terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Carlos Andreazza - Como se faz um Mendonça

O Globo

André Mendonça é ministro do Supremo. Pode-se afirmar que tinha, no momento da sabatina, saber jurídico maior que o de Dias Toffoli quando de sua inquirição no Senado; ambos, um como ministro da Justiça, o outro, como guarda da Constituição, tendo usado a autocrática Lei de Segurança Nacional — que confunde a defesa impessoal de Poderes com a proteção personalista do poderoso de turno — contra o que consideraram ameaças institucionais à República, o primeiro para intimidar críticos de Jair Bolsonaro, o segundo com censura a uma revista, a Crusoé, cuja investigação lhe fora desagradável.

Aos que já reagem dizendo que não se podem comparar atos discricionários de Toffoli/Moraes, porque centrados em bandidos bolsonaristas, com os de Mendonça, cujo ministério abrigou dossiê contra servidores, pergunto se não terá sido essa relativização do bem, pela causa virtuosa, uma das máquinas a asfaltar a estrada por meio da qual sectários (também) reivindicam o direito de interpretar a Constituição enviesadamente desde o Supremo. Hein?

Um Toffoli, advogado de partido, sempre chama um fundamentalista advogado de capitão.

Isso para desde logo dizer que a dilapidação do STF não começou ontem e não deriva exclusivamente de despreparo; mas da compreensão da Corte como arena político-partidária, palco para pelejas ideológicas, logo terreno para a representação de grupos de interesse.

Antes o problema fosse o debate sobre se Mendonça seria — será — garantista ou lavajatista, contenda que ainda vai contida no terreno do Direito e que, afinal, somente indica que alguém terá sido enganado. Nenhuma novidade. Mendonça falou o que quis e mentiu no Congresso porque a sabatina foi convescote. De novo: nenhuma novidade.

Não temos garantistas e lavajatistas. Temos, com exceções, garantistas e lavajatistas de ocasião, que modulam seus rigores — como facções políticas — segundo os ventos das circunstâncias. Um convite ao oportunismo e, pois, aos vendilhões. Daí se chega a um Mendonça no Supremo, produto do espírito justiceiro de nosso tempo, ao que se soma a forma patrimonialista como o populista Bolsonaro entende o tribunal constitucional.

Desde há muito especulo sobre o que alguém como Mendonça, tendo feito o que fez como ministro da Justiça, faria com os instrumentos de que dispõe Alexandre de Moraes e a partir da picada aberta para o inquérito das fake news. Cancha livre para a briga de rua — para a forra — por meio de atos de ofício. É muito atraente, para a mentalidade fundamentalista, a forma como ministros do Supremo exercem o poder monocrático.

Fala-se que a confirmação de Mendonça no Supremo não seria uma vitória de Bolsonaro, em função de o presidente não ter se empenhado. Não se empenhou? Ora. Ele disse que o próximo ministro seria “terrivelmente evangélico”. Seu critério se impôs. A porteira está aberta. O presidente transferiu a campanha por seu indicado para uma federação de empresas religiosas. Fortaleceu vínculos. Levou o fundamentalismo religioso a se articular — e a se estabelecer — dentro do Senado da República, enfraquecendo ao mesmo tempo STF e Senado. Usou uma cadeira no tribunal constitucional para fazer política com sua base de apoio fundamental. E ainda aprofundou, materialmente, a noção que tem sobre o que seja um assento na Corte: Bolsonaro era, com Nunes Marques, 10%. Terá agora 20% do tribunal. (Contas dele, por favor.)

Não há problema algum em Mendonça ser evangélico. Não há qualquer problema em que ministro do STF seja evangélico. O problema está na fé religiosa como razão para alguém ser ministro da Corte. O problema está em ministro do Supremo se apresentar como representante de segmento da sociedade. A ideia de grupos de pressão serem espelhados no Supremo é uma barbaridade antirrepublicana. O STF não é o Parlamento, espaço em que bancadas se organizam e grupos sociais têm seus agentes.

Ministros do Supremo que são articuladores políticos, a cujos arranjos adaptam o entendimento das leis, e que se jactam de deter um poder moderador não previsto na Carta, afastam-se dos marcos constitucionais, afrouxam as estacas das jurisprudências, tornam o tribunal incerto como uma biruta ao vento — e não tardam a atrair os que também se querem parte atuante-influente nessa disfunção.

Quando o Supremo invade o âmbito do Parlamento para deliberar sobre matérias que caberiam apenas a deputados e senadores, e sob o argumento de que o Congresso, atrasado, não se moveria, faz-se o convite à pretensão-ascensão de novos legisladores togados dispostos a fazer avançar, via STF, pautas sectárias que grupos específicos também avaliam não andar no Legislativo.

André Mendonça no Supremo é reação a um Supremo ativista. É reação fundamentalista de grupo de pressão que se quer ativo num tribunal percebido como ativista. Mendonça é reação — reação por meio de infiltração consciente — de um partido político, o evangélico, a um Supremo cujo comportamento informa que ali também se pode formar bancada.

 

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