Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Aqui se consideram o trabalho e o salário
como inimigos do lucro
Em duas semanas, pude observar o nascimento
de uma favela nas proximidades do Hospital Universitário da USP. Num dia não
havia nada num terreno grande que, dizia-se, pertence à Sabesp. Duas semanas
depois, o terreno já estava ocupado por barracos, os de frente para as ruas
devidamente numerados. Tomaram o cuidado de seguir o critério de numeração das
construções que já existiam na rua, o critério da prefeitura.
Ou seja, o favelado não quer apenas uma
moradia, por precária que seja. Quer também um endereço, a casa como lugar
identitário, o endereço como nexo relacional com a sociedade, com todos. Mesmo
com aqueles que não reconhecem a inevitabilidade dos fatores de surgimento da
favela.
No que foi um muro, foram abertas portas, e
o trecho correspondente à porta foi pintado de cor diferente da moradia do
vizinho. Também definição de identidade. Negação comparativamente forte em
relação a apartamentos, que são o cenário do repetitivo da habitação.
Surgiu ali até uma pequena infraestrutura comercial. Num Bar do Vô, o dono pintara na fachada: “Whisky Cavalo Branco, R$ 20,00”. Mais adiante, na fachada de outro barraco: “Mini Padaria. Temos pão, leite, café, ovos...” Pinturas caprichadas de pães e de um bule derramando café numa xícara contrastam com a pobreza do tapume da fachada.
Numa favela vizinha, já antiga com sinais
evidentes de que está consolidada, há duas igrejas evangélicas. Confirmam que
até Deus é favelado.
Nas favelas que conheço, a habitação é a
negação do linear e da linearidade, o traço do que é repetitivo. Colocando-se
entre parênteses a pobreza evidente, é singular e imaginativa. Expressão da
criatividade, da diferença e da originalidade. O material de construção pobre e
a construção pobre não significam pobreza de espírito.
O barraco tende a ser obra de concepção
artística, porque inventiva. Já vi, por fora e por dentro, barracos de incrível
originalidade. Num deles, o barraco pequeno tinha dois pavimentos. Na frente do
cômodo de cima, uma varanda, o dono na rede deitado apreciando a cidade. Sua
casa é plástica e pós-moderna porque indefinida. Com os materiais de que
dispõe, ele lhe dá a forma que lhe convém, quando convém, se convém.
Todos se lembrarão da grande repercussão da
notícia sobre Estevão Silva da Conceição, baiano de origem, que ergueu na
favela de Paraisópolis, em São Paulo, um verdadeiro palácio, original e
criativo. Lembra a arquitetura de Gaudí. Tem até um jardim suspenso. Sua casa
foi fotografada por Bob Wolfenson. A fotografia repercutiu, e Estevão foi
convidado a ir a Barcelona para conhecer a obra de Gaudí, cujo estilo, sem o
saber, ele recriava.
A competência criativa dos que têm
necessidades sociais injustas permite-lhes fazer muito com o pouco, dar
utilidade ao que é inútil, beleza ao que é feio. O antropólogo Oscar Lewis
definiu a cultura dos restos e resíduos como cultura da pobreza, matéria-prima
de reinvenção material e social. Aparentemente, não há campo da atividade
humana em que os favelados não atuem criativamente.
A menos de 1 km da favela que está nascendo
agora, nasceu e se firmou há muito a Favela do Jaguaré. Era ali a fazenda de
uns 340 hectares do engenheiro agrônomo Luís Dumont Villares, sobrinho de
Santos Dumont. Ele tinha um sonho e o narrou no livro “Urbanismo e indústria em
São Paulo”.
Visitou complexos residenciais e
industriais na Inglaterra e nos EUA, inspirou-se. Villares pensava o urbano e a
cidade na perspectiva da utopia socialmente libertadora. Doou 150 mil m2 à
prefeitura para que ali construísse um conjunto esportivo para o bairro, coisa
que ela não fez. O terreno foi invadido e se transformou numa das maiores
favelas de São Paulo.
Justamente na favela houve várias
iniciativas de criatividade. Dois irmãos que nela cresceram trabalharam em
padaria e confeitaria da Lapa. Já adultos, decidiram abrir uma padaria na
favela. Ocuparam um terreno e organizaram o estabelecimento, que se tornou uma
das melhores padarias da região. Estive lá, uma vez, provando pães e doces.
As favelas brasileiras são a evidência mais
notável do defeito estrutural do subcapitalismo brasileiro: a renda da terra
como fundamento limitante da economia. O capitalismo é incompatível com o
primado da renda fundiária, que para ele representa uma irracionalidade,
dedução do capital para produção. Uma irracionalidade e um fator de redução da
taxa de lucro.
Aqui se consideram o trabalho e o salário
como inimigos do lucro. Governo e empresas conspiram contra o trabalho e o
salário todo o tempo. Mas não conspiram contra a propriedade fundiária, urbana
e rural, cujos preços especulativos inviabilizam a expansão dos setores
modernos do capitalismo produtivo e da atividade do capital.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - a justiça popular no
Brasil" (Contexto).
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