terça-feira, 31 de agosto de 2021

Andrea Jubé - O “idiota” russo e o brasileiro “idiota”

Valor Econômico

Campos Neto é “candidato dos sonhos” do Centrão

Era 1867 e o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881), embalado pelo sucesso de “Crime e castigo”, havia recebido uma grande soma de dinheiro de seus editores como adiantamento pelo novo romance, ainda em gestação.

Para despistar os credores, o autor embarcou com sua segunda esposa, Anna Grigórievna, para uma temporada de quatro anos no exterior, revezando endereços na Alemanha, Áustria, Suíça e Itália.

Em cartas enviadas aos editores, o autor revelou que em meio a esse autoexílio, pretendia finalmente dedicar-se à concepção de seu maior personagem, aquele que encarnasse a perfeição humana, com potencial para fascinar leitores contemporâneos e os futuros apreciadores da obra.

Segundo Paulo Bezerra - um dos raros tradutores das obras de Dostoiévski que transpôs o original russo direto para o português -, o escritor confidenciou, em carta de 1868, que a ideia central daquele novo romance seria “representar um homem positivamente belo”.

De acordo com o tradutor de Dostoiévski, esse personagem foi inspirado em Jesus Cristo, porque seria o único personagem “positivamente belo” aos olhos do escritor russo, além de Dom Quixote - mas, este, restrito ao plano literário.

Pois este personagem concebido por Dostoiévski à imagem e semelhança de Cristo, dotado de um “aguçado sentimento humanista da vida”, segundo o seu tradutor, vem a ser o Príncipe Míchkin, o “idiota”. Trata-se do protagonista do romance de mesmo título, publicado entre 1868 e 1869, na revista literária “O Mensageiro Russo”.

No prefácio da tradução de “O idiota” para o português, publicada em 2002, pela Editora 34, Paulo Bezerra explica que conceber o Príncipe Míchkin foi uma tarefa tão inglória para o escritor russo que a obra teve oito rascunhos.

Tanto esforço para compor um personagem que representasse o “grau supremo da evolução do indivíduo”, ou seja, quando o homem se torna capaz de abdicar de seus desejos individuais em nome do bem comum: um altruísta, em sua essência.

Pois o “idiota” do século XIX, movido pela compaixão humana e avesso à violência, jamais empunharia um fuzil. Nesse sentido, ele dialoga com o brasileiro “idiota” do século XXI, citado pelo presidente Jair Bolsonaro, como o sujeito que escolheria o feijão para alimentar a família, ao invés da arma de fogo.

“Tem que todo mundo comprar fuzil”, protestou o presidente, referindo-se à prerrogativa assegurada aos caçadores, atiradores e colecionadores. “Eu sei que custa caro. Tem um idiota: 'ah, tem que comprar é feijão'. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”.

No entorno de Bolsonaro, declarações incendiárias como essa são relativizadas por aliados. A avaliação interna é que Bolsonaro enfrenta mais revezes que seus antecessores, como a pandemia, e, agora, uma crise hídrica mais séria do que aquela enfrentada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Por isso, ele precisaria de outras arenas para travar a luta política.

Sem respostas eficazes para os problemas reais, o presidente escolheu o diversionismo como arma. Na arena da realidade, o presidente se depara com a alta dos preços dos alimentos, que traz a tiracolo, a fome de volta ao debate nacional.

Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) indicou que o arroz e o feijão, que compõem o prato mais tradicional e querido dos brasileiros, tiveram um aumento acima de 60% entre março do ano passado e março deste ano. O arroz subiu 61% e o feijão preto, 69% no período.

Se o “idiota” brasileiro interessado no arroz com feijão ousar complementar a iguaria com uma proteína, vai pagar mais caro. Dados recentes da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) são de alta da carne de boi em 17%, da carne de porco em 15% e da carne de frango em 11%. A opção mais em conta seria a tradicional farofa de ovo, porque essa proteína subiu 7%.

Dostoiévski quis com o Príncipe Míchkin criar um personagem inspirado nos valores cristãos mais elementares, livre de qualquer individualismo e de egoísmo, capaz de realizar o supremo ideal ético do próprio Dostoiévski, que este só considerava possível em Cristo - por ironia, justamente um dos personagens mais evocados por Bolsonaro junto à sua base eleitoral.

É com esse pano de fundo que o “idiota” russo e o “idiota” brasileiro confluem, ambos impelidos pela necessidade humana mais comezinha, de sobreviver à fome e de fazer prevalecer o bem comum, numa conjuntura de 14 milhões de desempregados e 19 milhões de famintos.

Sem hesitar, a dupla de “idiotas” escolheria o feijão.

O romance “O idiota” foi um retumbante sucesso editorial e é até hoje um dos mais aclamados títulos do mestre russo. Resta aguardar as próximas pesquisas para medir o impacto da declaração presidencial: se um sucesso, ou novo revés na popularidade.

Candidato dos “sonhos”

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, foi citado como o “candidato dos sonhos” a presidente da República por um dos mais influentes líderes do Centrão. Numa hipótese considerada remota, de que o presidente Jair Bolsonaro não disputasse a reeleição, seria um nome para 2022, apoiado pelo bloco. Ou com Bolsonaro reeleito, seria o nome para 2026. Campos Neto é elogiado entre líderes do bloco de sustentação do governo pela competência e traquejo político. Há dez dias, quando uma agência de notícias internacional publicou que Bolsonaro estaria descontente com o auxiliar e “arrependido” de sancionar a autonomia da autoridade monetária, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, foi bombardeado por telefonemas de empresários e investidores, alarmados com a nova crise, e correu para colocar panos quentes. “Não existe nenhuma crise entre o presidente Bolsonaro e o presidente do Banco Central, não vamos jogar gasolina na fogueira”, apressou-se o ministro na rede social, insistindo que a relação de ambos é “excelente”, e a autonomia do BC um “avanço irreversível”.

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