sexta-feira, 15 de outubro de 2021

José de Souza Martins* - A invenção urbana dos pobres

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Aqui se consideram o trabalho e o salário como inimigos do lucro

Em duas semanas, pude observar o nascimento de uma favela nas proximidades do Hospital Universitário da USP. Num dia não havia nada num terreno grande que, dizia-se, pertence à Sabesp. Duas semanas depois, o terreno já estava ocupado por barracos, os de frente para as ruas devidamente numerados. Tomaram o cuidado de seguir o critério de numeração das construções que já existiam na rua, o critério da prefeitura.

Ou seja, o favelado não quer apenas uma moradia, por precária que seja. Quer também um endereço, a casa como lugar identitário, o endereço como nexo relacional com a sociedade, com todos. Mesmo com aqueles que não reconhecem a inevitabilidade dos fatores de surgimento da favela.

No que foi um muro, foram abertas portas, e o trecho correspondente à porta foi pintado de cor diferente da moradia do vizinho. Também definição de identidade. Negação comparativamente forte em relação a apartamentos, que são o cenário do repetitivo da habitação.

Surgiu ali até uma pequena infraestrutura comercial. Num Bar do Vô, o dono pintara na fachada: “Whisky Cavalo Branco, R$ 20,00”. Mais adiante, na fachada de outro barraco: “Mini Padaria. Temos pão, leite, café, ovos...” Pinturas caprichadas de pães e de um bule derramando café numa xícara contrastam com a pobreza do tapume da fachada.

Numa favela vizinha, já antiga com sinais evidentes de que está consolidada, há duas igrejas evangélicas. Confirmam que até Deus é favelado.

Nas favelas que conheço, a habitação é a negação do linear e da linearidade, o traço do que é repetitivo. Colocando-se entre parênteses a pobreza evidente, é singular e imaginativa. Expressão da criatividade, da diferença e da originalidade. O material de construção pobre e a construção pobre não significam pobreza de espírito.

O barraco tende a ser obra de concepção artística, porque inventiva. Já vi, por fora e por dentro, barracos de incrível originalidade. Num deles, o barraco pequeno tinha dois pavimentos. Na frente do cômodo de cima, uma varanda, o dono na rede deitado apreciando a cidade. Sua casa é plástica e pós-moderna porque indefinida. Com os materiais de que dispõe, ele lhe dá a forma que lhe convém, quando convém, se convém.

Todos se lembrarão da grande repercussão da notícia sobre Estevão Silva da Conceição, baiano de origem, que ergueu na favela de Paraisópolis, em São Paulo, um verdadeiro palácio, original e criativo. Lembra a arquitetura de Gaudí. Tem até um jardim suspenso. Sua casa foi fotografada por Bob Wolfenson. A fotografia repercutiu, e Estevão foi convidado a ir a Barcelona para conhecer a obra de Gaudí, cujo estilo, sem o saber, ele recriava.

A competência criativa dos que têm necessidades sociais injustas permite-lhes fazer muito com o pouco, dar utilidade ao que é inútil, beleza ao que é feio. O antropólogo Oscar Lewis definiu a cultura dos restos e resíduos como cultura da pobreza, matéria-prima de reinvenção material e social. Aparentemente, não há campo da atividade humana em que os favelados não atuem criativamente.

A menos de 1 km da favela que está nascendo agora, nasceu e se firmou há muito a Favela do Jaguaré. Era ali a fazenda de uns 340 hectares do engenheiro agrônomo Luís Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont. Ele tinha um sonho e o narrou no livro “Urbanismo e indústria em São Paulo”.

Visitou complexos residenciais e industriais na Inglaterra e nos EUA, inspirou-se. Villares pensava o urbano e a cidade na perspectiva da utopia socialmente libertadora. Doou 150 mil m2 à prefeitura para que ali construísse um conjunto esportivo para o bairro, coisa que ela não fez. O terreno foi invadido e se transformou numa das maiores favelas de São Paulo.

Justamente na favela houve várias iniciativas de criatividade. Dois irmãos que nela cresceram trabalharam em padaria e confeitaria da Lapa. Já adultos, decidiram abrir uma padaria na favela. Ocuparam um terreno e organizaram o estabelecimento, que se tornou uma das melhores padarias da região. Estive lá, uma vez, provando pães e doces.

As favelas brasileiras são a evidência mais notável do defeito estrutural do subcapitalismo brasileiro: a renda da terra como fundamento limitante da economia. O capitalismo é incompatível com o primado da renda fundiária, que para ele representa uma irracionalidade, dedução do capital para produção. Uma irracionalidade e um fator de redução da taxa de lucro.

Aqui se consideram o trabalho e o salário como inimigos do lucro. Governo e empresas conspiram contra o trabalho e o salário todo o tempo. Mas não conspiram contra a propriedade fundiária, urbana e rural, cujos preços especulativos inviabilizam a expansão dos setores modernos do capitalismo produtivo e da atividade do capital.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - a justiça popular no Brasil" (Contexto).

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