Folha de S. Paulo / O Globo
Ex-presidente apagou um incêndio e só
Bolsonaro sabe quanto custou
Michel Temer morre e não conta o que faz,
mas entre a noite de quarta-feira, quando falou por telefone com Bolsonaro, e a
tarde de quinta, quando teve seu almoço com o presidente, apagou um incêndio.
Os fatos estão diante de todos.
Na terça-feira, Bolsonaro chamou o ministro
Alexandre de Moraes de “canalha” e avisou que não cumpriria decisão que viesse
dele.
Na quarta, o presidente do Supremo Tribunal
Federal, Luiz Fux, mostrou o cabo da faca:
“Se o desprezo às decisões judiciais ocorre
por iniciativa do chefe de qualquer dos Poderes, essa atitude, além de
representar um atentado à democracia, configura crime de responsabilidade, a
ser analisado pelo Congresso Nacional.”
No mesmo dia, o presidente da Câmara,
Arthur Lira, fez um discurso anódino que, espremido, emitia um estranho brilho.
Era a luz da lâmina: “O tal quadrado (da Constituição) deve circunscrever seu
raio de atuação (...) Não posso admitir questionamentos sobre decisões tomadas
e superadas — como a do voto impresso.”
Os bate-bocas com Bolsonaro haviam
deslizado até para Zé Trovão, um caminhoneiro foragido.
Temer entrou numa confusão ao seu gosto.
Baixou a bola, conseguiu a nota do recuo e até o bônus de telefonemas para
Alexandre de Moraes e Luiz Fux.
Repetiram-se cenas de 2015. Em abril daquele ano, quando 63% dos entrevistados pelo Datafolha achavam que deveria ser aberto o processo de impedimento de Dilma Rousseff, ela deu a Michel Temer, seu vice, a coordenação de seu jogo político. O comissariado petista começou a fritá-lo em menos de um mês. Em agosto, ele sinalizou seu afastamento do Planalto, em dezembro estava pintado para a guerra, e meses depois a doutora caiu.
Mais tarde, ele explicaria:
Eu entrei para ajudar e fiz todos os
acordos usando o meu cartão de crédito político. Eles não os honraram.
Só Bolsonaro sabe que acordos botou no
cartão de Temer.
Uma coisa é certa, o ex-presidente acha que
a situação não deve se repetir. A ver, mas ele nunca reclama antes.
Camelos para o Ceará
Está nas livrarias “Catorze Camelos para o
Ceará”, do repórter Delmo Moreira. Conta uma preciosa história da segunda
metade do século XIX. Ensina que fé em soluções mágicas, boquinhas, obsessão
com a imagem do governo e vergonha do Brasil real são coisa antiga.
O gatilho da história não podia ser mais
pitoresco. Numa manhã de junho de 1859, um navio francês desembarcou em
Fortaleza 14 camelos trazidos da Argélia. Os bichos seriam pioneiros da
ocupação do semiárido nordestino por uma espécie capaz de suportar secas. Antes
dos camelos, havia chegado a Fortaleza uma Comissão Científica, composta por
luminares, destinada a estudar aquele pedaço do Brasil.
Essa Comissão trabalhava havia tempo. Em
Londres, o poeta Gonçalves Dias comprava aparelhos para estudos geológicos e
astronômicos. O engenheiro Raja Gabaglia pesquisava em Paris. O Barão de
Capanema (amigo do Imperador) acertou com os diretores do Museu de Viena a
fabricação dos vidros para transportar espécimes. Dos Estados Unidos, veio uma
canoa portátil de goma elástica. A ideia era coletar amostras da vida e da
natureza naquelas terras.
A presença dos luminares em Fortaleza foi
notada pouco antes da chegada dos camelos porque eles deram uma festa que
acabou com banho de mar de gente nua.
Perto do Crato, Gonçalves Dias viu os
índios Xocós. Nada a ver com aquele tipo belo e forte de seus poemas. Viviam na
miséria. Capanema reclamava da falta que fazia à região o regime de servidão da
Rússia, pois os guias cobravam caro. Outro “científico” assustou-se com a visão
de penitentes, mas as coisas melhoraram para Raja Gabaglia quando ele se
apaixonou em Sobral por Maria da Natividade, irmã do futuro barão da terra.
Outro “científico” apaixonava-se por onde passava. Um colega acusava-o de
consumir as noites na “devassidão”. A expedição seria chamada de “Comissão do
Defloramento”.
Os sábios percorreram o sertão por dois
anos e meio e trabalharam. Infelizmente, parte do acervo que coletaram
naufragou. Mesmo assim, só o herbário levado para o Rio tinha 14 mil amostras.
De volta à Corte, planejaram uma exposição e publicaram um relatório. Delmo
Moreira conta que parte dele, na qual Gonçalves Dias e Capanema criticavam os
governos e relataram cenas de miséria, foram expurgados. Seriam “publicidade
inoportuna” que repercutiria mal nos círculos científicos europeus.
E os camelos? Foram privatizados. Em 1867,
eram vinte. Em 1934, apenas uns poucos, inúteis e definhados, zanzavam pelas
terras de seus donos.
Caminho das pedras
Tudo indica que os processos capazes de
tornar Bolsonaro inelegível ou mesmo resultar na cassação da sua chapa com o
general Hamilton Mourão terão pouco futuro.
A solução traumática, se vier, virá pelo
impedimento cuja tramitação se dá no Congresso.
Ficam sobre as mesas os processos que
envolvem filhos do capitão 00.
Recordar é viver
Outro dia, o audaz Steve Bannon, um dos
criadores de Donald Trump, mestre na arte de orquestração de redes sociais,
disse que a eleição brasileira de 2022 será “a mais importante de todos os
tempos na América do Sul”. Nela, “Jair Bolsonaro enfrentará Lula, o esquerdista
mais perigoso do mundo. Um criminoso e comunista.”
Bannon disse que “Bolsonaro vai ganhar, a
não ser que seja roubado pelas, adivinhem só: as máquinas”.
Semanas depois, veio a Pindorama Jason
Miller, ex-porta-voz de Trump, com o propósito de alavancar a sua rede Gettr. O
doutor passou pelo Brasil, foi ouvido pela Polícia Federal e voltou para casa.
Estima-se que 15%, 25% ou 50% dos usuários dessa rede sejam brasileiros.
Portanto, ninguém sabe quantos brasileiros usam a Gettr. Com certeza, lá estão
Jair, Flávio e Eduardo Bolsonaro.
Quem não está nessa é o governo de Joe
Biden.
Recordar é viver. No dia 30 de julho de 1962, quando o presidente americano John Kennedy instalou o sistema de grampo no Salão Oval da Casa Branca, ele se reuniu com Lincoln Gordon, seu embaixador no Brasil. A certa altura, Gordon mencionou a importância da eleição brasileira daquele ano e propôs que se jogasse algum dinheiro na campanha. A cifra foi mencionada, mas ainda está embargada. Um biógrafo de Gordon diz que foram 5 milhões de dólares. (US$ 45 milhões em dinheiro de hoje.)
O ervanário foi canalizado para diversas
instituições. A mais famosa chamava-se Instituto Brasileiro de Ação
Democrática. Seu cabeça era o publicitário Ivan Hasslocher, dono de uma pequena
agência. Ele irrigou o que hoje se chama de “mídia tradicional”.
A operação deu em CPI, mas Hasslocher saiu da cena. Morou na Suíça, andou pela Indonésia e em 1992, aos 72 anos, vivia em Londres. No inverno, mudava-se para sua casa no Texas, onde morreu em 2000.
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