A carreira política de Raul Jungmann, de 69 anos, passou por extremos. Nascido em berço esquerdista, Jungmann lutou contra a ditadura militar quando ainda era universitário ao ingressar no MDB. Depois, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Sua trajetória começou a mudar quando integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Durante esse período, Jungmann estreitou relações com as Forças Armadas, o que se intensificou durante seus mandatos como deputado federal, até transformá-lo em ministro da Defesa no governo Temer. Foi nessa época também que passou a defender a proibição da venda de armas no País. Por essa razão, virou ministro da Segurança Pública em 2016.
Atualmente,
Jungmann continua militando pela regulação de armas e pela democracia. Em entrevista
à ISTOÉ, o ex-ministro criticou a política armamentista de Bolsonaro, sugeriu
que o presidente tenta formar milícias para se sustentar no poder e afirmou que
o ex-capitão é o principal responsável pela grave situação do País na pandemia
“Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de
negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária
que nós estamos vivendo hoje”.
As trocas de ministros e de comandantes das Forças Armadas, além das mudanças na PF, feitas por Bolsonaro, configuram uma tentativa de o presidente interferir nessas áreas?
É privativo do presidente a substituição de cargos comissionados. Sob o aspecto
legal é normal. O que parece anormal é o fato de termos tantas mudanças na PF.
Isso sim caracterizaria uma intervenção na PF, que é descabida. A PF é a
Polícia Judiciária da União. Evidentemente ela tem que ter autonomia, sobretudo
face às funções que ela tem. Esse excesso de intervenção mostra interesse de
dar uma direção política a um órgão de Estado e que não pode ser politizado.
Essa sequência de mudanças e essa busca de politizar a PF desserve aos
critérios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade que um órgão
como esse tem que ter. Isso significa uma tentativa de intromissão no domínio
legal. Não contribui para a democracia e tampouco para a independência dos
poderes.
O Ministério da Justiça fez uso da LSN para abrir inquérito contra críticos a Bolsonaro. Qual a opinião do senhor sobre o assunto?
O Congresso tem falhado desde a redemocratização em dar ao País uma lei de defesa do Estado Democrático. Para mim, a principal responsabilidade é do Congresso. Na medida em que a legislação que você tem de defesa do Estado é uma lei do regime militar, ela termina sendo usada. Evidentemente que ela está sendo empregada abusivamente. E também acho que vem sendo usada com finalidade política. O Congresso já deveria ter aprovado uma lei do Estado Democrático.
Polícias estaduais também usaram a LSN para prender pessoas. Como o senhor classifica essa relação que Bolsonaro estabelece com as polícias nos Estados?
Eu fui companheiro de Bolsonaro na Câmara durante 12 anos. A clientela dele
eram os militares e os policiais. Uma parte dessa polícia é base do presidente,
que comunga dos mesmos valores e das percepções dele. O que acontece é que isso
leva, às vezes, a excessos, como é o caso dos rapazes presos por policiais do
DF em Brasília. De fato, é um exagero você necessitar prender manifestantes com
base na LSN. E isso, inclusive, tem sido repelido e negado pelo Judiciário, que
não tem dado guarida a isso. Existe, de um lado, a falha do Congresso. De
outro, existe um uso excessivo e político da legislação. Mas, ao mesmo tempo,
pelo fato de não termos outra lei, terminamos utilizando uma legislação que é
obsoleta. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada.
O STF mandou o Senado instalar a CPI da Covid-19. Qual deve ser o foco das investigações da CPI?
O Senado não tem mandato para investigar estados e municípios. É
inconstitucional. O que cabe é investigar a transferência de recursos federais
para estados e municípios. Em termos de responsabilidade, a maior é do governo
federal, sem a menor sombra de dúvida. Porque Bolsonaro exerceu o papel de
descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos
brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo
hoje. Acho também que o principal foco da CPI deve ser o de investigar o papel
do governo federal, da Presidência da República e do Ministério da Saúde, os
principais responsáveis pelo caos.
O senhor acha que Bolsonaro agiu corretamente quando escalou o presidente do Senado para articular a montagem do comitê de emergência da Covid-19?
A relação administrativa entre as esferas da União não são delegáveis a outros
poderes. Quem tem atribuições constitucionais para estabelecer essa
coordenação, obviamente, é o governo federal. Na prática, essa comissão é uma
comissão natimorta. Esse papel é do Executivo. Não é do Legislativo, por melhor
que seja a boa vontade do presidente do Senado. Essa comissão rapidamente
desapareceu. O presidente tinha que criar uma unidade nacional. Tinha que
promover um movimento que congregasse os poderes, União, estados, municípios e
oposição em torno da questão de salvar vidas. E Bolsonaro faltou com esse papel
de forma equivocada. Preferiu litigar, se contrapor a governadores e prefeitos,
politizando algo que é inadmissível. Estamos lidando com a vida das pessoas.
Não estamos numa causa política. Falta visão de estadista a Bolsonaro.
Mesmo assim essa tentativa de união veio tarde demais, não?
Sim, veio tarde. Já perdemos um ano e dois meses e quase 400 mil vidas. Mas
sempre é hora para minimizar danos. Em que pese as críticas que faço, espero
que o presidente reveja sua posição. Porque têm vidas em jogo. É uma dor que o
Brasil carrega. É insuportável. Outra coisa é o desemprego, a fome e a falta de
vacinas. Quando a necessidade ultrapassar o medo, aí sim nós teremos problemas
sociais. Por isso que a gente tem que cuidar da vacina. Essa é a grande saída.
De outra parte, precisamos reativar a economia. Não adianta separar as duas
coisas. Tem que salvar as duas coisas. Mas a locomotiva disso é a vida.
Como o senhor classifica as acusações contra o presidente sobre o suposto uso da Abin para orientar a defesa de Flavio Bolsonaro no caso Queiroz?
A Abin é o órgão central do sistema de inteligência nacional. É um órgão da
presidência para manter o presidente informado e apoiá-lo na tomada de
decisões. Esse sistema de inteligência tem que estar submetido a critérios
rígidos de controle. Como órgão de Estado, a Abin jamais pode estar a serviço
de qualquer interesse privado, seja familiar do presidente, ou de quem for.
Caracterizaria como crime caso fosse usada dessa forma. A Abin é um órgão de
Estado. Não compete a ela nenhum tipo de atividade que seja em benefício de
interesses privados. Isso significaria desvio de função, o que é inaceitável.
Qual é sua opinião sobre o projeto armamentista de Bolsonaro? Não seria arriscado defender que a população seja armada durante a pandemia?
Isso me preocupa. Sempre me posicionei que as armas fossem controladas. Mais
armas significa mais mortes. Esse debate sempre foi feito na esfera da
segurança pública. O presidente trouxe essa questão para a esfera
político-ideológica. Fez isso ao dizer que precisávamos armar os brasileiros
para que eles defendam a liberdade e não sejam escravos. Ele quebrou o
monopólio da violência legal, que pertence ao Estado. Ele está ferindo o
Estado, que é a parte que representa a soberania da nação. Bolsonaro está
também ferindo o papel constitucional das Forças Armadas. Se o Estado tem o
monopólio da violência legal, a última trincheira, a defesa que tem o Estado,
são as Forças Armadas. Se você quebra o monopólio, você está criando um poder
paralelo que tende a se contrapor às Forças Armadas.
O senhor está se referindo às milícias?
Sim, às milícias, bandos e grupos insurgentes. Não interessa. Se você arma
brasileiros sem que exista qualquer ameaça ao Brasil ou à democracia, você está
armando brasileiros contra os próprios brasileiros. Isso tem um nome
horripilante: guerra civil. Na história, todas as vezes que alguém armou a
população teve genocídio, massacre, golpes de estado. Por isso, foi tão
importante a reação da ministra Rosa Weber. Os decretos representam exatamente
a massificação do derrame de armas e munição para a população. Entre 2019 e
2020, a PF verificou um crescimento de 90% no registro de armas. Além do mais,
grande parte dessas armas acaba parando nas mãos do crime organizado. Isso me
preocupa, sobretudo quando a gente pensa no que aconteceu no Capitólio, nos
Estados Unidos. E nós temos eleições presidenciais em 2022.
Bolsonaro entrou em atrito com os militares ao trocar o ministro da Defesa e o comando das Forças Armadas. O senhor acha que Bolsonaro tentou dar um autogolpe?
Não foi uma tentativa de golpe, porque não existe golpe no Brasil sem o apoio
das Forças Armadas. O que Bolsonaro tentou fazer foi motivar as Forças Armadas
a endossarem seus atos e ações, inclusive para constranger os outros Poderes.
Como o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não concordaram
com isso, o presidente os demitiu. Não existe nenhuma razão para ele ter feito
isso. A explicação é que foi uma intervenção política e uma punição às Forças
Armadas, que não endossaram uma aventura autoritária. As Forças Armadas estão
totalmente indisponíveis e não aceitam qualquer tipo de aventura
antidemocrática no Brasil. O efeito foi o contrário. Um sonoro, uníssono,
sólido “não”.
O senhor acha que a democracia corre riscos?
Temos aqui o presidencialismo de coalizão. Mas Bolsonaro aderiu ao presidencialismo de colisão. É o presidente da antipolítica. Preferiu optar por constranger outros Poderes. Dizendo ter a espada e ter apoio dos militares. O que ele não tinha. E dizendo também que tem o apoio das massas. Com esse presidencialismo baseado no constrangimento de outros Poderes, Bolsonaro fracassou redondamente. O STF não se dobrou. O Congresso tem um projeto autônomo, apesar de o presidente ter passado a negociar com o Centrão. E isso está manifestamente demonstrado no caso desse orçamento inadministrável. Esse orçamento é a expressão acabada de que o governo perde a capacidade de governar. Chegar nessa situação é a demonstração clara de perda de capacidade de governar. Independentemente de seus interesses, de seus desejos, o presidente vem tendo das instituições brasileiras uma resposta muito clara: de que elas não aceitarão qualquer tipo de desvio do rumo democrático. Não há disposição, nem vontade de ninguém para embarcar em qualquer aventura autoritária.
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