Folha de S. Paulo
Sociedade não pode permitir a incitação ao
golpe de Estado e à quartelada
A tolerância, embora um valor central do
mundo democrático e respeitador dos direitos individuais, precisa de uma dose
de intolerância para não sucumbir. A formulação canônica do “paradoxo da
tolerância” foi feita pelo filósofo
austríaco Karl Popper (1902-1994) em uma nota de rodapé de seu
clássico “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”.
Diz o filósofo: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e com eles a tolerância”.
Como sempre acontece com os grandes
pensadores, o “paradoxo” costuma ser mal-entendido. Na leitura comum (e
errada), o critério que distingue tolerantes de intolerantes é exclusivamente
o conteúdo das ideias de cada um.
Mas daí criamos um problema: quais
ideias devem receber a pecha de intolerantes e portanto ser banidas? O
conservadorismo é intolerante por natureza, não aceita modos de vida
alternativos. O comunismo é intolerante, quer acabar com a liberdade de
expressão como se fosse uma perversão burguesa. Ou então será a defesa do
capitalismo a real intolerância, posto que defende um direito abstrato à
expressão, mas mantém desigual a distribuição dos meios de se expressar. Nas
palavras, vale quase tudo.
Popper, ao contrário, se preocupava mais
com a maneira como uma ideia é promovida do que com seu conteúdo em estado
puro. Diz ele: “Devemos afirmar o direito de suprimi-las [as filosofias intolerantes]
até mesmo pela força se necessário; pois pode facilmente ocorrer que elas não
estejam dispostas a nos enfrentar no campo da argumentação racional, e sim que
comecem pela condenação de todo e qualquer argumento; podem proibir seus
seguidores de ouvir a argumentos racionais, por serem enganosos, e ensiná-los a
responder a argumentos com os punhos ou com pistolas”.
Podemos ir mais longe que Popper. Não
apenas filosofias intolerantes, mas até mesmo ideias supostamente tolerantes
podem se valer de meios intolerantes, e esses meios, apesar do lindo
discurso, constituem
um risco à sociedade tolerante. O autoproclamado “antifascista” que desfere
socos em quem ele considera ser fascista é tão intolerante quanto o arruaceiro
skinhead.
Ideias e valores a princípio maravilhosos
—os ensinamentos de Jesus— podem se transformar em uma verdadeira máquina de
violência e opressão —a Santa Inquisição. E, por outro lado, ideias abjetas,
como a crença de que viveríamos melhor sob uma ditadura, se defendidas por meio
de argumentos e apelos sinceros à razão, serão basicamente inofensivas —e até
mesmo benéficas, na medida em que enriquecem o debate público e fortalecem a
defesa da democracia, que precisará refutá-las, atualizar seus argumentos etc.
Olhemos para os meios, não para o mundo das
ideias. No Brasil de hoje, autoproclamados defensores da liberdade de expressão
—e portanto da tolerância— atentam explicitamente contra ela ao incitar a
violência e propor os fuzis como sua arma persuasiva. A
esses, conforme lembrou o ministro Lewandowski aqui na Folha, cabe a prisão. A sociedade
tolerante pode tolerar a defesa do presidente, a proposta do voto impresso, a
crítica ao STF; ela não pode tolerar a incitação ao golpe de Estado e à
quartelada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário