Valor Econômico
Pesquisas mostram que programas focados nas
crianças acabam se pagando no longo prazo
O programa Bolsa Família cumpriu um papel
muito importante na sociedade brasileira, ao diminuir bastante a pobreza
extrema a um custo reduzido. Mas há sinais de que esse efeito está se
esgotando, o que ficou mais evidente depois da pandemia. Assim, o Bolsa Família
terá que mudar. Como deve ser esse novo programa social?
Em primeiro lugar, é sempre bom lembrar que até os anos 80 não tínhamos praticamente nenhum programa de proteção social. Aliás, também não tínhamos programas de atenção primária na saúde, a maioria dos jovens estava fora da escola e os programas de aposentadoria para os mais pobres eram precários. A pobreza era elevada, assim como as taxas de mortalidade, principalmente entre as crianças. As pessoas não tinham como sobreviver às secas, a não ser com a migração para os centros urbanos no Sudeste.
Até que, no início dos anos 2000, foi
criado o programa Bolsa Família, a partir da junção de vários programas que já
existiam, como o Bolsa Escola, vale gás, entre outros. O Bolsa Família tinha
várias “sacadas”. A primeira delas é que se trata de um programa de
transferência de renda condicional, ou seja, para receber as transferências, as
famílias têm que colocar seus filhos nas escolas, vaciná-los e fazer exames de
saúde regulares. Como o Brasil sempre teve um programa de vacinação exemplar e
a estratégia Saúde da Família estava se expandindo para atender as famílias
mais pobres, a interação entre saúde, assistência e educação prometiam salvar a
nova geração de brasileiros.
A outra “sacada” é que o valor das
transferências poderia ser baixo, pois os pobres não costumavam receber quase
nada do Estado. Assim, o custo do programa era reduzido como proporção do PIB e
seu impacto era alto. E as pessoas ficaram felizes, podiam se alimentar e
retribuíam com votos para o PT. Ou seja, o Bolsa Família agradava quase todos.
Só não agradava os que achavam que a transferência iria estimular a preguiça
natural dos mais pobres e induzi-los a terem mais filhos. Mas esse era um grupo
reduzido (ou assim pensávamos na época).
Aos poucos o programa se mostrou
insuficiente para promover mais igualdade de oportunidades e mobilidade
intergeracional, por vários motivos. Em primeiro lugar, o seu valor reduzido,
que era um “plus” no início, foi se tornando um grande limitador. Hoje em dia
sabemos que as condições iniciais da vida da criança são essenciais para que
ela possa desenvolver suas habilidades cognitivas e socioemocionais. E que o
desenvolvimento dessas habilidades depende de elas terem pais disponíveis para
estimulá-las. Mas a falta de renda para comprar produtos básicos, como roupas,
transporte, aluguel e remédios faz com que os pais estejam constantemente
estressados e não consigam interagir com os filhos.
O valor médio atual das transferências, de
cerca de R$ 200 por família, é insuficiente para comprar esses produtos
básicos, principalmente nos grandes centros urbanos. E nos últimos anos, esse
valor tem crescido sempre abaixo da inflação, especialmente no período recente.
Os gastos demasiados do setor público em outras áreas fazem com que falte
dinheiro para as transferências, de forma que a corda arrebenta do lado mais
fraco, sem poder de lobby. Assim, cerca de 50% dos beneficiários do programa
com crianças pequenas continuam pobres mesmo depois de receber as
transferências.
Além disso, também devido a essas
restrições financeiras, muitas pessoas inscritas no cadastro único e que
atendem os critérios para inclusão no programa acabam ficando na fila de
espera. Dados das pesquisas domiciliares mostram que cerca de 1/3 das famílias
elegíveis para receber as transferências estão fora do programa. Como estamos
vivendo uma grave crise econômica desde 2015, seguida de uma pandemia que
penalizou especialmente os trabalhadores mais pobres, a fila de espera
disparou. E não existem leis que obriguem o governo a atender todas as pessoas
elegíveis, nem a manter o valor real do benefício constante.
E como deveria ser o novo Bolsa Família? Em
primeiro lugar, o novo programa tem que atender a todos os brasileiros
elegíveis. O governo deveria usar o aplicativo que foi desenvolvido para pagar
o auxílio emergencial para cadastrar todas as famílias pobres e “potencialmente
pobres”, ou seja, as que têm grande flutuação de renda ao longo do ano ou que
têm renda perto da linha de pobreza. Essas famílias teriam que atualizar os
dados de renda de todos os seus membros trimestralmente, diretamente no
aplicativo.
Quando a sua renda caísse abaixo da linha
de pobreza, elas receberiam a transferência automaticamente. E as prefeituras
fariam visitas em uma amostra de beneficiários todos os meses para checar o
padrão de vida dessas famílias e evitar fraudes.
Quando a renda do trabalho subir acima da
linha de pobreza, a retirada do programa deve ser paulatina, para evitar que as
transferências desestimulem a busca por trabalho.
A linha de pobreza que define acesso ao
programa tem que ser diferente para cada região do país. Para deixar de ser
extremamente pobre, uma família com duas crianças e dois adultos que mora na
região metropolitana de São Paulo precisa receber R$ 800. Se essa mesma família
morasse na zona rural do Piauí, R$ 400 já seriam suficientes. Ao transferir o
mesmo valor para todas as famílias, o programa acaba tendo impacto diferenciado
na pobreza entre as regiões do país. Além disso, o valor da transferência tem
que ser mais alto para as famílias com crianças, pelos motivos apontados acima.
Em suma, várias pesquisas mostram que
programas focados nas crianças acabam se pagando no longo prazo. As crianças
beneficiadas desenvolvem mais suas habilidades, ficam mais tempo na escola,
encontram um bom emprego, são mais produtivas e pagam mais impostos. Talvez o
principal fator explicativo para nosso baixo crescimento de produtividade nos
últimos 40 anos tenha sido a falta de investimento nas crianças pobres. Vale a
pena testar essa hipótese para termos alguma esperança de mudar nosso futuro.
*Naercio Menezes Filho é
professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da
FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências
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