sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Vera Magalhães - Ciro e as verdades indigestas para o PT

O Globo

Ciro Gomes tocou em feridas que ainda purgam para o PT e para Lula, mas que a narrativa de que tudo que se viu na Lava-Jato foi uma armação para levar ao impeachment de Dilma Rousseff e à prisão de seu padrinho e antecessor tenta esconder debaixo do tapete.

Num vídeo de quase seis minutos, em que se percebe a pena, a vivência e o talento de João Santana, ex-marqueteiro de Lula e Dilma hoje com o pedetista, um Ciro com semblante sereno pontua muitos aspectos profundos e importantes que nos trouxeram até aqui, mas que são verdades indigestas ao lulopetismo.

Desde que o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações de Lula, ele e o partido não aceitam menos que capitulação por parte da imprensa e dos analistas em geral. Se você escrever que as penas de Lula foram anuladas, mas ele não foi absolvido, será alvo de uma saraivada de ataques.

Qualquer crítica, atual ou pretérita, que se faça a Lula e ao PT é prontamente catalogada como “falsa simetria” com o descalabro que é o governo Bolsonaro. Não importa que se esteja falando de coisas absolutamente diversas.

Ciro atingiu Lula a ponto de fazê-lo se despir do figurino do pacificador nacional e proferir uma grosseria a seu ex-ministro, dizendo que ele deve sofrer de sequelas da Covid-19 pelas críticas que faz. Ciro tem lugar de fala. E Lula e Dilma sabem disso.

É fato que o Instituto Lula era, no primeiro mandato de Dilma, um local de romaria pelo “volta, Lula”. Foi um movimento explícito, vocalizado por lideranças petistas.

Também não é segredo que próceres do PT atribuíam a Dilma boa parte da responsabilidade pelos dissabores do partido, seja por sua condução da economia, seja pelas mudanças que promoveu na Petrobras e que deixaram descontentes pelo caminho. A queixa de que ela não controlava a Polícia Federal também era corrente quando o petrolão começou a ser investigado.

O PT pretende aproveitar a dianteira tranquila de Lula nas pesquisas para passar o processo eleitoral todo sem enfrentar o debate sério sobre a corrupção que grassou no seu período. Como se os erros de condução da Lava-Jato, como a relação incabível entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa, que foram graves e vieram à tona em 2019, simplesmente transformassem todo o esquema que restou comprovado em história da carochinha.

Resta saber se essa estratégia será sustentável por um ano. Ciro, pela esquerda, está francamente disposto a colocar o dedo nessa ferida. É uma tática de tudo ou nada, porque parte da constatação de que sua viabilidade eleitoral depende de disputar com o hoje imbatível Lula um lugar no segundo turno.

Em 2020, em sua primeira entrevista depois de preso, ao “Roda viva”, João Santana disse sonhar com uma chapa em que Ciro seria candidato a presidente, tendo Lula como vice. A realidade não poderia tê-los tornado mais distantes um do outro, mas a predição serviu para aproximar o marqueteiro do pedetista.

Ambos estão arriscando tudo e trazendo à tona um debate que tem muito de catarse pessoal, mas também escancara um passado que o lulopetismo nunca se dispôs a encarar.

Se, para se eleger em 2002, Lula precisou fazer uma Carta ao Povo Brasileiro, ideia de outro gênio caído da escola baiana de marketing político, Duda Mendonça, a esperança do caudilho e do partido é que, em 2022, a urgência de livrar o país da chaga que é Bolsonaro os livre da necessidade de novo mea-culpa. Até aqui parece ter funcionado, e de fato a maioria dos que prezam a civilização e a democracia se mostra disposta a votar em Lula para evitar um mal (muito) maior. Mas, se as coisas apertarem, como parece ser a aposta e a determinação de Ciro, pode ser necessário deixar as feridas purgarem em público. Na verdade, seria salutar.

 

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