quarta-feira, 3 de março de 2021

Roberto DaMatta - Notas de um contaminado


- O Globo / O Estado de S. Paulo

1) A pandemia expôs o que não queríamos ver. O nosso lado ambíguo que tende a adiar problemas. A despeito, entretanto, de nossa autocondescendência — afinal de contas, Deus é brasileiro! —, a “gripezinha” do presidente Bolsonaro (e dos que são contra o seu estilo e governo, mas continuam se aglomerando) já matou mais de 256 mil! A pandemia obriga a pensar anormalmente com o outro.

Estamos contaminados, e a reflexão inevitável nos leva a uma história repleta de contrastes em termos de costumes e instituições. Somos um país “descoberto” de propósito ou por acaso? (como reza a fábula); somos uma sociedade constituída por três raças? (como diz um mito); ou uma nação solidificada e modernizada, um tanto à força, por um rei e uma corte fugida, em 1808, de Lisboa? (como diz a história).

Ou somos tudo isso e mais alguma coisa que a contaminação obriga a descobrir?

Será que jamais vamos aprender a votar e, por isso, o absolutismo bolsonarista tem força inclusive no Congresso Nacional, que, na semana passada, chegou perto de reinstituir imunidades aristocráticas?

2) Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro deixou de ser um povoado para virar a capital de um gigantesco reino ultramarino. Nele instalou-se uma realeza que oprimiu com um inapelável “você sabe com quem está falando?” a população nativa, desapropriando suas melhores moradas.

Nessa época, o mundo iniciava uma caminhada contra o atraso, mas, aqui no Brasil, combinávamos neomercantilismo com escravidão, que alicerçou um estilo de vida hierarquizado e aristocrático. Um sistema escravocrata, fundado no “um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”, que tirou do trabalho sua grandeza e criou uma brutal indiferença para com o mundo público e impessoal da rua. “Da porta de nossa casa para fora, o problema é do governo!”

Mas isso não funciona quando um vírus sem intencionalidade prova nossa incapacidade para juntar forças a agir solidariamente, porque as hierarquias que sustentam uma imensa desigualdade mostram como o familismo é recorrente e dominante.

Julgamos duramente de um lado, mas com condescendência do outro. Sofremos de uma ambiguidade de raiz porque podemos resolver o mundo como fidalgos ou como cidadãos. Eleitos e de “posse” de um cargo, em vez de democratizar, aristocratizamos. Voltamos sempre ao familismo, rasgando promessas democráticas. No mesmo passo, vemos o retorno de uma política de controle de preços que implode investimentos. Tudo isso mostra como mudamos sem mudar.

3) A crise, porém, instiga a imaginação. A mais surreal seria imaginar o Brasil invadido por um país estrangeiro e sendo obrigado defender-se e a declarar guerra ao inimigo.

A julgar pela caótica reação à Covid-19 e aos seus exércitos invasores, ao tempo que o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a opinião pública (obviamente dividida entre declarar ou não guerra ao invasor) se entendessem, o país já estaria falando o idioma do solerte inimigo. Pior que isso, mas igualmente plausível, seria testemunhar o governo comprando armas ultramodernas, mas esquecendo-se da munição, porque o comandante negava a guerra. O mais claro surrealismo, porém, seria ver o líder supremo das forças nacionais zombar do poder do ofensor (que teria tomado a Amazônia) comentando que se trata de uma “invasãozinha”.

É minha impressão, ou estamos vivendo um texto de George Orwell? Mentir é verdade, vigarice é legalidade, confusão é lucidez, morte é vida, derrota é vitória, doença é cura.

4) Desde que me entendo por gente, ouço que somos os piores. Que somos um povo sem homogeneidade racial; que somos preguiçosos, safados e desonestos por natureza e não por situação; que não temos bons governos e, eis a negação da negação: que não sabemos votar. Deus fez o Brasil bonito mas nele colocou um “povinho”...

No entanto, alguém comentou que esse “povinho” era pentacampeão mundial de futebol. Ele sequestrou — disse — um jogo sofisticado dos avançados ingleses, contrariando todas as teorias das colonizações perpétuas. Como foi possível?

— Um milagre?

— De modo algum. É que não criamos uma Futebolbrás. Se tivéssemos uma estatal do futebol, seu presidente seria o cunhado do mandão; seus funcionários seriam do Centrão; o técnico seria sobrinho do presidente da Câmara; e o selecionado brasileiro teria como titulares o Zero Um, o Zero Dois, o Zero Três e o Zero Quatro...

Você tem alguma dúvida?

5) O futebol vingou fora do governo porque governos têm que obter resultados. Não podem se preocupar somente em perpetuar-se e roubar. O domínio do esporte é dominado por mérito, e não por privilégios e laços de família. Ele existe com regras e, eis algo com que os nossos políticos ainda não atinaram: ninguém é campeão para sempre.

Seria o poder maior do que a lei? Sem dúvida, mas nas ditaduras. Nelas, porém — lembra? —, não há disputa, há obediência.

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