O Globo
André Mendonça é ministro do Supremo.
Pode-se afirmar que tinha, no momento da sabatina, saber jurídico maior que o
de Dias Toffoli quando de sua inquirição no Senado; ambos, um como ministro da
Justiça, o outro, como guarda da Constituição, tendo usado a autocrática Lei de
Segurança Nacional — que confunde a defesa impessoal de Poderes com a proteção
personalista do poderoso de turno — contra o que consideraram ameaças
institucionais à República, o primeiro para intimidar críticos de Jair
Bolsonaro, o segundo com censura a uma revista, a Crusoé, cuja investigação lhe
fora desagradável.
Aos que já reagem dizendo que não se podem
comparar atos discricionários de Toffoli/Moraes, porque centrados em bandidos
bolsonaristas, com os de Mendonça, cujo ministério abrigou dossiê contra
servidores, pergunto se não terá sido essa relativização do bem, pela causa
virtuosa, uma das máquinas a asfaltar a estrada por meio da qual sectários
(também) reivindicam o direito de interpretar a Constituição enviesadamente
desde o Supremo. Hein?
Um Toffoli, advogado de partido, sempre
chama um fundamentalista advogado de capitão.
Isso para desde logo dizer que a dilapidação do STF não começou ontem e não deriva exclusivamente de despreparo; mas da compreensão da Corte como arena político-partidária, palco para pelejas ideológicas, logo terreno para a representação de grupos de interesse.
Antes o problema fosse o debate sobre se
Mendonça seria — será — garantista ou lavajatista, contenda que ainda vai
contida no terreno do Direito e que, afinal, somente indica que alguém terá
sido enganado. Nenhuma novidade. Mendonça falou o que quis e mentiu no
Congresso porque a sabatina foi convescote. De novo: nenhuma novidade.
Não temos garantistas e lavajatistas.
Temos, com exceções, garantistas e lavajatistas de ocasião, que modulam seus
rigores — como facções políticas — segundo os ventos das circunstâncias. Um
convite ao oportunismo e, pois, aos vendilhões. Daí se chega a um Mendonça no
Supremo, produto do espírito justiceiro de nosso tempo, ao que se soma a forma
patrimonialista como o populista Bolsonaro entende o tribunal constitucional.
Desde há muito especulo sobre o que alguém
como Mendonça, tendo feito o que fez como ministro da Justiça, faria com os
instrumentos de que dispõe Alexandre de Moraes e a partir da picada aberta para
o inquérito das fake news. Cancha livre para a briga de rua — para a forra —
por meio de atos de ofício. É muito atraente, para a mentalidade
fundamentalista, a forma como ministros do Supremo exercem o poder monocrático.
Fala-se que a confirmação de Mendonça no
Supremo não seria uma vitória de Bolsonaro, em função de o presidente não ter
se empenhado. Não se empenhou? Ora. Ele disse que o próximo ministro seria
“terrivelmente evangélico”. Seu critério se impôs. A porteira está aberta. O
presidente transferiu a campanha por seu indicado para uma federação de
empresas religiosas. Fortaleceu vínculos. Levou o fundamentalismo religioso a
se articular — e a se estabelecer — dentro do Senado da República,
enfraquecendo ao mesmo tempo STF e Senado. Usou uma cadeira no tribunal
constitucional para fazer política com sua base de apoio fundamental. E ainda
aprofundou, materialmente, a noção que tem sobre o que seja um assento na
Corte: Bolsonaro era, com Nunes Marques, 10%. Terá agora 20% do tribunal.
(Contas dele, por favor.)
Não há problema algum em Mendonça ser
evangélico. Não há qualquer problema em que ministro do STF seja evangélico. O
problema está na fé religiosa como razão para alguém ser ministro da Corte. O
problema está em ministro do Supremo se apresentar como representante de
segmento da sociedade. A ideia de grupos de pressão serem espelhados no Supremo
é uma barbaridade antirrepublicana. O STF não é o Parlamento, espaço em que
bancadas se organizam e grupos sociais têm seus agentes.
Ministros do Supremo que são articuladores
políticos, a cujos arranjos adaptam o entendimento das leis, e que se jactam de
deter um poder moderador não previsto na Carta, afastam-se dos marcos
constitucionais, afrouxam as estacas das jurisprudências, tornam o tribunal
incerto como uma biruta ao vento — e não tardam a atrair os que também se
querem parte atuante-influente nessa disfunção.
Quando o Supremo invade o âmbito do
Parlamento para deliberar sobre matérias que caberiam apenas a deputados e
senadores, e sob o argumento de que o Congresso, atrasado, não se moveria,
faz-se o convite à pretensão-ascensão de novos legisladores togados dispostos a
fazer avançar, via STF, pautas sectárias que grupos específicos também avaliam
não andar no Legislativo.
André Mendonça no Supremo é reação a um
Supremo ativista. É reação fundamentalista de grupo de pressão que se quer
ativo num tribunal percebido como ativista. Mendonça é reação — reação por meio
de infiltração consciente — de um partido político, o evangélico, a um Supremo
cujo comportamento informa que ali também se pode formar bancada.
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