O
momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos
É
preciso compreender a dificuldade das oposições democráticas de se contraporem
ao governo Bolsonaro.
Elas
hoje preenchem um espaço amplo, vão da direita à esquerda, passando pelo imenso
centro, cada pedaço com suas legítimas pretensões e seus problemas. Nas que se
inclinam para o centro, o déficit passa pela ausência de lideranças
incontestes, de um programa claro e de uma identidade substantiva.
As
esquerdas não estão em melhor condição, embora estejam a comemorar a volta de
Lula, que as magnetiza e seduz, agora com o adicional da absolvição conquistada
e da incorporação de um papel de injustiçado perseguido político. Roda-se em
torno de Lula como se dele emanasse a luz.
O que há de consenso cívico de repúdio e desejo de mudança não se traduz em consenso político e plataforma de atuação. Há ensaios unificadores e um esforço dedicado para que as oposições baixem o tom e conversem olho no olho. Manifestos, debates e proclamações indicam isso com clareza, o que é um alento. Mas não foram dados os passos decisivos, aqueles que fazem uma equipe vencedora. O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos.
As
oposições ainda estão a lamber as feridas da derrota de 2018. São feridas que
tardam a cicatrizar, manuseadas nem sempre com habilidade. Enquanto
permanecerem abertas, dificultarão aproximações e convergências, com o passado
recente cobrando seu preço e embaçando o futuro. Além disso, há elementos que
complicaram demais as interações, a começar da pandemia.
A
pandemia tem lógica própria, deve ser enfrentada com toda a energia. Está
expondo nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de resposta da
ciência. Além dos estragos que provoca em termos de vidas e de pressão sobre o
sistema sanitário, ela se mistura com os desdobramentos da revolução
tecnológica do nosso tempo. A economia está desafiada, assim como o mundo do
trabalho. Não há como fazer funcionar o que ficou para trás, em termos de
arranjos sistêmicos, padrões organizacionais, práticas e leis. Tudo terá de ser
repensado, seja para conter a disseminação da covid, seja para desenhar as
políticas que serão necessárias para reforçar a saúde e proteger os
desassistidos. Será preciso, além disso, reconfigurar o modo de organizar
atividades produtivas, trabalhar, consumir, estudar. Estamos às portas de um
começar de novo, tamanhas são as transformações com que temos de lidar.
Assistimos
ao processamento de uma espécie de metamorfose, que da vida material atinge
todas as esferas existenciais. Em termos políticos, centro-direita,
centro-esquerda e esquerdas deveriam suspender temporariamente suas
particularidades doutrinárias e ideológicas para promover a formação de um polo
democrático encorpado, flexível e plural, que proponha uma política e uma
governação com a marca da inovação. O momento pede que os democratas calcem as
botinas da humildade e amassem barro no Brasil profundo. Não cabem jogos de
cena, reiteração de projetos pessoais e checagens da força relativa de cada um.
Na
política, diferenças, disputas e antagonismos não devem ser temidos. Funcionam
como motores de organização e esclarecimento, na medida em que dialogam com o
conjunto da sociedade e interpelam o imaginário social. Não são, porém,
definitivos, compõem-se e se recompõem de múltiplas formas ao longo do tempo,
criando novas exigências. Polarizações que remontam ao passado não ajudarão a
que se pavimente o futuro. Se todos os democratas vencerem, haverá espaços para
antagonismos mais profícuos e substantivos.
Não é fácil encontrar o ponto ótimo a partir do qual possa ocorrer tal convergência. A unidade política não exclui a diversidade, antes se alimenta dela. Constrói-se mediante muitos esforços, tensões e concessões, requerendo retomadas continuadas.
A
definição desse pacto político se beneficiará da afirmação, pelos
protagonistas, de alguns princípios básicos. Uma sociedade socialmente justa em
termos de renda, oportunidades, etnia e gênero. Uma ideia de governo como
operação cooperativa, que funcione como um colégio de líderes e especialistas,
com um Executivo democratizado. A recuperação dos grandes sistemas públicos, a
saúde, a educação, a assistência, o meio ambiente, a cultura, as relações
exteriores, a segurança. O reconhecimento de que não deve haver tolerância com
a corrupção, seja qual for a forma que assuma. Um reformismo de longo prazo,
constante e progressivo, a ser definido por consultas constantes aos cidadãos.
Uma ideia sustentável de desenvolvimento, que valorize e respeite o meio
ambiente, o trabalho e o consumo consciente.
São
pontos genéricos. Mas se forem proclamados firmemente pelos que se dispõem a
governar o País, poderão mostrar que a política tem dignidade e mobilizar os
cidadãos em prol da recuperação do Estado, com sua institucionalidade e seus
deveres, da valorização da República (do bem público) e da reconstrução da
solidariedade, que são a cada dia mais indispensáveis.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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