A ideia veio quando ontem, dia seguinte a mais um êxito de Lula, até aqui o mais decisivo, na busca de reconquistar sua elegibilidade junto ao STF, recebi de Gustavo Falcon, outro amigo baiano, um vídeo de uma fala do líder petista já com o carimbo #Lula 2022. A conversa avançou e comentamos que, no mesmo dia em que o STF lhe dava a senha tão almejada, viera a público a notícia da contratação do publicitário João Santana para comandar o marketing político de Ciro Gomes. Já achava que a coincidência merecia um azeite. O tempero final veio quando mostrei o vídeo de Lula a Guta, minha mulher, que teve, em vários momentos da vida, contatos com a praia profissional que João Santana frequenta. A conexão imediata que ela fez entre o vídeo e um jingle (“O retrato do velho”) da campanha de Getúlio Vargas de 1950 me fez perguntar: o PDT vai cobrar patente?
O
vídeo realmente nos remete à analogia com a volta de Vargas pelas urnas. “Seu
sorriso nos anima”, dizia o jingle, ao sugerir que todo mundo
pusesse o “retrato do velho” em sua parede. Nesse vídeo específico de Lula não
há sorriso algum, muito pelo contrário, mas a plateia (a favor e contra) não
perde por esperar, pois, como se sabe, a versatilidade do ator não pode ser
subestimada. Parece tratar-se, como supõe Gustavo, de uma peça destinada a
incendiar a militância, através da infalível alusão ao “golpe” de 2016, feita
com a cara de poucos amigos apropriada a um líder indignado e decidido a
retomar, para o PT, o leme que lhe foi arrebatado. Essa sugestão de revanche é
o segundo aspecto mais notável da fala. O primeiro é o que permite a analogia
com Vargas: a evocação de uma era de prosperidade e justiça social temporariamente
interrompida, a ser retomada pela vontade dos eleitores, especialmente aqueles
afetados (e aí está o momento de maior atualidade da fala) pelo flagelo da fome.
Essa não é algo natural, nem desígnio de um destino, mas escolha de algozes do
povo. Escolha que - faz questão de frisar – foi feita antes do capitão.
Como
entender o mesmo Lula aparecer, em março, no dia seguinte à sua primeira
vitória no STF, empático, sorridente, pacificado e acenando ao centro e, agora,
fazer circular, no dia seguinte a vitória ainda maior, um vídeo que retoma o nós
contra eles? Vale entender a ambivalência como cálculo, para esperançar o país
aqui, incendiar a militância acolá e ir levando assim a coisa, com o ânimo
anfíbio que faz da sua biografia política uma sanfona.
Mas
vi no vídeo mais que momento hard de uma ambivalência trivial. É relevante
a fuga do mero confronto direto e fulanizado com Bolsonaro, ou mesmo com o governo
atual e a ampliação consciente do leque de potenciais adversários para incluir
“golpistas”. Como sabemos que o impeachment teve apoio amplo, até em
áreas da esquerda, esse tipo de discurso, pelo seu potencial de isolamento, não
parece racional, se ele quer ser o centro, ou, ao menos, disputá-lo. Podemos
estar diante de uma racionalidade provisória, de quem pressente uma hipótese de
má notícia, não a ignora e tenta se preparar para novo cenário.
O
script eleitoral de Lula pode ter que mudar por virtual eclipse precoce
de um Bolsonaro que derrete em público, sendo imprevisível a reação do capitão (consequentemente,
seu destino) em caso de o derretimento não parar. Lula deve se prevenir, pois
esse fator, cada dia mais plausível, pode fazer o país precisar de um Biden e
não de um Vargas e assim ter efeito oposto ao das vitórias que Lula colheu no
STF. Talvez ainda não haja nova estratégia eleitoral para, eventualmente, substituir
a do combativo salvador do país do perigo (sério e real) da reeleição da besta
fascista, mas o faro político já registra o perigo. Por aí ganha sentido tirar Bolsonaro
do foco principal. Prepara-se para
enfrentar a centro-direita (relevante no eleitorado, como visto não só em 2016
e 2018, mas também em 2020) que não assistiria inerte ao avanço do petista e se
reagruparia de outro modo. Salvo engano, Lula sabe disso e se prepara para não
ficar pendurado no pincel da unidade se a direita mais hesitante se livrar de
Bolsonaro e procurar acordo com o centro liberal-democrático.
A
ida ao centro permaneceria sendo uma ideia e uma possibilidade para Lula, pois
experiência política e talento mimético não lhe faltam para isso, mas num
cenário sem perigo de reeleição de Bolsonaro essa ida não será o mesmo passeio.
Daí fazer sentido, enquanto pensa em nova estratégia, reforçar sua retaguarda à
esquerda com gritos de guerra em vez de acenos de paz, indignação em vez de
sorrisos. Na falta de outro expediente, estão à mão a narrativa do golpe, o
tema da fome e a evocação de um retorno análogo ao de Vargas. São discursos que
servem para cenários com ou sem Bolsonaro.
Mas
tem uma coisa. Vai ser difícil ocupar o centro sem pauta propositiva além da promessa
do retorno ao paraíso. Ao grande público a sanfona precisa se abrir para
ensaiar algo análogo a uma segunda carta aos brasileiros, na qual diga e pela
qual prove que apesar do “golpe” não guarda rancor. Improbabilidade que não
deve, porém, consolar seus rivais que se situam de Ciro à direita, porque por
lá as coisas não parecem bem arrumadas.
Após
a veiculação de um manifesto conjunto no final de março, o mês de abril transcorreu
em compasso de espera no chamado “polo democrático” e, na semana passada,
ouviu-se vozes na linha de que o caminho “não é bem por aí”. Contida, mas nem por isso irrelevante, foi a
fala do presidente do PSDB, Bruno Araújo, que verbalizou uma novidade em
relação à lógica atribuída ao manifesto conjunto. Disse que candidatura única
desse polo é "ingenuidade". De repente a tese de que devem ser duas candidaturas
surge como natural e "racional". Para bom entendedor significa que o
partido admira as disposições unitárias de seus possíveis candidatos, mas
dificilmente deixará de ter um. Para tanto terá prévias. No frigir dos ovos é a
mesma posição de Ciro Gomes, esse, porém, falando por si e levando, até aqui, o
partido de roldão. Sem a polidez tucana, deixou claro - em agressiva entrevista
a O Globo, na qual também distribuiu deselegâncias contra Lula e o PT - seu
não embarque num processo de discussão coletiva e “orgânica”, no âmbito do polo.
Para ele o manifesto foi evento solteiro, assinou-o em atenção ao empenho pessoal
de Luiz Mandetta e à conjuntura na qual se ensaiava uma crise militar às
vésperas de um 31 de março.
Duas
reflexões se impõem, a meu ver. Primeiro está confirmado, pela enésima vez, que
articulações interpartidárias, por bem intencionadas que sejam, não geram candidatura.
Esses fóruns são importantes para bater martelo quanto a discursos comuns e
para decidir pela continuidade, ou não, de projetos de candidaturas que se
viabilizem antes, no campo aberto do diálogo midiático. E é disso que Ciro
Gomes (mas não só ele) está tratando. A segunda reflexão é que PDT e PSDB
tendem a ter candidaturas irremovíveis (ainda que a tucana ainda não exista). O
recado aos demais sobre candidaturas é evidente: entre essas duas escolham a minha,
ou criem mais uma. Um problema que parece não estar sendo levado em conta é que
entre os “demais” está, de certo modo, o DEM. Um signatário do manifesto – e seu
principal articulador - é quadro, ainda que não dirigente, desse partido.
Como
um campo político com a dinâmica centrífuga do “polo” pode se colocar diante
dos movimentos de Lula? É previsível que seja de modo reativo e com retardo e é
o que se tem visto. O DEM, no entanto, tem outras condições objetivas pois sua
assumida independência em relação ao governo e ao próprio “polo” centrista
permite-lhe influir em movimentos de setores governistas quanto a conservarem
ou não o apoio a Bolsonaro. Essa posição objetiva permite-lhe, no caso do
candidato governista e do centrão ser mesmo Bolsonaro, amealhar dissidentes
para apoiar uma candidatura nascida no centro, que lhe interesse (Huck?), ou que
até pode ser sua (Mandetta). E no caso de Bolsonaro se inviabilizar, ser um eixo
articulador importante de uma candidatura alternativa nascida na
centro-direita, podendo aí também ser dele um candidato como Rodrigo Pacheco. Esse
espectro, sim – não o de um centro “puro”, equidistante entre “extremos” - pode
preocupar Lula, daí fazer sentido ele exumar, a essa altura, o tema do golpe. O
faro de Lula deve se lembrar de 1994, quando um ano antes da eleição ele era
imbatível e acabou derrotado.
O
Lula de 2002 precisará entrar em campo. Será imprescindível disputar o centro
para que não se forme contra ele uma ampla aliança, do centrão ao PDT, quiçá
partes do PSB. Ir ao centro ele vai, mas com que roupa? Dessa vez não há plano
Real a conservar. Terá que sair uma proposta nova, que lide com uma crise
nacional realmente funda e nova, muito diferente das marolas do segundo mandato
de FHC. E que lide também com uma crise mundial nova, com ingredientes diversos
da de 2008, que pode então ser enfrentada com medidas controversas, mas
assimiladas por graus de consenso político que hoje inexistem. Os defensivos anos
Hoffmann, em que se impôs ao PT a prioridade ao Lula livre - trouxeram, além de
mais isolamento político, regressão maior na qualidade do discurso e na
capacidade de formulação do partido. O
retrato do velho ajuda, mas não basta.
A
situação poderia, em tese, cair como luva nas mãos de Ciro Gomes, se Ciro não
fosse Ciro. Pelo recall eleitoral, poderia concretizar a “terceira via”
com que uma disposição centrista presente na sociedade brasileira sonha desde
tempos imemoriais. Além disso, ele poderia ser válvula de escape para um
eleitorado de centro-esquerda desiludido com o Brasil e o PT e, ao mesmo tempo,
via eleitoral afirmativa e não defensiva para uma centro-direita constrangida
pelo apoio dado a Bolsonaro. Adversários do PT não teriam opção melhor que um
candidato do PDT para enviar de vez ao arquivo a narrativa do golpe de 2016.
Claro
que isso não bastaria porque seria preciso também responder de maneira atual à
crise atual, o mesmo desafio que está posto ao PT. A importância de um chamado
ao pragmatismo, com suspensão de juízos doutrinários abrangentes, tendo como
fio condutor e critério básico para escolhas concretas de política econômica o
momento de transição da economia no mundo, em que o fator ambiental se tornou
decisivo e imperativo. Igualmente as especificidades do contexto brasileiro,
sejam conjunturais, sejam as derivadas de nossa experiência histórica. E tão
importante quanto o conteúdo, o método. Um contraponto ao voluntarismo que
marca a condução da atual política econômica, necessidade que aumenta quando se
tem em conta as conexões globais que limitam a “imaginação” econômica. Esse é terreno em que imaginação é ferramenta
de alto risco para enfrentar o que ocorrer, isto é, os desencontros mais que
prováveis entre a teoria e a realidade, para cuja gestão é preciso prudência e
não voluntarismo; política e não ciência.
Depois
de Bolsonaro e Paulo Guedes, suponho que pouca gente, seja empresário ou
trabalhador, elite ou povo, está disposta a dar um cheque em branco a alguém. A
primeira certeza de que se precisa na aldeia em que o obscurantismo nos
converteu é que uma nova liderança política nos devolverá ao mundo, resgatando
a vocação moderadamente cosmopolita (benção aqui a Luiz Sergio Henriques) que
sempre nos distinguiu. E a garantia de que, internamente, haverá, além de
planos, processos pactuados de decisão nos quais o presidente não será nem
mandachuva nem feiticeiro.
Sem
uma pactuação dessa ordem na condução da economia não será veraz qualquer
promessa de que a redução de desigualdades terá uma prioridade elevada à
condição de pano de fundo que corte transversalmente as demais dimensões do
pacto. Isso exclui tratamentos de choque. É metabolização governamental de uma
atitude política perene e abrangente de reduzir desigualdades e promover inclusão
social e cidadania. Até porque democracia não é moldura política propícia a
choques providenciais nesse terreno e isso precisa ser dito com franqueza e
clareza pois é divisor de águas em relação a populismos.
Esses
desafios social-democráticos seriam (também em tese) mais afins a um polo
liberal-democrático ou a uma esquerda com teor de republicanismo maior que o
encontrado no PT. Mas a coisa complica quando se passa da tese à realidade, na
qual é preciso considerar as limitações dos atores. Esquerda republicana é pessoa
pública ausente e o campo liberal-democrático um conjunto de átomos mal
agregados e presos ao varejo. Daí que o desafio está aí, mas não tem
destinatário certo.
Ele
pode se dirigir a algum ator – quadro ou partido – do poroso campo que se
espraia do PDT ao DEM. De novo, em tese: um candidato mais à esquerda seria
melhor para essas forças pela maior chance de isolar Lula. Uma excelente
matéria publicada pela revista Veja e assinada pelos jornalistas João
Pedroso de Campos e Gabriel Mascarenhas, mostra, sob a chave de um dilema, os
limites de Ciro Gomes para assumir esse papel. Insuperáveis? Não há como dizer.
Mas são sensatas as dúvidas suscitadas pela sua personalidade, digamos,
autocentrada, à qual se junta uma concepção vertical e voluntarista da política
e a pretensão específica de quase onisciência sobre caminhos para solucionar os
problemas econômicos do Brasil. Em que direção atuará sua conexão com João
Santana é outra incógnita porque a mesma expertise do segundo popularizou
“Lulinha paz e amor” em 2002 e fez o “bateu levou” cancelar Marina Silva nas
eleições de 2014. Dizem que um bom marqueteiro não inventa um cliente, mas
converte em vantagem o que o cliente já é. Se for assim, a campanha promete
dobrar as apostas maniqueístas de 2014 e 2018.
Quando
se pensa nisso tudo, sobressai uma distância grande para aquele ator que foi Fernando
Henrique Cardoso na costura da aliança de 1994.
Abre-se então uma brecha para que nesse polo vingue outro personagem, mesmo
com origem mais à direita. Mandetta e Eduardo Leite estão na área, parece que
Huck quer voltar a ela, enquanto Dória talvez fique na instância estadual. Huck
tem comunicação popular, mas contra si o amadorismo político e a inexperiência
administrativa evidentes. Mandetta e Leite não têm esses senões e podem ter a
seu favor os pesos dos seus respectivos partidos. Mas são vantagens incertas.
No caso de Leite, pelo clima interno do PSDB. No de Mandetta, porque um
possível esvaziamento da candidatura de Bolsonaro pode levar o DEM a se tornar síndico
de outro projeto. E aí?
Essas
incertezas e indefinições existem, mas os desafios que mencionei também. Seu
apelo objetivo vai se impor a quem estiver em posição eleitoralmente relevante,
seja qual for seu berço ideológico. Por isso o desafio pode ser também lançado
à esquerda realmente existente, porque quem a encarna é Lula, personagem
complexo que não cabe todo nessa gaveta. Tanto quanto Ciro, ou Mandetta, Lula
pode conduzir politicamente um pacto nacional pelo qual uma centro-esquerda concede
na economia, em troca de consentimento conservador a uma pauta de progresso social.
Ou ao inverso, uma plataforma orientada a uma economia de mercado faz
concessões a uma pauta social, em troca de um ambiente de cooperação para
reformas de sentido liberal. O contexto internacional, pelos efeitos da
pandemia e pelos movimentos dos EUA sob Biden, torna as partes envolvidas num
pacto dessa natureza sensíveis a uma convergência social-democrática mais
sólida.
Na
política interna o derretimento de Bolsonaro relaxa tensões imediatas e tem
efeitos ambíguos. De um lado encoraja apostas em políticas de entendimento, de outro,
libera impulsos de competição no interior do campo democrático. A precaução
óbvia é não dar como fato o que é apenas uma possibilidade. O que nos devolve
ao começo da conversa. Lula falando do centro para agregar forças heterogêneas contra
um risco de eleição de Bolsonaro e Lula disputando o centro com uma aliança
liberal formada contra ele são dois cenários verossímeis. Quem quiser
derrotá-lo não pode errar na política. Nem ele, se quiser vencer. O amadorismo
político é o erro fatal que ameaça seus adversários. Livre dele, Lula corre
outro: achar que basta pedir ao eleitor para colocar seu retrato na parede.
*Cientista político e professor da UFBa
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