Entrou
na moda proclamar que o Brasil converteu-se em risco biológico global
Sob
a hashtag #VariantBresilien, a xenofobia
contra brasileiros espalha-se pelas redes sociais e as ruas da França.
Na nossa língua comum, difunde-se também em Portugal (Folha, 17/4). O vírus tem
pátria?
No auge da
nossa segunda onda pandêmica, entrou na moda proclamar que o Brasil
converteu-se em risco biológico global. “O Brasil é uma ameaça à humanidade e
um laboratório a céu aberto”, disse Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz,
obtendo eco entre divulgadores científicos pop e comentaristas de jornais e TV.
É asneira —mas uma daquelas asneiras que se quer inteligente.
A fogueira da pandemia chegou ao Ocidente pelo túnel da Lombardia. Na época, ninguém teve a ideia de rotular a Itália como “ameaça à humanidade”. Depois, o incêndio tomou a Europa, antes de atingir níveis assombrosos nos EUA —e, felizmente, o rótulo repulsivo permaneceu sem uso. Por que o Brasil, não os outros?
Vírus sofrem
mutações. As mutações surgem por acaso, fixando-se segundo as regras da seleção
natural. Variantes mais contagiosas, possivelmente mais letais,
do coronavírus emergiram no Reino Unido, na África do Sul, nos EUA. O Brasil é
o berço da P.1, que circula também no Chile, na Argentina e no Uruguai. Nas ilhas
britânicas, identificou-se a B.1.1.7, hoje predominante na Europa e, talvez,
nos EUA. A sul-africana B.1.351 parece resistir à vacina da AstraZeneca. O que
há de singular com o Brasil?
As
variantes se difundem sem precisar viajar em aviões, navios ou automóveis, pelo
fenômeno da convergência evolutiva que propicia o aparecimento independente de
mutações similares em regiões geográficas diferentes. A Índia
ultrapassou o Brasil e lidera as estatísticas globais de contágio. Lá,
identificou-se a B.1.617, que carrega 13 mutações. #IndianVariant, vamos
brincar de xenofobia?
No rastro dos
atentados jihadistas do 11 de setembro de 2001, o Ocidente aprendeu
a lição abominável de associar o terror à figura do estrangeiro muçulmano. Duas
décadas depois, sob a pandemia, estreia uma versão adaptada do filme antigo que
associa um letal inimigo invisível aos estrangeiros. Trump escreveu o roteiro
básico; discípulos distraídos o imitam, introduzindo mudanças ajustadas às suas
próprias agendas políticas.
O
ex-presidente americano inventou o “vírus chinês”, correlacionando uma nação a
um agente infeccioso submicroscópico com a finalidade de cobrir o fracasso
sanitário de seu governo. No Brasil, o cordão de puxa-sacos liderado por
Bolsonaro e Ernesto Araújo reproduziu, à exaustão, o álibi xenófobo trumpiano.
Um ano depois, antibolsonaristas operam com o mesmo bisturi, apelando à
deturpação do discurso científico para identificar uma nação a variantes
daquele agente infeccioso.
Trump
disseminou a tese conspiratória de que o vírus foi fabricado num laboratório
chinês, do qual teria escapado para contagiar o mundo. O tema do Brasil como
ameaça biológica planetária bebe na mesma fonte e repete um refrão similar. “O
Brasil é um laboratório a céu aberto para o vírus se proliferar e eventualmente
criar mutações mais letais. Isso é sobre o mundo.” (Miguel Nicolelis). “O país
está se tornando uma ameaça global à saúde pública.” (Pedro Hallal).
Se
o fim é virtuoso, por que se preocupar com os meios? Que tal proceder como
Trump, quando se trata de alertar sobre a onda epidêmica avassaladora no
Brasil, denunciar o negacionismo sem fim do governo federal, salvar vidas? A
resposta é que, depois da pandemia, ainda haverá um mundo —e seus contornos
políticos serão largamente definidos pelos conceitos cristalizados nesses meses
sombrios.
Uma coisa é marcar a testa de Bolsonaro com o sinete da vergonha; outra, bem diferente, é traçar um círculo sanitário ao redor dos brasileiros. O vírus não tem pátria. Pandemias não têm hino ou bandeira. #IndianVariant, é por aí que queremos ir?
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