O Globo
‘Temos de enfrentar. Não adianta ficar sentado
chorando’ — uma fala que, no escuro, atribuiríamos a Bolsonaro. Fala de Paulo
Guedes, homem de poupança em que sentar. Referia-se à taxa extra na conta de
luz sobre o lombo do que vende o almoço para jantar — o que, afinal, enfrenta.
Não
surpreende. Não terá sido a primeira demonstração do Guedes mais bolsonarista
que o mito. Caso em que aquele que deveria — conforme o estelionato eleitoral —
trazer razão ao enfrentamento do problema vai capturado pela linguagem depredadora
do bolsonarismo. Isso na hipótese generosa. Isso se Guedes não tiver encontrado
na cancha bolsonarista as condições para exercer o que é. Não acredito na
hipótese generosa. São muitos os daniéis-silveiras da Faria Lima; o ministro
sendo apenas mais um.
É
também aquele que, símbolo de um governo que diminuiria a superfície do Estado,
e que venderia — por exemplo — a Granja do Torto, foi morar na Granja do Torto;
onde, claro, não paga pela luz.
Guedes está em casa com os generais-ramos, com os bibo-nunes. Converteu-se num tiozão do zap. Os que o criticam são militantes. A ver o caso dos precatórios. Em busca de espaço para bancar a reeleição do chefe, o fiscalista do amanhã apresentou um combo de incompetência e chantagem que conjuga calote à dívida e criação de um fundo a ser dependurado teto solar de gastos afora. Projeto horroroso. Dura e justamente esculhambado. Entre os críticos, a Instituição Fiscal Independente (IFI), que assessora o Senado. Para Guedes, uma “ferramenta de militância”.
(Conjecturo
sobre que ferramenta de militância será o ministro que se curva a um populista
autoritário que quer que se segure o anúncio do novo valor da bandeira vermelha
relativa à energia elétrica até depois da manifestação golpista do Sete de
Setembro; porque não deseja que notícias ruins atrapalhem a segunda
Independência.)
Guedes
continuou: “A Câmara tem atuado em altíssima velocidade, ajudando a aprovar as
reformas, ajudando o Brasil a sair do buraco. Do Senado está vindo bomba,
possivelmente por mau assessoramento”. A fala é suco de bolsonarismo. Investe
no choque institucional. Câmara contra Senado. O elogio à Câmara — à velocidade
da Câmara — como ode ao trator por meio do qual Arthur Lira, imperando, tem
aterrado a democracia representativa.
Suco
de bolsonarismo também é o exercício do embuste, como se houvesse alguma
reforma — daquelas prometidas em campanha — sendo aprovada. Como se reforma — a
que se tenta fazer, por exemplo, com o Imposto de Renda (o ministro não saberia
explicá-la) — fosse qualidade per se. E como se a perversão pretendida às
regras eleitorais não concorresse para aprofundar o buraco em que nos
deprimimos — mas, com isso, com a estabilidade democrática, com o equilíbrio do
sistema partidário, Guedes não se preocupa, essa cepa mui rara de liberal.
Seria
mesmo o caso de agradecer ao Senado — o que o ministro chama de bomba
consistindo apenas na percepção de que, sobre o chão de instabilidades
cultivado por Bolsonaro, mudanças tendem ao retrocesso; e que melhor será, em
meio ao nevoeiro, de resto sob a pior composição parlamentar da história, tocar
o barco devagar.
O
pior ainda estava por vir: “Se entrarem os precatórios [no Orçamento de 2022,
integralmente], não há dinheiro para expandir as vacinas. Será que o jovem lá
do IFI [Felipe Salto] sabe disso? Ele prefere pagar o precatório e ficar sem
vacina?”.
A
declaração empilha indignidades. Guedes propôs uma emenda que
constitucionalizaria o calote e — desprovido de meios porque não numa
autocracia — condiciona a existência de recursos para custear a compra de doses
de vacina à aprovação da PEC. Que tal? Semana antes, a chantagem tivera como
vítima o pagamento dos servidores públicos. Sem calote nos precatórios, seria
calote nos salários. Agora, isto: sem tunga nos credores, sem oferta de vacinas.
Mas será militante aquele que constatar o óbvio: que — se nalgum momento
tivesse se achado — o Onyx Lorenzoni de Chicago estaria ora perdido.
Seria
Luiz Fux um militante? Porque, no mesmo dia, o ministro do Supremo — um
presidente de Corte Constitucional que participa de evento de banco — afirmou,
sobre o imbróglio dos precatórios, que “calote nunca mais”. E até esboçou uma
proposta ali. A audiência — que opera sob déficit de valores republicanos —
adorou. Se solução houver que camufle o rombo no teto, que mal haverá em o STF
legislar sobre matéria que, como tribunal, provavelmente julgará?
Guedes
também gostou. Lira idem. Com o que admitem a própria incompetência. Os sócios
não conseguem formular e desovam um projeto miserável no Congresso — pelo qual,
viciado que é, são incapazes de articular politicamente. Tentam na marra. Surge
o impasse. Têm de pagar os acordos por 2022. Então, saem correndo para que o
Supremo, violando o que é prerrogativa do Parlamento, resolva. Depois, quando
um Alexandre de Moraes avançar sobre terreno dos outros Poderes, não adiantará
ficar sentado chorando. Terão de enfrentar.
No
caso de Guedes, sozinho e com CAPS LOCK, à espera do tanque em que virá o
artigo 142 do Braga Netto, no dia seguinte à privatização de alguma coisa.
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