para que Bolsonaro reduza PIS e Cofins sobre diesel e agrade suas bases eleitorais entre os caminhoneiros. A grande elevação das cotações das commodities e a igualmente intensa perda de valor do real têm a força combinada de megadesvalorizações. O diesel, objeto da preocupação de Bolsonaro, subiu no ano até ontem 34%. A gasolina subiu mais, 41%.
O
índice de preços ao produtor (IPP), que dá uma ideia das pressões que se
acumulam no atacado à espera de brechas para se infiltrarem nos preços finais,
avançou 22,96% em 12 meses findos em janeiro. Metalurgia, refino de petróleo e
indústria extrativa puxaram majoritariamente o índice. O IPP desse setor da
indústria avançou 52,91%, ante 21,47% da indústria de transformação - uma
enormidade. Dentre os preços por subsetores, o de bens intermediários, em
grande parte importados, aumentaram 28,81%. Nos doze meses até fevereiro, o
IGP-DI, que capta a evolução de preços no atacado e no varejo, variou 26,55%.
Até
ontem, o dólar comercial valorizou 26,24%. Sem essa extraordinária evolução da
moeda americana, e alguma estabilidade de cotações no último ano, a
significativa elevação dos preços das commodities mal teria acendido o sinal
vermelho dos preços. A depreciação do real ocorre com reservas internacionais
confortáveis, déficit em conta corrente bastante baixo e exportações em alta,
embora se note corrosão no ingresso de capitais externos voltados para
investimentos, que caíram a menos da metade (US$ 33 bilhões) em relação a
janeiro de 2020 (US$ 69 bilhões).
Há
muitos outros fatores em jogo. A distinção que os investidores fazem entre
países vulneráveis a cada crise é diferente. Na atual, eles passaram a
considerar um fator fundamental, a capacidade de reação à pandemia. Onde ela
foi fraca, ou continua caótica, como no Brasil, as moedas nacionais se
desvalorizaram mais, aponta o BIS. É o caso de Brasil, Argentina e Colômbia. Um
gráfico do boletim da instituição, que cruza número de novos casos de covid com
desvalorização das moedas dos emergentes desenha essa correlação nitidamente. As
moedas asiáticas aguentaram o tranco porque não só os países controlaram a
pandemia como têm, por isso, perspectivas de crescimento muito superiores às do
Brasil e demais países latino-americanos.
Além
disso, Brasil e vizinhos reduziram os juros mais do que na maioria de seus
pares (200 pontos base em média) devido à profundidade da crise sanitária,
avaliam os economistas do BIS. Agora, diante da valorização do dólar, seus BCs
têm opções difíceis pela frente. “Eles têm de enfrentar desafiadores trade-offs,
com a inflação forçando-os a agir preventivamente antes da economia se
recuperar plenamente do choque da covid”. Outra comparação, mais tradicional,
mostra que os países com grau de investimento tiveram menores depreciações do
que os que não tem o mesmo rating.
Na derrocada do real predominam os fatores domésticos. A desconfiança com a perda de controle fiscal do Brasil empurrou o CDS, uma medida de risco, a subir 36,7% até 1 de março. As guinadas populistas e eleitorais de Bolsonaro, com a desmoralização em progresso da agenda liberal e a deplorável reação à pandemia, minaram a crença na capacidade de o governo encontrar uma rota sensata de saída da crise sanitária. E os investidores têm opções - o dinheiro está indo para os mercados asiáticos. No Brasil, os dólares entraram e saíram da bolsa ao sabor das inconsistências do governo Bolsonaro. A situação pode piorar se os juros nos Estados Unidos subirem antes do previsto e o Brasil não encontrar formas de evitar o massacre e o caos trazidos pela covid-19.
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