A sociedade
indígena era nômade, tinha um sistema de troca em forma de escambo e a divisão
de trabalho entre os homens e as mulheres era baseada no sexo e na idade. Os
homens preparavam a terra para a produção de alimentos, caçavam e pescavam. As
mulheres semeavam, plantavam e faziam a colheita. Ainda faziam a fiação de
algodão, teciam as redes, cuidavam dos animais domésticos e preparavam as
raízes e folhas para a produção de cauim e os rituais. Havia uma atenção
especial aos idosos e às crianças por eles representarem a história e a
continuidade da comunidade.
As comunidades
indígenas das Américas foram se transformando e se adaptando, ao longo de milhares
de anos, a uma convivência com a natureza, da qual dependia sua existência
física e espiritual. Assim viveram até à
chegada dos colonizadores europeus que escravizaram, destruíram e transformaram
completamente a vida dessas populações indígenas no continente americano.
A cultura dos colonizadores de produzir e acumular riquezas, de tudo virar mercadoria para Portugal e o comércio mundial já estabelecido entrou em choque com a vida nômade, de não acumulação de bens das comunidades indígenas. As relações iniciais de curiosidade e de trocas e de dependência dos portugueses aos índios para a sobrevivência ao longo do litoral brasileiro, foram se transformando em relações de conflitos entre os colonizadores e colonizados que passaram a ser obstáculo na ocupação da terra e, ao mesmo tempo em que os portugueses precisavam da força de trabalho indígena para o modelo de colonização extrativista que se implantava.
A partir das
Capitanias hereditárias, distribuídas por D. João III, rei de Portugal, em
1534, ampliam-se consideravelmente esses conflitos e contradições do modelo de
colonização imposto com as armas, a ferro, e a religião, com a exploração dos
recursos naturais, cujo maior símbolo de devastação foi o pau-brasil. A
construção de engenhos precisava de mão de obra escrava seguindo o modelo usado
pelos portugueses nas Ilhas da Madeira e de São Tomé. Inicialmente, a
escravização indígena se colocou como solução do modelo econômico a ser
implantado no Brasil. A escravização africana é posterior, começando a ser
significativa a partir de 1550, quando o tráfico de escravos passou a ser um
lucrativo negócio, além da própria mão de obra escrava em si, substituta do
trabalho escravo indígena.
Em 1549, Portugal
criou o governo geral do Brasil e Tomé de Souza foi nomeado seu governador.
Chegou a Salvador, em 1549, e construiu a primeira capital do país. Começou, desde então, o massacre das
populações indígenas que se estende até a atualidade. Tomé de Souza orientava o
seu governo a destruir as aldeias, matar e punir rebeldes, de maneira exemplar.
Os governos gerais continuaram com esse genocídio e o de Mem de Sá ficou
conhecido como o mais violento de todos do período, vangloriando-se da
destruição das aldeias, através de incêndios e utilizando até balas de canhão
contra as populações indígenas. Junte-se a essa situação a imposição cultural e
religiosa trazida pelos portugueses, obrigando as comunidades indígenas às
mudanças de hábitos culturais e espirituais consolidados há milênios.
Desde então, em
toda a América e no Brasil, foi consolidado um modelo colonial com o predomínio
e a lógica do terror das armas, da imposição religiosa e enfermidades não
conhecidas até então no continente americano, sempre é bom lembrar nestes
tempos de Pandemia, a exemplo da gripe, trazidas pela colonização europeia que
dizimou milhões de índios em todo o nosso continente e em nosso País.
Aqui, a expansão
do domínio colonial para o interior, a criação de gado e a exploração de ouro e
de diamantes deram a tônica de conquista do território e a continuidade do
extermínio das aldeias indígenas, iniciada na ocupação do litoral atlântico e
que se expandiu com o ciclo da cana de açúcar.
São estes os
fundamentos originais da sociedade brasileira, desde o período colonial, que
continua no Império e na República, juntos com a escravização africana, os
quais ajudam a entender como foi construída a sociedade brasileira, os
conflitos e as contradições atuais.
A Constituição de
1988 consagrou o princípio de que os indígenas são os primeiros e naturais
senhores da terra. Portanto, o direito deles à propriedade da terra independe
do reconhecimento formal. A definição está no parágrafo primeiro do artigo 231
da Carta Magna: são aquelas terras “por eles habitadas em caráter permanente,
as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”,
observando, no artigo 20, que as terras indígenas são bens da União,
sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Ela estabeleceu
também um prazo para a demarcação de todas as Terras Indígenas: 5 de outubro de
1993, o que não ocorreu até hoje. Assim, estas comunidades no Brasil continuam
a lutar por seus direitos histórica e atualmente desrespeitados pelos
governantes e uma boa parte da sociedade brasileira.
Segundo os
resultados preliminares do IBGE (2010), nossa população indígena hoje é de
817.963 pessoas, das quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as
zonas urbanas brasileiras. Vive a maioria de maneira precária, com muitos povos
indígenas com suas terras ainda a serem demarcadas, em todo o território
brasileiro.
Qual é a
responsabilidade e os compromissos da sociedade brasileira frente à realidade
atual das nossas comunidades indígenas? O que cada um de nós pode fazer para
mudar esta realidade?
São questões a
serem enfrentadas por todos os brasileiros e brasileiras se quisermos
efetivamente superar esta atual realidade, em plena Pandemia.
Como dialogar e
construir alternativas a esta realidade com a própria população indígena,
respeitando a sua cultura e a sua maneira de ser e existir hoje no Brasil?
Os mecanismos
constitucionais existentes e o modelo da FUNAI atendem às expectativas dessas
comunidades indígenas? Como anda a escuta e o diálogo dos governos federal,
estadual, municipal e da própria sociedade civil em relação a estas comunidades?
A realidade atual
do Brasil é caótica frente à crise econômica e de saúde pública que estamos
vivendo. Cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares, de oxigênio,
de assistência médica em geral, inclusive na área privada, colocam, nesse
segundo ano de Pandemia, a incapacidade dos Governos Federal, dos Estados e dos
Municípios e da sociedade civil, de construir um programa consensual para o
enfrentamento dos problemas urgentes desnudados pela Covid-19. As estatísticas
de milhões de contaminados, chegando a 400 mil mortes, são espetacularização
diariamente pelos meios de comunicação e continuam invadindo nossas casas.
O que podemos
fazer?
O Governo
Federal, principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia,
não aponta caminhos para enfrentar efetivamente a crise sanitária que estamos
vivendo, o que só faz agravar a situação. As falsas narrativas e os embates
entre os entes federativos não resolveram e nem vão resolver a difícil
realidade que estamos vivendo.
No Brasil, como
sempre, os que mais precisam do Estado ficam abandonados à própria sorte. As
comunidades indígenas, como a sociedade em geral, procuram reagir colocando a
urgência dos problemas cotidianos já enfrentados anteriormente e os a serem
enfrentados em razão da Pandemia. A Sociedade pode e deve ser cobrada no
processo de construção de uma alternativa democrática a esta triste realidade
brasileira, desnudada pela Covid-19.
As comunidades indígenas
devem ser parceiras nesta construção. Qual deve ser o nosso diálogo com elas?
Elas têm muito a
nos dizer em relação à natureza, à preservação da nossa biodiversidade, dos
nossos rios, na alimentação, na música, na dança e na cultura brasileira em
geral. É são fundamento no uso e na preservação dos nossos ativos naturais de
um Brasil que pode e deve potencializar essas vantagens comparativas a favor de
uma sociedade sustentável, com uma economia de baixo carbono, de inclusão
social e de preservação da nossa exuberante natureza tropical, incorporando conhecimentos
ancestrais em diálogo com outras culturas nacionais, apoiados no conhecimento
cientifico e tecnológico a favor da própria comunidade indígena e de toda a
sociedade brasileira.
Ainda é possível?
Os desafios são
políticos, econômicos e sociais. A curto prazo, urge a realização de um
Programa Nacional de Vacinação que, com a urgência devida, proteja a todos os
brasileiros e brasileiras, ainda este ano, evitando assim o aumento vertiginoso
do número de contaminados e mortos, como vem acontecendo desde o início da
Pandemia, inclusive de maneira preocupante nas próprias comunidades indígenas.
São questões imediatas a ser enfrentadas pelos que detêm mandatos, pela
Federação e por toda a sociedade brasileira.
Portanto, é
possível a construção de uma alternativa para enfrentar e superar os nossos
desafios históricos e atuais, abrindo o diálogo necessário entre as forças
democráticas, no caminho de uma pauta reformista que leve a um efetivo
enfrentamento dos problemas econômicos, sociais e ambientais vividos pelas
comunidades indígenas no Brasil.
Finalmente, há
que se considerar a necessidade de uma visão sistêmica no processo de
construção das políticas públicas no Brasil e no enfrentamento da própria
questão indígena, considerando as suas especificidades culturais e regionais.
Colocando como imperativo a escolha de prioridades, através de dialogo
permanente entre as comunidades indígenas, os governantes e a sociedade em
geral precisam garantir a implementação de políticas públicas voltadas para
essas comunidades, articuladas às políticas públicas em geral, sob
responsabilidade municipal, estadual e federal com foco na melhoria do
bem-estar das comunidades indígenas e de toda a sociedade brasileira.
Os desafios
econômicos, sociais e ambientais da sociedade brasileira devem ser enfrentados
ampliando a nossa capacidade de diálogo e de construção de pactos políticos que
avancem e consolidem a democracia brasileira no caminho de transformar a nossa
injusta realidade política, econômica e social para uma governança que se quer
democrática e realizadora das mudanças necessárias durante e pós-pandemia.
Assim, o
enfrentamento da situação indígena e as suas especificidades devem ter
visibilidade nacional e regional com a criação de mecanismos institucionais de
acompanhar e avaliar permanentemente a realidade das comunidades indígenas no
Brasil, fortalecendo essas comunidades nas relações entre si e os entes da Federação no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, desafiando os
aborígenes e o poder público em geral à construção de novas relações entre os
atores políticos, econômicos e sociais da Federação, na busca da sustentabilidade
econômica, social e ambiental das comunidades indígenas como parte integrante
da sociedade brasileira, considerando a
nossa rica diversidade cultural e espiritual.
Seremos capazes?
*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBa, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia.
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