O Globo
Para Garrett M. Graff, autor do excepcional
“O único avião no céu — Uma história oral do 11 de Setembro”, recém-lançado no
Brasil, a parte mais marcante daquela manhã de 2001 foi o curto intervalo entre
o choque do primeiro e do segundo avião contra as Torres Gêmeas. A nação
americana viveu ali seus últimos 17 minutos de inocência complacente e fé no
excepcionalismo dos Estados Unidos. A Guerra Fria contra o comunismo havia sido
vencida uma década antes, a História parecia congelada a favor da prosperidade da
Era Clinton e, daquele inesquecível céu azul-cobalto, nada de ruim poderia
advir. A cena do primeiro avião cravado na Torre Norte, cujas paredes passaram
a cuspir fumaça e dejetos, foi acompanhada com mera curiosidade voyeurista, a
mesma que bípedes de qualquer lugar dedicam a acidentes e tragédias.
O inverno nuclear do medo e do ódio que há 20 anos divide o país só se consolidou quando os 19 jihadistas suicidas concluíram sua espetaculosa missão: fazer tombar os dois orgulhosos totens de vidro e aço no coração de Wall Street e mutilar o inexpugnável Pentágono para humilhar a superpotência militar.
Só não conseguiram mergulhar sobre a Casa
Branca ou o Capitólio porque imprevistos —no caso, a bravura dos passageiros de
um dos aviões sequestrados — acontecem. Também aconteceram acasos que a
posteriori dão calafrios: Mohamed Atta, o cabeça da operação sincronizada,
chegara atrasado ao aeroporto de Portland, rumo a Boston, onde embarcaria no
voo AA11 que espatifaria a Torre Norte. Foi atendido com cortesia de primeira
classe pelo agente à sua espera: “Sr. Atta, se o senhor não se apressar, vai
perder o seu voo”.
O escritor Jonathan Franzen lembra ter
sentido a colisão de vários mundos incompatíveis dentro de sua cabeça. Para
outros, tudo o que pudesse ser imaginado pareceu, subitamente, possível —
inclusive o fim do próprio mundo.
Coube à mente privilegiada de Susan Sontag
não se deixar levar pelo arrastão patriótico que brotou dos escombros. Com Nova
York ainda de joelhos e desnorteada, a intelectual foi uma das raras vozes a
apontar para as figuras públicas e comentaristas de TV que descreviam em
uníssono o ataque “covarde” contra a “civilização” e a “liberdade”, contra a
“humanidade” e o “mundo livre”. “Para quem usa o termo ‘covarde’, talvez fosse
mais apropriado usá-lo para quem mata à distância, lá do alto do céu, fora do
alcance de uma retaliação, e não aos dispostos a morrer para matar”, escreveu
com pena cortante na New Yorker, referindo-se aos bombardeios da época sobre o
Iraque. E concluiu: “A unanimidade dos hipócritas, a retórica enganosa do
governo e da mídia me parecem indignas de uma democracia madura... ‘Nosso país
é forte’, nos repetem a toda hora... Ninguém duvida da força dos Estados
Unidos. Mas força não é tudo de que uma nação precisa”.
Se pudesse fazer uma avaliação póstuma do
atentado que planejou das cavernas do Afeganistão, Osama bin Laden, líder do
grupo terrorista que o então presidente americano George W. Bush jurou
exterminar, deveria estar satisfeito. Embora sem ter conseguido criar o sonhado
califado, ele fez sangrar o poderio militar americano com guerras sem fim em
terras islâmicas. À exceção de dois triunfos computáveis da resposta dos EUA ao
11 de Setembro — o rastreio e a eliminação de Bin Laden em seu esconderijo
paquistanês; e a neutralização de novo ataque externo em solo americano —, a
natureza da guerra ao terror decretada por Bush (sem fronteiras, regras ou
limites) teve efeito bumerangue. A sociedade americana se tornou acuada, menos
livre, mais enfraquecida moralmente, mais dividida e mais sozinha no mundo.
A cápsula do tempo 2001-2021 tem em Rudy
Giuliani o exemplo mais perverso dessa deterioração. Ao contrário das 2.973
vítimas soterradas nos atentados, todos cidadãos comuns, inocentes, que apenas
estavam no lugar e hora errados, Giuliani se revelou o prefeito certo para uma
Nova York curvada. Foi onipresente, incansável, eficiente e corajoso. Chegou a
ser aplaudido na ONU como “prefeito dos Estados Unidos”. Nos 20 anos seguintes,
sua espinha moral derreteu até ele chegar ao que é hoje: um conspiromaníaco corrupto
e oportunista, bufão e delinquente, disposto a subverter qualquer instituição
democrática a serviço de Donald Trump.
Ironicamente, observa Graff em recente
análise do sombrio aniversário, os Estados Unidos se veem às voltas, hoje, com
nova luta contra outro inimigo mutante — o coronavírus. Desde o início da
pandemia, a cada três dias dos últimos 18 meses a Covid-19 tem feito o mesmo
número de vítimas daquela traumática terça-feira de 2001. E, pior, sem a mais
remota perspectiva de combate unido. O esgarçamento virou muralha interna. “Só
posso concluir que o inimigo que passamos a combater depois do 11 de Setembro
éramos nós mesmos”, lamenta o escritor.
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