sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Fernando Abrucio*- Só a ciência e os professores nos salvarão

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Só seremos uma nação forte quando a formação de cientistas for prioridade equivalente às reformas que embalam o debate da elite econômica e política

Na semana de comemoração do Dia dos Professores, o país deveria celebrar o conhecimento como principal alavanca de seu desenvolvimento integral - econômico, social, político e cultural. Infelizmente, o momento espelha o inverso disso: o Ministério da Economia cortou R$ 600 milhões do Orçamento do CNPq, deixando à mingua os cientistas brasileiros, ao mesmo tempo em que se constata a redução dos gastos educacionais após uma pandemia que escancarou a desigualdade entre os estudantes. É preciso dizer em alto e bom som: a retração dos investimentos em ciência e educação piorará a vida de nossos filhos e netos.

Num mundo cada vez mais tecnológico, com vacinas produzidas em tempo recorde salvando milhões de brasileiros da pandemia e com os empregos exigindo cada vez mais escolaridade, por que o Brasil está virando as costas para a educação e a ciência? Há um fator conjuntural vinculado à agenda do presidente Bolsonaro, mas também a sociedade brasileira não vê ainda esses temas como prioridades.

O bolsonarismo é, definitivamente, um inimigo da educação e da ciência. A redução do orçamento de ambos os ministérios é a prova mais cabal disso. Essa escolha política se deve, em primeiro lugar, à visão negacionista refratária ao conhecimento científico. O ideário de Bolsonaro ancora-se aqui no mesmo movimento da extrema-direita internacional cujo pilar é a produção de uma nova narrativa para parcelas da sociedade que, de um modo ou outro, estão descontentes ou até rancorosas com as transformações do mundo contemporâneo.

As “fakes news” entram nesse modelo mental não só como mentiras, mas como um meio de se contrapor à contemporaneidade, dentro da qual os saberes dos especialistas e a visão moral dos mais educados seriam vistos como males a serem combatidos.

Neste sentido, ser contra a ciência é uma forma de construir uma nova visão de moralidade, pretensamente mais vinculada aos valores da família patriarcal e de certos segmentos sectários do cristianismo - no caso brasileiro, especialmente os ligados a lideranças neopentecostais. Bolsonaro representa esse movimento quando diz que quer ter um ministro do STF “terrivelmente evangélico”, independentemente de suas credenciais no campo do direito, diminuindo assim a importância da base acadêmica do candidato. Claro que essa visão de mundo não serve apenas a valores, mas também a interesses políticos: o bolsonarismo se utiliza politicamente desses bolsões reacionários para angariar votos e popularidade.

O caminho contra a educação e a ciência envolve também uma batalha política contra o que representam professores e pesquisadores, universidades e escolas. O bolsonarismo vê nestes atores e instituições um grande obstáculo a seus propósitos não apenas porque, em geral, eles comungam de um ideário diferente do populismo autoritário de Bolsonaro.

A questão mais problemática estaria no fato de que eles formam outros sujeitos numa cultura baseada na visão crítica e no uso de evidências cientificas. Isso cria um ambiente de independência intelectual, algo nefasto para quem coloca mitos, tradições e lideranças carismáticas à frente do debate público racional.

Em poucas palavras, Bolsonaro não quer cidadãos reflexivos e autônomos que possam questionar as decisões do presidente. Além de enfraquecer a educação e a ciência, o bolsonarismo precisa classificar os que buscam maior escolaridade e visão crítica nas universidades como “minoria”, um argumento que contém a artimanha política de jogar parte da população contra professores e cientistas. O estrago de longo prazo desse modelo obscurantista e de extrema-direita não se restringe somente à fuga de cérebros, que aumentará muito à medida que forem destruídos o MEC e o Ministério da Ciência e Tecnologia, como está ocorrendo agora, algo que certamente reduzirá o crescimento econômico do Brasil nas próximas décadas. Mas vale ressaltar qual é o objetivo maior e ideológico dos bolsonaristas: trata-se de evitar que a produção de conhecimento científico seja a mola mestra de um projeto nacional.

O problema, todavia, não está apenas na agenda bolsonarista de governo. A sociedade brasileira ainda não comprou com vigor a ideia de que a única forma de termos desenvolvimento é investindo mais e melhor na educação e na ciência. Esse fenômeno vale, por diferentes razões e de modos diversos, tanto no andar de cima como no de baixo da estrutura social, como diria Elio Gaspari.

Desde sua primeira legislação, a educação brasileira teve um forte viés elitista. Isto é, o modelo de financiamento e de funcionamento do sistema educacional favoreceu principalmente os mais abastados em termos de renda e escolaridade familiar. Foi por meio desse modelo que foram criadas instituições universitárias públicas e algumas privadas de ponta que formaram excelentes profissionais e em determinados campos do conhecimento produziram pesquisa científica de altíssima qualidade.

Não haveria o agronegócio atual sem a Embrapa e suas parcerias com pesquisadores da academia. Uma parcela da sociedade brasileira tem acesso a hospitais de nível internacional graças às universidades e à excelente pesquisa médica no campo da saúde - e o SUS, embora tenha vários problemas, salvou milhares de brasileiros mais pobres na pandemia, pois tem bons médicos formados com recursos públicos.

Os profissionais dos nichos de excelência da burocracia pública brasileira derivam dos melhores cursos universitários do país. O que há de mais eficiente no capitalismo brasileiro, como o sistema financeiro, as startups e as empresas inovadoras, tem como raiz a alocação de recursos para educação e ciência, as quais, até recentemente, beneficiavam fundamentalmente os filhos da elite, cuja trajetória típica, desde a década de 1970, foi estudar em colégios privados para depois fazer universidades públicas.

Tanto os efeitos do conhecimento na produção da riqueza brasileira como o modelo elitista que o gerou, muitas vezes financiado pelo Estado, são dois fatos pouco abordados pela elite brasileira. Esse esquecimento advém, a meu juízo, de duas causas. De fato, uma parte da elite econômica brasileira cresceu na escala social utilizando-se das ferramentas de um capitalismo predatório. Claro que eles dependem de uma parte de funcionários muito qualificados, mas valorizam mais suas trajetórias individuais como capitalistas do que suas organizações.

Uma história ilustra bem esse argumento. Certa vez, em minhas andanças pelo país defendendo a educação, encontrei um empresário que me disse: “Comecei a trabalhar com 12 anos, não tive grande escolaridade e fiquei rico. Tenho alguns amigos empresários nesta mesma situação. Por que então essa insistência em defender que os jovens só estudem e não trabalhem?” Respondi usando a ciência, minha única ferramenta: “O senhor e seus amigos são a exceção da exceção. A regra é que quem teve de trabalhar muito cedo parou de estudar e não teve ascensão social. Esse modelo educacional perverso produziu muita desigualdade e explica em boa medida porque não somos desenvolvidos como os EUA ou a Europa”. Por sorte, ele me ouviu e passou a investir em escolas públicas.

Existe uma outra parcela da elite que, felizmente, está cada vez mais engajada em defender a educação, mas que praticamente ignora a necessidade de investimento em larga escala em ciência e tecnologia, campo que nunca teve uma “reforma” para chamar de sua. O mercado financeiro não aumentará sua desconfiança em relação ao presidente Bolsonaro por conta do corte de quase todo o orçamento do CNPq. Há uma crença em setores esclarecidos do capitalismo brasileiro, que vem da década de 1990, segundo a qual o livre acesso a bens e saberes produzidos globalmente já seriam suficientes para alimentar o bom desempenho da economia. Trata-se de uma grande ilusão, ou pior, uma armadilha. Não é preciso ser um nacionalista obtuso para entender que o aumento da pesquisa científica traz muito mais oportunidades de desenvolvimento, inclusive como chamariz para investimentos estrangeiros. Basta olhar para o que fazem os países que mais estão se desenvolvendo no mundo.

Entre os mais pobres e os remediados, não há ainda uma consciência de que é preciso se mobilizar pela educação e pela ciência para mudar o mapa da desigualdade do país. Mesmo com as enormes transformações em termos de aumento dos níveis de escolaridade da população brasileira nos últimos 30 anos, existe ainda uma enorme assimetria em relação à possibilidade de lutar pelo conhecimento como instrumento de mudança social. O fato é que, no andar de baixo, muitos precisam gastar a maior parte de sua vida para simplesmente sobreviver e outros foram encantados pelas promessas do neopentecostalismo populista que se agigantou nas periferias do país, que os leva a acreditar mais em mitos do que no saber científico. Mas quem salvou os pobres da covid-19 foram as vacinas, e não o negacionismo.

O Brasil só dará certo no século XXI se tornar a busca pelo conhecimento uma obsessão, investindo mais na educação e ciência. Esse processo poderia começar lembrando mais do Dia do Professor, base de todas as profissões. Só teremos uma nação forte quando docentes e seus alunos que se transformam em cientistas sejam prioridade equivalente às reformas que tanto embalam o debate das elites políticas e econômicas do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

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