O Globo
Ciro Gomes tocou em feridas que ainda
purgam para o PT e para Lula, mas que a narrativa de que tudo que se viu na
Lava-Jato foi uma armação para levar ao impeachment de Dilma Rousseff e à
prisão de seu padrinho e antecessor tenta esconder debaixo do tapete.
Num vídeo de quase seis minutos, em que se
percebe a pena, a vivência e o talento de João Santana, ex-marqueteiro de Lula
e Dilma hoje com o pedetista, um Ciro com semblante sereno pontua muitos
aspectos profundos e importantes que nos trouxeram até aqui, mas que são
verdades indigestas ao lulopetismo.
Desde que o Supremo Tribunal Federal anulou
as condenações de Lula, ele e o partido não aceitam menos que capitulação por
parte da imprensa e dos analistas em geral. Se você escrever que as penas de
Lula foram anuladas, mas ele não foi absolvido, será alvo de uma saraivada de
ataques.
Qualquer crítica, atual ou pretérita, que se faça a Lula e ao PT é prontamente catalogada como “falsa simetria” com o descalabro que é o governo Bolsonaro. Não importa que se esteja falando de coisas absolutamente diversas.
Ciro atingiu Lula a ponto de fazê-lo se
despir do figurino do pacificador nacional e proferir uma grosseria a seu
ex-ministro, dizendo que ele deve sofrer de sequelas da Covid-19 pelas críticas
que faz. Ciro tem lugar de fala. E Lula e Dilma sabem disso.
É fato que o Instituto Lula era, no
primeiro mandato de Dilma, um local de romaria pelo “volta, Lula”. Foi um
movimento explícito, vocalizado por lideranças petistas.
Também não é segredo que próceres do PT
atribuíam a Dilma boa parte da responsabilidade pelos dissabores do partido,
seja por sua condução da economia, seja pelas mudanças que promoveu na
Petrobras e que deixaram descontentes pelo caminho. A queixa de que ela não
controlava a Polícia Federal também era corrente quando o petrolão começou a
ser investigado.
O PT pretende aproveitar a dianteira
tranquila de Lula nas pesquisas para passar o processo eleitoral todo sem
enfrentar o debate sério sobre a corrupção que grassou no seu período. Como se
os erros de condução da Lava-Jato, como a relação incabível entre Sergio Moro e
os procuradores da força-tarefa, que foram graves e vieram à tona em 2019,
simplesmente transformassem todo o esquema que restou comprovado em história da
carochinha.
Resta saber se essa estratégia será
sustentável por um ano. Ciro, pela esquerda, está francamente disposto a
colocar o dedo nessa ferida. É uma tática de tudo ou nada, porque parte da
constatação de que sua viabilidade eleitoral depende de disputar com o hoje
imbatível Lula um lugar no segundo turno.
Em 2020, em sua primeira entrevista depois
de preso, ao “Roda viva”, João Santana disse sonhar com uma chapa em que Ciro
seria candidato a presidente, tendo Lula como vice. A realidade não poderia
tê-los tornado mais distantes um do outro, mas a predição serviu para aproximar
o marqueteiro do pedetista.
Ambos estão arriscando tudo e trazendo à
tona um debate que tem muito de catarse pessoal, mas também escancara um
passado que o lulopetismo nunca se dispôs a encarar.
Se, para se eleger em 2002, Lula precisou
fazer uma Carta ao Povo Brasileiro, ideia de outro gênio caído da escola baiana
de marketing político, Duda Mendonça, a esperança do caudilho e do partido é
que, em 2022, a urgência de livrar o país da chaga que é Bolsonaro os livre da
necessidade de novo mea-culpa. Até aqui parece ter funcionado, e de fato a
maioria dos que prezam a civilização e a democracia se mostra disposta a votar
em Lula para evitar um mal (muito) maior. Mas, se as coisas apertarem, como parece
ser a aposta e a determinação de Ciro, pode ser necessário deixar as feridas
purgarem em público. Na verdade, seria salutar.
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