Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Só seremos uma nação forte quando a
formação de cientistas for prioridade equivalente às reformas que embalam o
debate da elite econômica e política
Na semana de comemoração do Dia dos
Professores, o país deveria celebrar o conhecimento como principal alavanca de
seu desenvolvimento integral - econômico, social, político e cultural.
Infelizmente, o momento espelha o inverso disso: o Ministério da Economia
cortou R$ 600 milhões do Orçamento do CNPq, deixando à mingua os cientistas
brasileiros, ao mesmo tempo em que se constata a redução dos gastos
educacionais após uma pandemia que escancarou a desigualdade entre os
estudantes. É preciso dizer em alto e bom som: a retração dos investimentos em
ciência e educação piorará a vida de nossos filhos e netos.
Num mundo cada vez mais tecnológico, com
vacinas produzidas em tempo recorde salvando milhões de brasileiros da pandemia
e com os empregos exigindo cada vez mais escolaridade, por que o Brasil está
virando as costas para a educação e a ciência? Há um fator conjuntural
vinculado à agenda do presidente Bolsonaro, mas também a sociedade brasileira
não vê ainda esses temas como prioridades.
O bolsonarismo é, definitivamente, um inimigo da educação e da ciência. A redução do orçamento de ambos os ministérios é a prova mais cabal disso. Essa escolha política se deve, em primeiro lugar, à visão negacionista refratária ao conhecimento científico. O ideário de Bolsonaro ancora-se aqui no mesmo movimento da extrema-direita internacional cujo pilar é a produção de uma nova narrativa para parcelas da sociedade que, de um modo ou outro, estão descontentes ou até rancorosas com as transformações do mundo contemporâneo.
As “fakes news” entram nesse modelo mental
não só como mentiras, mas como um meio de se contrapor à contemporaneidade,
dentro da qual os saberes dos especialistas e a visão moral dos mais educados
seriam vistos como males a serem combatidos.
Neste sentido, ser contra a ciência é uma
forma de construir uma nova visão de moralidade, pretensamente mais vinculada
aos valores da família patriarcal e de certos segmentos sectários do
cristianismo - no caso brasileiro, especialmente os ligados a lideranças
neopentecostais. Bolsonaro representa esse movimento quando diz que quer ter um
ministro do STF “terrivelmente evangélico”, independentemente de suas
credenciais no campo do direito, diminuindo assim a importância da base
acadêmica do candidato. Claro que essa visão de mundo não serve apenas a
valores, mas também a interesses políticos: o bolsonarismo se utiliza politicamente
desses bolsões reacionários para angariar votos e popularidade.
O caminho contra a educação e a ciência
envolve também uma batalha política contra o que representam professores e
pesquisadores, universidades e escolas. O bolsonarismo vê nestes atores e
instituições um grande obstáculo a seus propósitos não apenas porque, em geral,
eles comungam de um ideário diferente do populismo autoritário de Bolsonaro.
A questão mais problemática estaria no fato
de que eles formam outros sujeitos numa cultura baseada na visão crítica e no
uso de evidências cientificas. Isso cria um ambiente de independência
intelectual, algo nefasto para quem coloca mitos, tradições e lideranças
carismáticas à frente do debate público racional.
Em poucas palavras, Bolsonaro não quer
cidadãos reflexivos e autônomos que possam questionar as decisões do
presidente. Além de enfraquecer a educação e a ciência, o bolsonarismo precisa
classificar os que buscam maior escolaridade e visão crítica nas universidades
como “minoria”, um argumento que contém a artimanha política de jogar parte da
população contra professores e cientistas. O estrago de longo prazo desse
modelo obscurantista e de extrema-direita não se restringe somente à fuga de
cérebros, que aumentará muito à medida que forem destruídos o MEC e o
Ministério da Ciência e Tecnologia, como está ocorrendo agora, algo que
certamente reduzirá o crescimento econômico do Brasil nas próximas décadas. Mas
vale ressaltar qual é o objetivo maior e ideológico dos bolsonaristas: trata-se
de evitar que a produção de conhecimento científico seja a mola mestra de um
projeto nacional.
O problema, todavia, não está apenas na
agenda bolsonarista de governo. A sociedade brasileira ainda não comprou com
vigor a ideia de que a única forma de termos desenvolvimento é investindo mais
e melhor na educação e na ciência. Esse fenômeno vale, por diferentes razões e
de modos diversos, tanto no andar de cima como no de baixo da estrutura social,
como diria Elio Gaspari.
Desde sua primeira legislação, a educação
brasileira teve um forte viés elitista. Isto é, o modelo de financiamento e de
funcionamento do sistema educacional favoreceu principalmente os mais abastados
em termos de renda e escolaridade familiar. Foi por meio desse modelo que foram
criadas instituições universitárias públicas e algumas privadas de ponta que
formaram excelentes profissionais e em determinados campos do conhecimento
produziram pesquisa científica de altíssima qualidade.
Não haveria o agronegócio atual sem a
Embrapa e suas parcerias com pesquisadores da academia. Uma parcela da
sociedade brasileira tem acesso a hospitais de nível internacional graças às
universidades e à excelente pesquisa médica no campo da saúde - e o SUS, embora
tenha vários problemas, salvou milhares de brasileiros mais pobres na pandemia,
pois tem bons médicos formados com recursos públicos.
Os profissionais dos nichos de excelência
da burocracia pública brasileira derivam dos melhores cursos universitários do
país. O que há de mais eficiente no capitalismo brasileiro, como o sistema
financeiro, as startups e as empresas inovadoras, tem como raiz a alocação de
recursos para educação e ciência, as quais, até recentemente, beneficiavam
fundamentalmente os filhos da elite, cuja trajetória típica, desde a década de
1970, foi estudar em colégios privados para depois fazer universidades
públicas.
Tanto os efeitos do conhecimento na
produção da riqueza brasileira como o modelo elitista que o gerou, muitas vezes
financiado pelo Estado, são dois fatos pouco abordados pela elite brasileira.
Esse esquecimento advém, a meu juízo, de duas causas. De fato, uma parte da
elite econômica brasileira cresceu na escala social utilizando-se das
ferramentas de um capitalismo predatório. Claro que eles dependem de uma parte
de funcionários muito qualificados, mas valorizam mais suas trajetórias
individuais como capitalistas do que suas organizações.
Uma história ilustra bem esse argumento.
Certa vez, em minhas andanças pelo país defendendo a educação, encontrei um
empresário que me disse: “Comecei a trabalhar com 12 anos, não tive grande
escolaridade e fiquei rico. Tenho alguns amigos empresários nesta mesma
situação. Por que então essa insistência em defender que os jovens só estudem e
não trabalhem?” Respondi usando a ciência, minha única ferramenta: “O senhor e
seus amigos são a exceção da exceção. A regra é que quem teve de trabalhar
muito cedo parou de estudar e não teve ascensão social. Esse modelo educacional
perverso produziu muita desigualdade e explica em boa medida porque não somos desenvolvidos
como os EUA ou a Europa”. Por sorte, ele me ouviu e passou a investir em
escolas públicas.
Existe uma outra parcela da elite que,
felizmente, está cada vez mais engajada em defender a educação, mas que
praticamente ignora a necessidade de investimento em larga escala em ciência e
tecnologia, campo que nunca teve uma “reforma” para chamar de sua. O mercado
financeiro não aumentará sua desconfiança em relação ao presidente Bolsonaro
por conta do corte de quase todo o orçamento do CNPq. Há uma crença em setores
esclarecidos do capitalismo brasileiro, que vem da década de 1990, segundo a
qual o livre acesso a bens e saberes produzidos globalmente já seriam
suficientes para alimentar o bom desempenho da economia. Trata-se de uma grande
ilusão, ou pior, uma armadilha. Não é preciso ser um nacionalista obtuso para
entender que o aumento da pesquisa científica traz muito mais oportunidades de
desenvolvimento, inclusive como chamariz para investimentos estrangeiros. Basta
olhar para o que fazem os países que mais estão se desenvolvendo no mundo.
Entre os mais pobres e os remediados, não
há ainda uma consciência de que é preciso se mobilizar pela educação e pela
ciência para mudar o mapa da desigualdade do país. Mesmo com as enormes
transformações em termos de aumento dos níveis de escolaridade da população
brasileira nos últimos 30 anos, existe ainda uma enorme assimetria em relação à
possibilidade de lutar pelo conhecimento como instrumento de mudança social. O
fato é que, no andar de baixo, muitos precisam gastar a maior parte de sua vida
para simplesmente sobreviver e outros foram encantados pelas promessas do
neopentecostalismo populista que se agigantou nas periferias do país, que os
leva a acreditar mais em mitos do que no saber científico. Mas quem salvou os
pobres da covid-19 foram as vacinas, e não o negacionismo.
O Brasil só dará certo no século XXI se
tornar a busca pelo conhecimento uma obsessão, investindo mais na educação e
ciência. Esse processo poderia começar lembrando mais do Dia do Professor, base
de todas as profissões. Só teremos uma nação forte quando docentes e seus
alunos que se transformam em cientistas sejam prioridade equivalente às
reformas que tanto embalam o debate das elites políticas e econômicas do país.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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