sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Pedro Doria - Trabalhadores do Vale, uni-vos!

O Globo / O Estado de S. Paulo

Há um clima novo no Vale do Silício, e isso ficou evidente na última semana, quando uma ex-gerente de produto do Facebook expôs o rosto em público e se apresentou como delatora no Senado americano. Porque Frances Haugen não é única, tampouco rara. Também na última semana, foi ao ar um novo episódio do podcast Land of the Giants, que a cada temporada conta a história de grandes empresas do Vale. E lá, numa entrevista, outra gerente deu entrevista contra a empresa em que trabalha. A Apple. É Ashley Gjøvik, uma programadora que montou um levante de funcionários na companhia exigindo a demissão de um diretor. Conseguiu. No Google, mais de uma vez nos últimos anos, funcionários cruzaram os braços para exigir mudanças no comportamento da chefia. E, agora, uma guerra entre gestores e trabalhadores está em curso a respeito do trabalho presencial. Muitos não querem voltar.

Faz dez anos que Steve Jobs morreu, e Tim Cook o substituiu na Apple. Jobs era um chefe tirânico, embora tenha se suavizado com o tempo. Era também uma lenda no Vale pelo brilho, pela intuição que o guiava a criar produtos novos, pela capacidade de inspirar sua equipe. Em seu tempo, o Vale se tornou uma segunda Hollywood na Califórnia. Assim como, nas primeiras décadas do século XX, inúmeros jovens americanos tomaram a estrada para o Oeste com o sonho de explodir no cinema, nas últimas décadas não foram poucos os que se dirigiram ao Vale movidos a outro sonho. Conseguir um emprego numa companhia grande, criar fama, conhecer gente, lançar uma startup e fazer fortuna.

Conseguir um emprego numa Apple, num Facebook, num Google era, para jovens programadores ou engenheiros ou gestores, marcar um gol definidor de carreira. Por isso mesmo, muitos se sujeitaram a chefes agressivos, jornadas de trabalho extenuantes, em essência fizeram do trabalho sua vida. Todos sabiam que qualquer um que saísse seria rapidamente substituído. Gente brigando pelas vagas não faltava.

Pois essa cultura mudou.

Os motivos são três — e o primeiro é o movimento Me Too, de denúncia de assédio sexual. Em nenhum lugar dos EUA a liberdade de ser quem se é se tornou regra básica de convívio como no Norte da Califórnia. A bandeira do arco-íris está por toda parte, a comunidade LGBTQIA+ é ativa, e o debate sobre pronomes, sobre salários, sobre comportamento se dá em todos os cantos. Na Apple, o diretor cuja demissão Ashley Gjøvik conseguiu havia escrito um livro em que desdenhava mulheres. A ponta frágil era ele nessa briga, não importa quão acima estava na hierarquia.

A segunda razão é a maneira como as big techs começaram a ser vistas fora do Vale. De 2016 para cá, os problemas de privacidade, a percepção de que auxiliam na manipulação de eleições, a compreensão de que estamos todos adictos às telas começam a fazer a fábrica de sonhos tecnológicos se parecer com a indústria tabagista nos anos 1990. Está claro que as promessas do Vale de uma utopia digital cedem perante um negócio que cresce. Pois também lá dentro das companhias há gente inconformada. E estão cobrando coerência cada vez mais.

E, por fim, o preço da vida no Vale do Silício. O metro quadrado mais caro do Hemisfério Ocidental — não tem Vieira Souto ou Park Avenue que compitam. A pandemia, quando se mostrou duradora, fez muita gente explorar a ideia de ir morar mais longe. De trocar os apartamentos apertados de San Francisco, Berkeley ou San José por casas com jardim muito mais distantes. Agora querem ficar onde estão e continuar a trabalhar remotamente. Muitos ameaçam, se forem obrigados a voltar, abandonar os empregos.

Trocar um é fácil. Trocar centenas não é. Os trabalhadores do digital se levantaram.

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