Valor Econômico
Constituição é a fonte das razões que devem
ser compartilhadas por crentes e descrentes
Uma coincidência biológica me proporcionou
a ventura de frequentar as lições de um juiz ao longo de 60 anos. Escolhi o
discurso de 1965 proferido por ocasião de sua aposentadoria. Aposentou-se por
temer a invasão de suas prerrogativas de juiz independente por um esbirro
fardado das oligarquias golpistas. Nada de heroico, apenas submissão aos
valores liberais e republicanos que guiaram sua vida desde os tempos da
Faculdade de Direito de São Paulo.
Ele falou aos amigos que o homenageavam: “Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes; não suportei afetações; as cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes jamais encontraram agasalho em mim; em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões; dentro de uma humildade que ganhei no berço, abominei a egomania e a idolatria; não me convenceram as aparências, e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. No exercício das minhas funções de magistrado, diuturnamente, dei o máximo dos meus esforços para bem desempenhá-las, e, ainda que em meio de uma atmosfera serena e compreensiva, em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo; escapei de juízos temerários, tomando cautelas para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão; e, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência”.
O novo ministro do STF, André Mendonça,
comemorou sua aprovação pelo Senado com Michelle Bolsonaro e proclamou: “Foi um
salto para os evangélicos”. Na contramão do magistrado que guardava suas
convicções pessoais nos escaninhos da intimidade, André Mendonça imediatamente
cuidou de saltar suas convicções pessoais para a esfera pública.
As celebrações do novo ministro me incitaram a cogitar dos riscos acarretados para o Estado Laico, caso a expressão, “foi um salto para os evangélicos”, cumpra seus desígnios. Expressão não menos significativa que a prolatada por Jair Bolsonaro ao anunciar um ministro “Terrivelmente Evangélico” no STF.
Para tanto, recorri a um debate entre dois
filósofos que se entregam a questionamentos a respeito das relações entre
religião e esfera pública nas sociedades contemporâneas. São eles Jurgen
Habermas e Charles Taylor. Entre divergências e convergências, selecionei as
considerações de Habermas.
Ele diz que os procedimentos políticos nas
sociedades democráticas e constitucionais se baseiam em um consenso entre os
cidadãos, por mais abstrato e vago que isso possa parecer. Sem a presunção de
tal consenso a respeito dos fundamentos constitucionais, os cidadãos de uma
sociedade pluralista não poderiam ir aos tribunais e apelar a direitos
específicos ou argumentar referindo-se a cláusulas constitucionais na
expectativa de obter uma decisão justa.
Como podemos encaminhar a formação desse
consenso fundador, senão em um espaço de razões “neutras” - em um sentido
peculiar. As razões devem ser “seculares” em um sentido não cristão de
“secularização”. “Deixe-me explicar o adjetivo não-cristão neste contexto. Em
seu livro A Secular Age você (Charles Taylor) descreveu convincentemente o que
a “secularização” significou dentro da igreja. A secularização teve o
significado de derrubar as paredes dos mosteiros e espalhar os comandos do
Senhor pelo mundo. Mas o termo secular assumiu um significado diferente no
exato momento em que os sujeitos tinham que chegar a um consenso de natureza
política além dos limites da comunidade cristã - um consenso constitucional que
lhes permita apelar a um tribunal francês ou alemão, a fim de resolver casos a
respeito do uso de turbantes por muçulmanas nas empresas. Esses casos devem ser
decididos de acordo com procedimentos e princípios que são aceitáveis para
cidadãos muçulmanos, cristãos, judeus ou seculares”.
Habermas prossegue afirmando que a Constituição
é a fonte das razões que devem ser compartilhadas não apenas por diferentes
comunidades religiosas, mas também por crentes e descrentes. A Constituição
pode fornecer essa plataforma comum apenas se ela, por sua vez, está amparada
em razões “seculares” no sentido moderno. “O termo secularização não se aplica
mais à universalização de crenças e práticas em todo o mundo cristão,
estendendo-se dos centros monásticos às esferas profanas da vida social
cotidiana. Razões seculares não ampliam a perspectiva de sua própria
comunidade, mas pressionam por uma perspectiva mútua para que diferentes
comunidades possam desenvolver uma perspectiva mais inclusiva, transcendendo
seu próprio universo de discurso”.
Hegel, na Filosofia do Direito, ao refletir
sobre o Estado moderno, condenou veementemente o indivíduo que proclama a
excelência das próprias intenções, mas não está submetido a uma regra objetiva
e universal. Em um Estado bem-organizado só valem as leis e não é lícito violar
essa universalidade, “nem mesmo em nome do mandamento que ordena o amor ao
próximo”. (Imagino que o saber jurídico de André Mendonça tenha incluído entre
seus saberes as lições do Filósofo de Jena).
A sociabilidade moderna se move entre a
inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade
dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a
sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses. Essa
forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a
submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas e moralistas.
A Constituição brasileira promulgada em
1988 consagra já em seu Capítulo I os princípios mencionados:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - Homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - Ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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