Folha de S. Paulo
O marco temporal é uma desonra para quem
acredita que o Brasil pode ser um país decente
O Supremo Tribunal Federal retoma nesta
semana, finalmente (!), o julgamento de
controvérsia que precisa ser pacificada para que os povos indígenas tenham
segurança jurídica sobre a posse de seus territórios.
O cerne da discussão é o chamado marco temporal, conceito que reconhece apenas o direito às terras ocupadas pelos indígenas até a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. O marco temporal distorce o texto constitucional e ignora histórico secular de agressões contra os povos originários, banidos de suas terras, caçados e mortos como animais.
No livro “Subvertendo a Gramática e Outras
Crônicas Socioambientais”, Márcio
Santilli, ex-presidente da Funai e ativo participante do processo
constituinte, conta como se chegou à expressão consagrada no “Capítulo dos
Índios”. Sob pressão de lobbies pesados, como o das mineradoras, os
constituintes não saíam do impasse sobre a definição do direito dos indígenas à
terra. Alguns defendiam “terras ocupadas”. Outros preferiam “terras
permanentemente ocupadas”.
Santilli procurou o então senador Jarbas
Passarinho, ex-ministro da ditadura e líder da direita na constituinte. Foi ele
que resolveu o dilema, ao criar a fórmula de “terras tradicionalmente
ocupadas”. “A ambiguidade da palavra ‘tradicionalmente’ foi um ovo de Colombo,
admitindo uma leitura antropológica —‘conforme a tradição’— e outra cronológica
—‘por tempo suficiente para serem tradicionais’”, analisa Santilli. Era um
tempo em que adversários construíam consensos com um mínimo de lealdade para
que o país avançasse.
A tese do marco temporal é retrocesso
civilizacional, que só beneficia criminosos: grileiros, desmatadores,
garimpeiros, o agronegócio predatório. Contra o poder econômico de
megacorporações, os indígenas estão mais uma vez em Brasília, em vigília de
resistência. A admissão do marco temporal seria uma violência contra eles e uma
desonra para quem ainda acredita que o Brasil pode ser um país decente.
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