O Globo
O que o Supremo Tribunal Federal fez na
última semana é inédito, diz a historiadora Heloisa Starling. “É a primeira vez
que o STF se torna símbolo. E símbolos fazem a diferença na luta pela
liberdade.” Num país em que as reações às agressões de Bolsonaro são de
espantosa tibieza, a resposta da Corte foi firme, forte, efetiva. O discurso de
Luiz Fux, a maneira como ele o leu, com ênfase que não deixava dúvidas e, no
dia seguinte, o discurso de Luís Roberto Barroso foram uma barreira ao avanço
golpista.
“Não vamos afinar”, disse um ministro quando eu quis saber qual seria a reação aos ataques golpistas do presidente. “Mas nós estamos no meio da tempestade, num avião sem comando e com os aparelhos em pane”, acrescentou. Isso era a noite do dia 7. Políticos de centro começaram a falar em impeachment. Ouvi um líder militar dizer a palavra “anarquia” para definir o ato do presidente. Um influente político governista admitiu que o presidente estava descontrolado. Bolsonaro terminou o dia mais fraco e isolado. Levou muita gente para a rua, mas se isolou. Era fundamental saber de onde viria o “não passarão”. Todos os olhos voltaram-se para o STF. E o Tribunal não afinou.
O ministro Fux definiu como “crime de
responsabilidade” e “atentado à democracia” a afirmação de Bolsonaro de que não
respeitaria ordem judicial. Avisou que falava em nome dos mais de 20 mil juízes
do país. O ministro Barroso foi ainda mais claro na defesa do sistema eleitoral.
Disse que há quase três anos há uma “campanha diuturna e insidiosa contra urnas
eletrônicas, por parte de ninguém menos do que o presidente da República”. Nos
dois discursos, o conteúdo foi forte, a leitura foi enfática, as palavras não
foram contaminadas pelo vocabulário de Bolsonaro. Barroso disse que falava em
nome de toda a Justiça Eleitoral. O STF colocou uma barreira para Bolsonaro.
Ele perdeu. Teve que recuar e se retratar.
O presidente achava que com o seu exército ele iria encurralar a democracia brasileira.
Usou dinheiro público, a máquina governamental e o aparato da Presidência —
helicópteros, aviões e segurança — para atacar as instituições. Cometeu crimes
à custa do erário, o que é um crime em si.
Alguns ministros que estiveram nos palanques golpistas não poderiam ter ido.
Walter Braga Netto, ministro da Defesa, escolheu ficar ao lado de uma facção,
não tem mais condições de falar em nome dos comandantes das Forças Armadas.
Bruno Bianco é advogado-geral da União. Da União. Não é do governo, muito menos
do bolsonarismo. O AGU foi para o palanque em que o presidente do STF recebeu
um ultimato, um ministro foi chamado de canalha, e o presidente disse que
desrespeitaria ordem judicial. No seu próprio site, a AGU define-se, citando o
artigo 131 da Constituição, como instituição que “tem natureza de Função
Essencial à Justiça, não se vinculando, por isso, a nenhum dos três poderes”.
Nesse cenário desolador, em que tantos
rasgam a Constituição, o pior que poderia nos acontecer seria o STF afinar
diante de um presidente golpista. O Supremo foi a barreira que o país
precisava. A ministra Cármen Lúcia deu o tom histórico do momento. “Para que se
registre na História que esse Tribunal Federal não se destrói, não se verga,
não se fecha.”
Para a professora Heloisa Starling, da
UFMG, tem uma novidade aí. “No passado, o STF teve grandes defensores da
liberdade. Mas não era a instituição levantando a grade da defesa da
democracia.” Na ditadura houve episódios de resistência, mas nunca do Supremo
como um todo. “O livro ‘Tanques e Toques’, de Felipe Recondo, mostra bem. O
presidente do STF, Ribeiro da Costa, apoiou o golpe. O AI-5 aposentou três
ministros, Lins e Silva, Nunes Leal e Hermes Lima. Dois outros se anteciparam e
pediram aposentadoria, Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada. Em 1971,
Adauto Lúcio Cardoso renunciou por ter sido o único voto contra a censura.
Tirou a toga, colocou na cadeira e saiu da sessão. Eram juízes isolados
defendendo a liberdade. Em 1930 o governo provisório de Vargas é reconhecido,
em 1937, no golpe do Estado Novo, também não há reação contrária do STF”. A
ação da Corte agora foi o que levou Bolsonaro ao recuo. Ele voltará ao ataque.
O presidente é inimigo da democracia e por isso preparará outra emboscada. Será
preciso reforçar a grade da defesa democrática.
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