terça-feira, 31 de agosto de 2021

Edu Lyra - Favela repensada

O Globo

Qual a primeira coisa que lhe vem à cabeça, leitor, leitora, quando você pensa em favela? Pobreza, responderão uns, apontando para as responsabilidades do Estado ausente. Violência, dirão outros, lembrando-se da criminalidade impulsionada pelo tráfico de drogas.

São associações incontornáveis, sim. Eu, no entanto, que venho da favela, tenho o privilégio de poder olhar para ela por outros ângulos. Para mim, a favela, para além das carências que oprimem seus moradores, é também a mais bem-sucedida startup do Brasil.

Exagero? Acho que não. Anitta é favela. Seu sucesso internacional projeta o subúrbio carioca em que nasceu. KondZilla é favela. Sua bem-sucedida produtora musical deu visibilidade ao melhor do funk. O samba do Rio de Janeiro desceu para a cidade depois de ter nascido nos morros. A feijoada preparada nos barracos com teto de zinco preserva a autenticidade do prato original dos tempos das senzalas. Favela é ainda moda, design, esporte — quantas medalhas olímpicas não trazem a marca de suor das favelas? Até a Faria Lima, em São Paulo, é favela, que deixou sua impressão digital nos imponentes edifícios envidraçados que abrigam boa parte do PIB brasileiro.

O Brasil precisa aprender a valorizar as coisas que tem — e uma delas é a favela. Saudar a favela não é compactuar com a desigualdade social que a gerou. Ao contrário, é enaltecer a resiliência de seus habitantes. A sensação de orgulho tem a ver com o potencial que não se dobra às adversidades. Visitar a favela Marte, projeto-piloto da Gerando Falcões, é conhecer um centro de tecnologias de sobrevivência, um polo de resistência ao Brasil institucional, o Brasil que abandonou os pobres.

A palavra “favela” é uma invenção brasileira que ganhou o mundo. Aqui em Nova York, onde passo um breve período de estudos, os americanos falam em shanty towns, mas áreas decaídas em outros países não são a mesma coisa. Favela, para o bem e para o mal, só no Brasil. Até o nome é sonoro, tem a musicalidade da nossa língua e rima tanto com mazela como com coisa bela. Aliás, se se sentir confortável, considere falar “favela”, e não “comunidade”, como se a assepsia do vocábulo pudesse esconder seus problemas. Conversando com meus amigos Nizan Guanaes e Eco Moliterno sobre o reposicionamento da favela no mundo, chegamos à conclusão de que ela está muito mais para solução do que para problema.

Aprendi com Jorge Paulo Lemann a sonhar grande, para só então correr atrás dos meios para transformar o sonho em realidade. Em setembro, Lemann, Carlos Brito e Claudio Ferro serão anfitriões do jantar da Gerando Falcões em Nova York. Vamos colocar a favela no centro do mundo desenvolvido e apresentar sua agenda social, uma verdadeira plataforma de mudanças. Quando transformarmos os territórios das favelas em 3D (digitais, dignos e desenvolvidos), o nome “favela” se tornará símbolo de reinvenção e inovação.

O Vale do Silício não tem só silício. Tem cérebros. A favela não tem só bandidos. Tem cérebros também, ainda que em estado latente, prontos para ser lapidados. Nossa missão é impedir que, por falta de oportunidade, eles se repliquem indefinidamente em Escadinhas e Zés Pequenos.

 

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