Professor destaca que a crise entre o presidente e o Supremo não é institucional, como parece, mas parte do temor do chefe do Executivo diante do poder de decisão da Corte
Marlen Couto / O Globo
RIO — Professor de Direito Constitucional,
membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e fundador do curso de Direito da
FGV-Rio, Joaquim Falcão recorre ao dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues ao
resumir os últimos desdobramentos da República, após as manifestações de 7 de
setembro e dos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal
(STF). “Os fatos mudam mais e são mais rápidos do que a percepção que nós temos
dos próprios fatos”, cita o jurista.
Em entrevista ao GLOBO, Falcão destaca que
a crise entre Bolsonaro e o Supremo não é institucional, como parece, mas parte
do temor do presidente diante do poder de decisão da Corte em investigações que
atingem seus filhos e aliados. Sobre o recuo, o jurista afirma que o presidente
destruiu sua “credibilidade” com as indas e vindas, agora também entre seus
próprios seguidores.
Por que o Supremo se tornou
alvo preferencial do bolsonarismo?
O Supremo vai ter poder final, por exemplo,
no que diz respeito às investigações envolvendo os filhos de Bolsonaro e tem
uma pauta que vai decidir fatos que afetam de perto não somente o presidente,
mas aqueles que o cercam, como (Fabrício) Queiroz, (Eduardo) Pazuello e Roberto
Jefferson. Por detrás do aparente conflito institucional, lateja um conflito
individual com o próprio presidente e a Constituição. É a possibilidade de
prisão dos familiares, para os partidários, o círculo do próprio Planalto. O
presidente veio com o ministro (Sergio) Moro e uma mensagem contra a corrupção.
Mas o ministro saiu. E os indícios e casos de corrupção cercam seu governo.
Isso significa que a carta de
Bolsonaro não é na prática um recuo?
O esforço do ex-presidente Michel Temer é
louvável. Mas o presidente prometendo e não cumprindo, anunciando e não
cumprindo, indo e vindo, cercado pelo desgoverno de si próprio, destruiu-se
como credibilidade. É esperar para ver.
O senhor defende que os
ataques constantes de Bolsonaro e de seus apoiadores trouxeram mais unidade ao
Supremo. Quais são os sinais dessa unidade?
O Supremo precisa de pluralidade de pontos de vista jurídicos nos votos dos casos em que analisa e julga. A pluralidade é o ethos democrático. Mas não é o caso. Não se trata de ação de inconstitucionalidade, recurso extraordinário ou embargos. Mas da defesa da instituição. A união institucional se impõe às divergências conjunturais, ideológicas e pessoais.
O Supremo sai então
fortalecido?
Acredito que sim. Mesmo porque os cidadãos
criticam o Supremo, mas também expressam que precisam do Supremo. O Supremo,
porém, só vai se fortalecer definitivamente quando for eficiente em resolver
conflitos, através de soluções que tragam a paz social. O problema do Supremo,
estrutural, é ter de ser mais rápido, mais ágil, mais eficiente. Digo que é
como se existissem dois conflitos. Há um do conflito pelo discurso, de
palavras, mas há outro que envolve o Brasil real. E é sobre ele que temos que
nos preocupar. É onde o Supremo e Judiciário precisam colaborar. Existe hoje a
justiça das milícias, do tráfico, dos devastadores da Amazônia, da ilegalidades
que, às vezes, estão se impondo à lenta e burocrática justiça do Judiciário. O
Judiciário está perdendo a competição para outros centros paralelos que
resolvem os conflitos, sejam milícias, traficantes... O Rio de Janeiro é um
exemplo. Meu receio é que isso se espalhe pelo Brasil. Se o Judiciário não
fizer sua reforma de eficiência, podemos ter um paradoxo: um Supremo
institucionalmente forte, mas com uma atuação conjunturalmente frágil.
A crise agora pode se mover
para o Congresso? É uma crise mais política que jurídica?
Imaginar que a crise política, econômica e
social que a gente está vivendo é uma questão de debate jurídico sobre a
interpretação da Constituição é uma ilusão. Tem fatores reais de poder que são
muito mais decisivos. Temos que aprofundar a origem para chegar a uma solução.
A origem é a incapacidade de resolver problemas reais: a inflação, o eventual
racionamento, o combate à Covid-19, a impossibilidade de fazer reformas que o
Brasil quer. O debate jurídico tem limite. A solução surgirá quando os atores
políticos agirem.
Falta unidade aos atores
políticos?
É um espanto a incapacidade do campo
democrático brasileiro de unir-se em contrários em favor da democracia. A união
entre partidos políticos que podem construir o campo democrático, como tem
defendido (o cientista social) Marcos Nobre, está paralisada. O campo
democrático está perdendo a briga da pauta nacional, da união e mobilização
pela democracia. A incapacidade de unir o campo democrático é uma consequência
real tão importante quanto os ataques de Bolsonaro ao Supremo. Se esses ataques
verbais que ultrapassam os limites do aceitável, até do decoro, fizeram com que
se unisse o Supremo, então é possível que a ineficiência de gestão do país seja
capaz de unir o campo democrático.
Há chances reais disso
acontecer?
É sempre bom lembrar que Júlio César era o
tido como o todo-poderoso de todos os exércitos na Republica Romana.
Acreditava-se assim. Até que todo o Senado e todos os senadores se uniram e o
apunhalaram pelas costas. Inclusive seus aliados melhores. Daí a famosa frase
diante de seu querido Brutus: “Até tu, Brutus?”. Haverá o momento em que
Bolsonaro vai dizer: “Até tu, Centrão?”.
O procurador-geral, Augusto
Aras, adotou um tom abaixo ao de Fux, sem indicar que pode recorrer a medidas
drásticas contra Bolsonaro. Qual o impacto do alinhamento do PGR ao Executivo
no agravamento da crise institucional?
Uma característica da crise democrática é a
paralisação, a neutralização, dos órgãos de controle da República. Essa neutralização
se faz sobretudo através da indicação das chefias, mesmo contra a vontade do
restante das instituições que elas representam. Isso leva para essas
instituições uma tensão interna. Essa tensão dentro da AGU, do TCU, do MP, da
PGR, tem duas consequências. Uma é a imprevisibilidade das decisões, a
insegurança. Não há um rumo certo, não existe mais sintonia entre chefias e
seus colegas. Estamos vivendo o Estado democrático de Direito da insegurança. A
outra é a disfunção. Idas e vindas, os retardos. São mecanismos que afetam
muito o funcionamento da democracia. Será que haverá um Aras antes da
recondução e outro Aras depois da recondução? Ou haverá um Aras candidato ainda
ao Supremo? O tempo dirá.
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