O Globo / O Estado de S. Paulo
Há um clima novo no Vale do Silício, e isso
ficou evidente na última semana, quando uma ex-gerente de produto do Facebook
expôs o rosto em público e se apresentou como delatora no Senado americano.
Porque Frances Haugen não é única, tampouco rara. Também na última semana, foi
ao ar um novo episódio do podcast Land of the Giants, que a cada temporada
conta a história de grandes empresas do Vale. E lá, numa entrevista, outra
gerente deu entrevista contra a empresa em que trabalha. A Apple. É Ashley
Gjøvik, uma programadora que montou um levante de funcionários na companhia
exigindo a demissão de um diretor. Conseguiu. No Google, mais de uma vez nos últimos
anos, funcionários cruzaram os braços para exigir mudanças no comportamento da
chefia. E, agora, uma guerra entre gestores e trabalhadores está em curso a
respeito do trabalho presencial. Muitos não querem voltar.
Faz dez anos que Steve Jobs morreu, e Tim Cook o substituiu na Apple. Jobs era um chefe tirânico, embora tenha se suavizado com o tempo. Era também uma lenda no Vale pelo brilho, pela intuição que o guiava a criar produtos novos, pela capacidade de inspirar sua equipe. Em seu tempo, o Vale se tornou uma segunda Hollywood na Califórnia. Assim como, nas primeiras décadas do século XX, inúmeros jovens americanos tomaram a estrada para o Oeste com o sonho de explodir no cinema, nas últimas décadas não foram poucos os que se dirigiram ao Vale movidos a outro sonho. Conseguir um emprego numa companhia grande, criar fama, conhecer gente, lançar uma startup e fazer fortuna.
Conseguir um emprego numa Apple, num
Facebook, num Google era, para jovens programadores ou engenheiros ou gestores,
marcar um gol definidor de carreira. Por isso mesmo, muitos se sujeitaram a
chefes agressivos, jornadas de trabalho extenuantes, em essência fizeram do
trabalho sua vida. Todos sabiam que qualquer um que saísse seria rapidamente substituído.
Gente brigando pelas vagas não faltava.
Pois essa cultura mudou.
Os motivos são três — e o primeiro é o
movimento Me Too, de denúncia de assédio sexual. Em nenhum lugar dos EUA a
liberdade de ser quem se é se tornou regra básica de convívio como no Norte da
Califórnia. A bandeira do arco-íris está por toda parte, a comunidade LGBTQIA+
é ativa, e o debate sobre pronomes, sobre salários, sobre comportamento se dá
em todos os cantos. Na Apple, o diretor cuja demissão Ashley Gjøvik conseguiu
havia escrito um livro em que desdenhava mulheres. A ponta frágil era ele nessa
briga, não importa quão acima estava na hierarquia.
A segunda razão é a maneira como as big
techs começaram a ser vistas fora do Vale. De 2016 para cá, os problemas de
privacidade, a percepção de que auxiliam na manipulação de eleições, a
compreensão de que estamos todos adictos às telas começam a fazer a fábrica de
sonhos tecnológicos se parecer com a indústria tabagista nos anos 1990. Está
claro que as promessas do Vale de uma utopia digital cedem perante um negócio
que cresce. Pois também lá dentro das companhias há gente inconformada. E estão
cobrando coerência cada vez mais.
E, por fim, o preço da vida no Vale do
Silício. O metro quadrado mais caro do Hemisfério Ocidental — não tem Vieira
Souto ou Park Avenue que compitam. A pandemia, quando se mostrou duradora, fez
muita gente explorar a ideia de ir morar mais longe. De trocar os apartamentos
apertados de San Francisco, Berkeley ou San José por casas com jardim muito
mais distantes. Agora querem ficar onde estão e continuar a trabalhar
remotamente. Muitos ameaçam, se forem obrigados a voltar, abandonar os
empregos.
Trocar um é fácil. Trocar centenas não é. Os trabalhadores do digital se levantaram.
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