Folha de S. Paulo
Discurso evangélico de vítima ganharia
credibilidade com atos para coibir a intolerância à fé alheia
Se protestantes das mais variadas
denominações já compõem mais de 30% da população brasileira, é natural e
positivo que um
membro desse grupo integre o STF (Supremo Tribunal Federal).
Que esse evento seja tão raro mostra que a
religiosidade brasileira, assim como tantas outras coisas, tem também um
recorte de classe. A comemoração
efusiva da primeira-dama —se não tiver significados mais venais—, é
uma mostra da importância da representatividade desejada por tantos milhões de
brasileiros.
Muitos viram, riram ou se assustaram com Michelle "orando
em línguas", prática comum em igrejas pentecostais. Esse tipo de
reação alimenta o discurso de parte das lideranças evangélicas de que seus
adeptos são uma minoria perseguida no país. Mas será mesmo?
O preconceito e a intolerância religiosos também obedecem a uma divisão de
classes. Uma coisa é o que vale no discurso da elite cultural, e outra coisa é
o que ocorre no dia a dia da maioria do país.
Entre a elite cultural —composta pela comunicação, jornalismo, academia, artes
etc., ou seja, uma minoria letrada, com ensino superior—, há sim um menosprezo
pelo mundo
evangélico.
Pilhérias, espanto, repulsa ou até medo são algumas das reações que um culto evangélico mais animado pode produzir entre membros da classe, bem como comentários maldosos e um menosprezo intelectual pela pessoa. Isso tudo é real e negativo, podendo causar e perpetuar injustiças.
Mas se saímos desse âmbito mais restrito da
elite cultural e vamos para o resto da sociedade, a realidade se inverte:
quando falamos de intolerância
religiosa no Brasil, o cristão é mais comumente o ator da violência, e
suas vítimas são os seguidores de religiões não cristãs, em particular as de
matriz africana.
Isso vale já para a intolerância no discurso. Piadas e menosprezo ofendem
mesmo, e é parte de viver em sociedade passar a respeitar aquilo que, de
início, parecia bizarro.
Pior do que a troça, contudo, é a
demonização, justamente o que sofrem candomblecistas,
umbandistas e espíritas nos discursos acalorados de muitos pastores.
Para certas versões do fundamentalismo
cristão, essas religiões não são apenas equivocadas. Orixás e espíritos não são
vistos como fruto da imaginação de quem ainda não conhece a verdadeira
religião, e sim como demônios, encarnações do mal que possuem a alma dos
desgraçados que neles acreditam.
Assim, o médium, o pajé ou o pai de santo
deixam de ser apenas praticantes de uma religião considerada falsa e se tornam
verdadeiros servos das forças do inferno. Quem se incomoda com troças ou
ridicularização deveria ser o primeiro a se levantar contra esse tipo de
discurso —infinitamente mais violento— quando parte de suas próprias hostes.
De um discurso desses para a violência física o caminho é curto. No Oriente
Médio, cristãos são uma minoria perseguida. No Brasil, os cristãos são os perseguidores,
e adeptos de religiões afro são as principais vítimas dessa perseguição.
Não se queimam igrejas em nosso país; já
a destruição
de terreiros, a ameaça de morte a pais e mães de santo e o descaso (quando
não repressão) das autoridades são cotidianos. Tudo em nome da salvação das
almas.
Preconceito, seja de onde vier, é negativo. Não há santos neste mundo, mas é
possível ter atitudes mais ou menos coerentes.
O discurso evangélico que se pinta como
vítima ganharia mais credibilidade se viesse com atitudes concretas para coibir
a intolerância e o desrespeito à fé alheia em seu próprio meio. No Brasil, há
menos cristofobia do que ódio cristão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário