sábado, 24 de abril de 2021

Carlos Góes - Recuperação para quem?

- O Globo

Esta crise, mais que outras, é marcada por um grande hiato entre brasileiros que estão em distintas partes da distribuição de renda

Na última coluna (“O PIB e o Povo”), eu enfatizei que o PIB, apesar de ser uma medida de bem-estar muito importante, vai ser um indicador enganador em 2021. A razão é um descolamento entre a atividade econômica agregada e o mercado de trabalho. Enquanto a primeira já voltou ao nível anterior à pandemia, há 8 milhões de brasileiros a mais sem trabalho.

 Este é um sintoma de um fenômeno mais importante: o caráter profundamente desigual da crise econômica do coronavírus.

O mercado de trabalho reflete claramente a assimetria da crise. Segundo dados do IBGE, entre aqueles que têm ensino superior completo, que em geral têm maior renda, houve uma contração de 7% na população ocupada.

Já entre aqueles que têm escolaridade menor que o ensino médio completo, que tendem a ter renda mais baixa, há 16% menos pessoas trabalhando do que antes da crise.

Provavelmente a intuição do leitor já apontava nesse sentido. Os mais escolarizados dominam aquelas ocupações que conseguiram se adaptar à pandemia sem demitir. No lugar de trabalhar num computador no cubículo do escritório da empresa, os mais escolarizados passaram a trabalhar nesse mesmo computador, mas de casa.

Além de sofrer menos com a perda de empregos, as classes média alta e alta acabaram poupando com a pandemia. Se por um lado este grupo teve sua renda menos impactada pela crise, por outro ele foi forçado a gastar menos em atividades como restaurantes, viagens e outros serviços.

O resultado: a taxa de poupança subiu de 12,5% do PIB em 2019 para 15% do PIB em 2020.

Já aqueles que têm escolaridade menor que o ensino superior sofreram mais com a redução de postos de trabalho durante a pandemia. As perdas de emprego se concentraram nos setores de comércio; alojamento e alimentação; serviço doméstico; indústria geral; e construção civil.

Aproximadamente metade das perdas se deu entre trabalhadores com carteira assinada, enquanto a outra metade vem do setor informal.

Mais uma vez, a intuição do leitor já aponta na direção correta: em sua maioria, não são os mais ricos que trabalham no setor informal ou, quando formalizados, trabalham nos setores mencionados acima. Este grupo tem maior dificuldade de trabalhar de casa. Por isso, muitos perderam o emprego com o abre-e-fecha provocado pelo descontrole sanitário.

Dentre os que não perderam, muitos são trabalhadores essenciais e têm de se arriscar e continuar a trabalhar presencialmente.

Se os mais ricos aumentaram sua poupança durante a pandemia, os mais pobres foram mais duramente atingidos pela inflação. Segundo dados do Ipea, a inflação anual para a classe baixa chegou a cerca de 7% em março de 2021. Já para os mais ricos, a inflação foi de 4,7%.

Essa diferença ocorre porque boa parte do aumento de preços se concentrou em alimentos, e quem tem renda menor gasta uma parcela maior de sua renda com alimentos.

A única notícia boa para os mais pobres é que a situação poderia ser muito pior, não fosse pelo auxílio emergencial. Sem ele, a miséria poderia ter chegado a 15% da população em meados do ano passado, segundo estimativas do economista Daniel Duque, do Ibre/FGV. Por causa do auxílio, a renda dos 40% mais pobres aumentou, e a miséria caiu para menos de 5%.

Esta crise, mais que outras, é marcada por um grande hiato entre brasileiros que estão em distintas partes da distribuição de renda. De um lado, há aquelas pessoas que não perderam emprego e renda enquanto trabalhavam de casa; que se locomovem na segurança do seu carro; que trocaram cinema por Netflix e restaurante por iFood; e que acabaram poupando dinheiro no meio do caminho.

De outro, há aqueles que sofreram desproporcionalmente com perda de emprego; que tomam transporte público lotado; que se arriscam porque não têm opção; e que só não foram jogados à miséria por causa do auxílio emergencial.

Se 2021 for um ano de recuperação — e todos esperamos que seja — é preciso ir além dos indicadores tradicionais e focar principalmente no mercado de trabalho. Mais que isso, é preciso olhar os dados mais detalhados, para garantir que a recuperação alcance a maioria e não haja segmentos de trabalhadores deixados para trás. Quando vierem as manchetes sobre a recuperação, eu convido o leitor a fazer a seguinte pergunta: recuperação para quem?

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