EDITORIAIS
Setor produtivo deve firmar compromisso com
a democracia
O Globo
Teria sido oportuno o manifesto do setor produtivo em defesa da Constituição e
do equilíbrio entre os Poderes da República. O documento vinha sendo escrito
nos últimos dias como tentativa de transmitir um recado claro de compromisso do
empresariado com a democracia diante dos acenos golpistas do presidente Jair
Bolsonaro. Foi adiado depois da conversa entre os presidentes da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp),
Paulo Skaf. No começo de agosto, economistas, banqueiros e empresários
assinaram um documento defendendo as instituições. O manifesto avançava ao
somar à assinatura de cidadãos a de entidades. O peso é outro.
Intitulada “A Praça é dos Três Poderes”, a versão do texto a que o GLOBO teve acesso não tem nenhum caráter partidário. Não faz menção à absurda campanha de desinformação contra o voto eletrônico nem às sucessivas ameaças de Bolsonaro a integrantes do Supremo. Reitera apenas que o princípio da harmonia entre os Poderes “está presente de forma clara na Constituição Federal, pilar do ordenamento jurídico do país”. “Diante disso”, prossegue o texto, “é primordial que todos os ocupantes de cargos relevantes da República sigam o que a Constituição nos impõe”. Em seguida, o documento lembra que “o momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional e, sobretudo, foco em ações e medidas urgentes e necessárias para que o Brasil supere a pandemia, volte a crescer, a gerar empregos e assim possa reduzir as carências sociais que atingem amplos segmentos da população”. E conclui: “Que cada um atue com responsabilidade nos limites de sua competência, obedecidos os preceitos estabelecidos em nossa Carta Magna. Este é o anseio da Nação brasileira”. Nada além de bom senso e serenidade.
Até domingo, 200 entidades haviam aderido
ao texto, entre elas a Fiesp e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A
decisão de Skaf de adiá-lo até as manifestações marcadas para o Sete de
Setembro é um erro que enfureceu representantes do setor privado. Revela uma
falta de convicção inaceitável. É como se desse para transigir no compromisso
com a democracia diante dos humores das ruas ou se ele pudesse flutuar ao sabor
da conveniência política.
Mais vexaminosa foi a movimentação de
dirigentes do Banco do Brasil e da Caixa para pressionar a Febraban a boicotar
o manifesto. Eles ameaçaram abandonar a instituição que ajudaram a fundar em
1967. Mostraram estar mais preocupados em manter lealdade a Bolsonaro que com o
zelo pelas regras democráticas, essenciais para garantir o patrimônio de seus
acionistas.
A passividade diante da crise
institucional, cujos contornos têm piorado a cada semana, é um mal que o setor
produtivo deveria ajudar a combater. Os efeitos da tensão política são
perceptíveis na cotação do dólar, nos preços da gasolina e dos alimentos e na
dificuldade para debelar o risco de crise energética. As ameaças de Bolsonaro
contribuem para o impasse na tramitação de reformas que destravariam o
investimento. Democracia não é só um valor essencial à sociedade e aos
cidadãos, mas está também na base da estabilidade e do crescimento econômico.
Em sua defesa, não há espaço para tibieza nem margem para hesitação. O país exige
do empresariado e do setor produtivo um compromisso inequívoco com os valores
democráticos.
É descabido e sem sentido aprovar uma nova
lei contra o terrorismo
O Globo
É descabida e sem sentido a tentativa da bancada bolsonarista de aproveitar a
vitória do Talibã no Afeganistão para aprovar um projeto de lei contra o
terrorismo que começou a tramitar na Câmara há cinco anos por iniciativa do
então deputado Jair Bolsonaro. Sem justificativa plausível, a proposta
estabeleceria no Brasil, sob o pretexto de garantia da segurança, uma estrutura
inédita de violação das liberdades individuais.
Não é que o Brasil seja imune à ação do
terrorismo. Ataques em países vizinhos, em particular Argentina, Peru e
Colômbia, demonstram que a América Latina também é um terreno fértil para o
florescimento do terror. A Polícia Federal já desbaratou células jihadistas por
aqui e mantém cooperação estreita com autoridades internacionais especializadas
na prevenção de atentados.
Mas o Congresso Nacional já aprovou, em
2016, uma lei satisfatória que caracteriza o crime de terrorismo nos moldes das
convenções internacionais de que o Brasil é signatário. Naquele mesmo ano, a
legislação foi usada para denunciar um grupo que planejava atentados na
Olimpíada do Rio. O que a nova proposta, de autoria do deputado Major Vitor
Hugo (PSL-GO), faz é ampliar de modo insólito as garras do Estado criando uma
Política Nacional Contraterrorista, um Sistema Nacional Contraterrorista, uma
Autoridade Nacional Contraterrorista e uma Autoridade Militar Contraterrorista.
O que tudo isso significa na prática não está claro.
Numa série de formulações vagas, o projeto
legaliza práticas como uso de identidade falsa, infiltração em movimentos
considerados terroristas, monitoramento sigiloso de comunicações com maior
facilidade, além de isentar de responsabilidade os agentes públicos que
porventura atirarem com resultado “diferente do desejado” ou cometerem atos que
noutras situações seriam classificados como crimes. Organizações de direitos
humanos definem esse tipo de autorização como uma “licença para matar”.
É comum, entre os críticos do projeto, o
temor de que ele seja usado para “criminalizar movimentos sociais”. O risco
mais preocupante, contudo, é outro: criar uma força paraestatal usada pelo
governo de modo abusivo. Em países onde o combate ao terrorismo é política de
Estado consolidada, costuma haver, além da supervisão rígida do Judiciário, uma
estrutura de vigilância do Legislativo sobre o aparato encarregado dessa
tarefa. Foi um relatório do Senado americano que desmascarou os abusos e a
ineficácia das “técnicas de interrogatório aprimoradas” — eufemismo para
tortura —, adotadas em instalações secretas da CIA depois do 11 de Setembro.
Felizmente, o Brasil foi até hoje poupado
de atentados terroristas de vulto. É fundamental que tenhamos capacidade de
reação e combate ao terror proporcional à dimensão da ameaça que sofremos. E
que evitemos os erros cometidos por outros países, onde o combate ao terrorismo
se tornou um pretexto para práticas arbitrárias e desumanas.
Tensão no mercado desafia gestão da dívida
mobiliária
Valor Econômico
Clima adverso pode se acentuar no próximo
ano, diante da proximidade das eleições
A virada do semestre marcou uma mudança de
cenário que tornou mais desafiadora a administração da dívida mobiliária
federal. O acirramento das tensões políticas, as dúvidas a respeito da
disciplina fiscal e a trajetória de alta dos juros obrigaram o Tesouro a
reformular a estratégia na venda de títulos para rolar a montanha crescente da
dívida pública, que encostou nos R$ 5,4 trilhões. Apesar das providências
tomadas, foi inevitável pagar mais caro e mudar o mix de títulos oferecidos
para levantar mais recursos. A perspectiva é que esse é apenas o início de uma
nova realidade que vai marcar os próximos meses.
O quadro começou a mudar quando o
presidente Jair Bolsonaro revelou a disposição de vencer as próximas eleições a
qualquer preço, ao acentuar o tom das críticas ao sistema de votação com urnas
eletrônicas e ao Judiciário. A disposição também ficou evidente no projeto de
ampliação do alcance do Bolsa Família e do aumento do benefício pago para
conquistar os votos desse segmento da população, mesmo às custas de driblar as
regras fiscais, como o teto de gastos. Isso ficou claro na proposta de parcelar
o pagamento dos precatórios devidos pela União. Para complicar, tudo isso
aconteceu em momento de escalada da inflação que obrigou o Comitê de Política
Monetária do Banco Central (BC) a elevar os juros, que mais do que dobraram de
2% no início do ano para os atuais 5,25%.
As repercussões na administração da dívida
pública foram inevitáveis. O reflexo mais negativo foi o encarecimento da
rolagem dos papéis. O custo médio das emissões subiu a 6,1% ao ano em julho, de
acordo com dados divulgados pelo Tesouro na semana passada, acima dos 5,8% ao
ano de junho e quase dois pontos acima dos 4,4% de dezembro, então calculados
por outra metodologia.
O custo médio acumulado em 12 meses do
estoque dessa dívida também subiu, de 7,2% em junho para 7,6% em julho, perdendo
parte da economia feita no início do ano, depois de ter chegado a 8,4% em
dezembro.
O aumento no custo de rolagem da dívida
mobiliária é consequência da mudança no mix de títulos públicos oferecidos e da
oferta de juros maiores diante da piora de humor do mercado. Em julho, as
emissões somaram R$ 142,4 bilhões para fazer frente a resgates de R$ 118,1
bilhões, com saldo líquido de R$ 24,4 bilhões. A venda de títulos prefixados
foi reduzida e sua participação caiu de 33,3% para 32,1%. Por outro lado, aumentou
a participação dos títulos atrelados a índice de preços, de 27,1% para 27,6%,
com a previsão da tendência de alta da inflação; e dos títulos pós-fixados,
indexados à Selic, de 35,1% para 35,7%.
Não houve mudanças significativas na
relação dos principais compradores dos títulos públicos. Os maiores seguem
sendo as instituições financeiras, que concentraram 30,8% das compras em julho,
um ponto a mais do que os 29,6% de dezembro. Os fundos de investimento ficam em
segundo lugar com 9,7%, acima dos 9,2% de dezembro; e a previdência vem a
seguir, com 22,3%, pouco menos do que os 22,7% do fim do ano. Já o investidor
estrangeiro teve participação de 9,7%, acima dos 9,2% de dezembro.
Nos leilões do Tesouro realizados até o fim
da terceira semana de agosto, as tendências se acentuaram, com a pressão cada
vez maior no mercado futuro de juros. A participação relativa das LFTs,
indexadas à taxa Selic, atingiu 49%, bem acima dos 33% da fatia das NTN-Bs,
atrelados ao IPCA; e despencou praticamente pela metade a dos prefixados (LTNs
e NTN-Fs), para 18%.
Para tentar acalmar o mercado, o Tesouro
disse ter um colchão de liquidez de R$ 1,159 trilhão, apenas ligeiramente
inferior ao R$ 1,167 trilhão de junho. A reserva é suficiente para cobrir quase
totalmente os vencimentos dos próximos dez meses à frente, que somam R$ 1,2
trilhão. Até agora, a rolagem tem superado os vencimentos em 20%. Além disso, o
BC acelerou o projeto de criação dos depósitos remunerados voluntários, que
podem jogar luz nas operações compromissadas, que beiram R$ 1 trilhão, e limpar
a contabilidade da dívida mobiliária, embora há quem avalie que a medida pode
abrir espaço para um endividamento disfarçado.
Tudo indica que o clima de tensão
persistirá no mercado financeiro e até pode se acentuar no próximo ano, diante
da proximidade das eleições, testando as habilidades do Tesouro. Daí a
importância da manutenção do colchão de liquidez do Tesouro, o que lhe dá mais
margem de manobra.
Desfecho inglório
Folha de S. Paulo
Aposta de Biden é de que danos à imagem na
saída do Afeganistão serão absorvidos
A mais longa guerra já travada pela maior
potência militar da história acabou
oficialmente nesta segunda (30), quando o último avião de transporte
americano deixou Cabul com as forças remanescentes da caótica retirada após
duas décadas de presença no país asiático.
O quanto as imagens de caos e desespero na
pista do aeroporto da capital afegã, os mortos estrangeiros e americanos no
grande atentado da quinta (26) e a humilhação de mais uma derrota pesarão para
Joe Biden é incerto.
Evidente no momento é o fim da lua de mel
entre o presidente e o eleitorado que se cansou de Donald Trump em novembro de
2020, como a queda da popularidade do democrata para o pior nível desde sua
posse atesta.
O desempenho do presidente, que se amparava
no aferível fastio americano ante uma guerra insolúvel, mostrou-se desastrado
durante toda a crise terminal afegã.
Primeiro, acelerou a saída confiando que as
Forças Armadas de Cabul segurariam o Talibã ao menos por algum tempo. A
ofensiva final dos fundamentalistas engoliu o país em duas semanas.
Depois, conduziu uma retirada complexa sem um
plano coerente em mãos, gerando uma crise humanitária instantânea. Para piorar,
revelou a inexistência de empatia em seus comentários sobre o desenrolar da
crise.
Na semana passada, ainda viu quase 200
pessoas morrerem pelas mãos de um inimigo do qual poucos haviam ouvido falar. E
13 delas voltaram aos EUA em caixões enrolados em bandeiras.
Como se não bastasse, Biden tem sua
retórica triunfalista sobre a Covid-19 desafiada pelo avanço da variante delta
e, numa sinistra coincidência, precisa lidar com um furacão em Louisiana —a
mancha da crise do Katrina em 2005 para o homem que começou a guerra ora finda,
George W. Bush, foi indelével.
Seus rivais republicanos afiam as facas, de
olho nas eleições congressuais do ano que vem. Limitados conceitualmente, já
que a retirada afegã foi arquitetada por Trump, deverão focar o aspecto de
competência gerencial.
O democrata parece disposto a pagar a
aposta, cioso da curta extensão da memória do eleitorado e colocando mais peso
no apoio que a retirada galvanizou.
Os EUA de 2021 não estão lidando com um
trauma nacional da magnitude da derrota no Vietnã, em 1975. A velocidade da
sociedade interconectada e o cinismo de quem se acostumou a perder guerras sem
ameaças existenciais consequentes fazem o resto.
Pode dar certo para Biden, a depender da
eficácia dos oponentes em denunciá-lo ao eleitorado pendular que define
pleitos. Ou poderá ser, na pior hipótese, a sua Saigon.
A ideia fixa de Lula
Folha de S. Paulo
Com fala que soa a tentação autoritária,
petista insiste na regulação da mídia
Em pré-campanha à Presidência, Luiz Inácio
Lula da Silva volta a se equilibrar entre as exigências da política real e as
bandeiras destinadas a mobilizar a militância petista. Enquanto viaja
pelo país a restabelecer pontes com forças até outro dia tratadas como
golpistas, achou tempo para retomar a cantilena
da regulação da mídia.
A bem da verdade, esse é um tema em que as
preferências do pragmático cacique e das correntes ideológicas da sigla
coincidem. Lula convive mal com a crítica e a cobrança, que dirá com o relato
de desmandos, e correligionários ambicionam aplicar suas teses dirigistas aos
meios de comunicação.
Não se sabe ao certo qual é a proposta
desta vez. Em declarações recentes, o ex-presidente citou como argumento uma
suposta perseguição da imprensa ao venezuelano Hugo Chávez, numa total inversão
dos fatos. Vangloriou-se, em outro momento, de que seu governo multiplicou o
número de veículos beneficiários de verbas públicas.
Disse que não deseja o modelo cubano ou
chinês de regulação, mas o inglês ou o alemão. E defendeu normas para que a
internet “se transforme em uma coisa do bem”.
Nessa mixórdia não se compreende se o plano
é combater monopólios, um objetivo correto, usar dinheiro do Estado para
favorecer coberturas favoráveis, uma má política, ou intervir sobre conteúdos
—o que é inadmissível.
Em seu governo Lula tentou criar um tal
Conselho Federal de Jornalismo, voltado a “orientar, disciplinar e fiscalizar o
exercício da profissão de jornalista e da atividade do jornalismo”. A
propositura, enterrada pelo Congresso, mal disfarçava suas intenções censórias.
A Constituição já estabelece com clareza o
que é relevante para a atividade jornalística —garantia da livre manifestação
de pensamento e do acesso à informação, tendo como contrapartidas o direito de
resposta e indenizações por eventuais danos provocados.
Profissionais e veículos estão sujeitos aos
rigores da lei em casos de erros, abusos e condutas delituosas. Descabida é a
censura prévia, deploravelmente ainda encontradiça em decisões judiciais como
as que nos últimos dias atingiram O Globo, Piauí e RBS TV.
É também desejável, como defende esta Folha, que
jornais articulem alguma instância de autorregulamentação, como no setor
publicitário. Para além disso, discursos tortuosos e propostas obscuras soam a
tentação autoritária.
O Supremo e as terras indígenas
O Estado de S. Paulo
A solução para a questão das terras indígenas foi dada pela Assembleia Constituinte. Cabe ao Supremo Tribunal Federal aplicá-la
Em tempos de debate acirrado sobre o papel
e os limites do Supremo Tribunal Federal (STF), a Corte retoma nesta semana um
julgamento que tem despertado especial atenção. Trata-se do Recurso
Extraordinário (RE) 1.017.365 que, sob o pretexto de discutir a reintegração de
posse de uma área em Santa Catarina, tenta reabrir a questão da demarcação das
terras indígenas. O tema exige especial prudência, seja por respeito à
Constituição, seja por suas muitas implicações sociais, políticas e econômicas.
Chama a atenção, em primeiro lugar, o
tratamento desvirtuado que alguns têm dado ao caso, como se fosse uma manobra
de produtores rurais para que o Supremo negue ou restrinja um direito previsto
na Constituição. Nada mais distante disso. O recurso foi apresentado pela
Fundação Nacional do Índio (Funai) e envolve uma área de proteção ambiental
cuja posse foi atribuída ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina. É
essa a área que a Comunidade Indígena Xokleng pleiteia.
Resistindo à pretensão de alguns para
transformar a disputa numa questão política, cabe ao STF aplicar a
Constituição. “São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o art. 231.
Os índios não têm direito sobre qualquer
terra que eventualmente venham a ocupar, e sim “as terras que tradicionalmente
ocupam”. Além disso, para pacificar discussões que poderiam surgir, a própria
Assembleia Constituinte definiu que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Em 2009, o Supremo tratou longamente da
questão, no julgamento sobre a Reserva Raposa Serra do Sol. O acórdão não
apenas pacificou uma disputa que vinha desde os anos de 1970, mas definiu as
diretrizes a serem seguidas em todos os processos de demarcação de terras
indígenas em curso. Por sua relevância, foi chamado de “estatuto das reservas
indígenas”.
Em seu voto, o relator daquela ação,
ministro Ayres Britto, lembrou “que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa:
a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível
referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras
que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e
não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras
épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5
de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito
constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre
qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena”.
A Constituição de 1988 não veio estimular
indefinidamente a criação de novas reservas ou favorecer a proliferação de
novos conflitos sobre o tema. O Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, em seu art. 67, indica precisamente que “a União concluirá a
demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação
da Constituição”. O texto constitucional tem, assim, um nítido sentido de
pacificação, com precisa limitação temporal.
Por mais que agora determinados movimentos
sociais façam barulho – tem gente alardeando que não aceitará decisão do
Supremo contrária a seus interesses –, a revogação do chamado marco temporal
não é uma medida que esteja à disposição do Supremo, como se coubesse à Corte
redigir os direitos indígenas.
A solução para a questão das terras
indígenas foi dada pela Assembleia Constituinte, dentro do expresso objetivo de
pacificar os conflitos. Cabe ao Supremo aplicá-la, sem ter a pretensão de
inventar um novo ajuste. Além de extrapolar suas competências, uma medida à
margem da Constituição suscitaria novas e infindáveis disputas.
Sem dinheiro para fuzil
O Estado de S. Paulo
Inflação alta e renda baixa impedem o povo de se armar como propõe Bolsonaro
Sai a inflação da pandemia, entra a
inflação da seca, sem trégua para o consumidor, cada vez mais atormentado pelo
custo da comida e pela conta de luz. O preço da alimentação subiu 1,17% em
agosto, bem mais que no mês anterior, quando havia aumentado 0,59%, de acordo
com a Fundação Getulio Vargas (FGV). Com a geração mais cara, a tarifa de
eletricidade já aumentou duas vezes, 5,87% e 3,26%, e deve ser de novo
reajustada em setembro, segundo avisou o governo. “Qual o problema de a conta
de luz ficar um pouco mais cara?”, perguntou há poucos dias o ministro da
Economia, Paulo Guedes. Não há problema, é claro, para quem tem a conta paga
pelo Tesouro.
Com a cesta básica de alimentos e artigos
de higiene e limpeza custando quase um salário mínimo, o brasileiro comum nem
tem tempo para pensar na pergunta do ministro. Nem terá, ainda por muitos
meses, se os fatos confirmarem as expectativas do mercado. As projeções
colhidas em pesquisa do Banco Central (BC) apontam inflação de 7,27% em 2021 e
de 3,95% em 2022. Os economistas do mercado elevaram sua projeção pela 21.ª
semana consecutiva. As tensões políticas, a confusão, o populismo e a
irresponsabilidade fiscal do presidente Jair Bolsonaro também afetam as
expectativas, com ou sem pandemia e com mais ou menos chuva nas lavouras e no sistema
de reservatórios.
A meta oficial de inflação deste ano é
3,75%. A do próximo é 3,50%. As duas serão amplamente superadas pela alta real
de preços, de acordo com as previsões correntes. Em setembro, também segundo
avaliação do mercado, o BC deve elevar os juros básicos de 5,25% para 6,25% ao
ano, para tentar conter a inflação. A taxa deve atingir 7,50% até dezembro e
continuar nesse nível durante um ano.
A elevação de juros, principal terapia
anti-inflacionária do BC, começou há meses, mas sem efeito perceptível até
agora. Para o consumidor o quadro tem piorado sem interrupção. No varejo, a
comida encareceu 4,45% no ano e 11,44% em 12 meses, pelas contas da FGV. Os números são do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M),
formado por três itens – um indicador de preços por atacado, um de preços ao
consumidor e um de custos da construção.
Durante algum tempo, a partir do ano
passado, os preços foram impulsionados pela forte demanda global, sustentada
inicialmente pela recuperação chinesa. As cotações internacionais já estão mais
acomodadas, mas os preços têm sido afetados pela estiagem mais severa em 91
anos. Neste ano, os produtos agropecuários ficaram 16,54% mais caros, no
atacado. Em 12 meses a alta chegou a 47,91%. Esses aumentos têm sido passados
apenas em parte ao varejo e, portanto, ao comprador final, pressionado também
pelo encarecimento do gás de cozinha, da eletricidade e da gasolina.
Para os mais pobres nem há como recompor as
despesas. Não há como evitar, no caso desses consumidores, a mera redução de
gastos essenciais.
Além da inflação e da renda curta, milhões
ainda enfrentam as péssimas condições do mercado de trabalho, com alto
desemprego e muita insegurança para quem tem a sorte de conseguir uma ocupação.
Grande parte dos contratos é informal e sem garantias elementares para o
assalariado.
O emprego continuará escasso enquanto
faltarem melhores perspectivas econômicas. A economia deve crescer 5,22% neste
ano, segundo a última projeção do mercado, e apenas 2% no próximo. Sem
expectativa de atividade bem mais intensa, a procura de mão de obra só deverá
melhorar lentamente. Mas os condutores da política econômica agem como se
bastasse baratear a mão de obra para estimular contratações, mesmo sem previsão
de aumento significativo e duradouro dos negócios.
Enquanto isso, o presidente recomenda a
compra de fuzis e chama de idiota quem defende prioridade para o feijão. Mas é
difícil achar um bom fuzil por menos de R$ 12 mil. É complicado atender o
presidente, quando boa parte dos empregados mal consegue receber dois salários
mínimos por mês. Seria o caso de decretar um grande aumento salarial para
facilitar o acesso a armas de alta qualidade?
Terror em Araçatuba
O Estado de S. Paulo
Uma boa política de segurança pública é essencialmente preventiva
As Polícias Civil e Militar do Estado de
São Paulo são as forças de segurança pública tidas como as mais bem preparadas
e equipadas do País. Há razões para a boa reputação de ambas as instituições.
Portanto, custa crer que, com os recursos humanos e materiais que têm à
disposição, não tenham sido capazes de impedir uma ação criminosa como a que
fez a população de Araçatuba, a 521 km da capital paulista, viver horas de terror
na madrugada de domingo para segunda-feira.
Está claro que não houve um trabalho
policial de inteligência – se houve, obviamente falhou – para evitar mais um
assalto nos moldes do que ficou conhecido como “novo cangaço”, tipo de crime,
cada vez mais ousado e violento, que tem levado pânico aos moradores de
pequenas e médias cidades, principalmente nas Regiões Sul e Sudeste.
Uma quadrilha de pelo menos 15 bandidos
fortemente armados invadiu a cidade do interior paulista para roubar três
agências bancárias. Cerca de dez carros foram usados na ação, além de um
caminhão e um carro-forte. Bombas foram espalhadas pelos criminosos em pontos
específicos da cidade. Veículos foram incendiados para impedir a movimentação
da polícia. Do alto, um dos bandidos monitorava por drone toda a circulação dos
policiais locais, orientando a ação dos comparsas, tanto na chegada do comboio
em Araçatuba como na fuga. Como se vê, trata-se de um crime planejado com tempo
e minúcia, executado por profissionais que dispunham de meios que não são
triviais nem mesmo em ações semelhantes. O mais chocante é que bancos federais
que haviam recebido grandes reservas em numerário não comunicaram o fato à
Polícia estadual para as devidas providências de resguardo e proteção.
De acordo com a Polícia Militar, três
pessoas morreram, um bandido e dois moradores. Um destes foi o dono de um posto
de gasolina sumariamente executado ao ser surpreendido filmando a ação dos
criminosos. Um homem teve a perna decepada ao passar de bicicleta sobre um artefato
explosivo deixado pelos bandidos.
Os criminosos tomaram moradores como reféns
durante a fuga. Nas redes sociais, circulam vídeos de fileiras de civis que
serviram como “escudo humano”, além de chocantes imagens de pessoas que foram
amarradas nos tetos e capôs dos carros em fuga a fim de impedir uma reação mais
incisiva dos policiais.
O prefeito de Araçatuba, Dilador Borges
(PSDB), acionou o governador João Doria (PSDB) ainda durante a madrugada de
segunda-feira. O governador determinou o reforço do contingente policial na
cidade. Em entrevista à Rádio
Eldorado, o porta-voz da Polícia Militar informou que 380 homens
foram mobilizados para combater os criminosos. Além dos PMs locais, outros
vieram de Bauru, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. Dois bandidos
foram presos até o momento.
A ação dos criminosos em Araçatuba deve ser
rigorosamente investigada. Não se executa um assalto daquela magnitude, com
tamanho desassombro, sem uma ampla rede de apoio, informacional, logístico e,
sobretudo, financeiro. Especialistas em segurança pública estimam que o
planejamento e a execução de um assalto como o que houve em Araçatuba não
custam menos de R$ 1 milhão para os criminosos. Há quem forneça os meios
materiais, como as armas, explosivos, veículos e equipamentos de comunicação.
Há quem planeje e coordene a ação. Há quem proveja informações, tão valiosas
neste tipo de crime. Como os bandidos sabiam que encontrariam grande quantidade
de dinheiro nas agências atacadas? Como conheciam o dispositivo policial contra
o qual teriam de lidar? Tudo deve ser apurado e os suspeitos devem ser
investigados e julgados.
Poucas e efetivas ações podem ser implementadas para coibir este tipo de crime, que não necessariamente passam pelo reforço bélico das corporações, bem equipadas, como já dito. Estas ações vão desde o tingimento de cédulas até sofisticadas análises de serviços de inteligência. Uma boa política de segurança pública é essencialmente preventiva.
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