Correio Braziliense
O choque
entre o velho patrimonialismo e a modernização da vida nacional inicia um novo
capítulo. De certa forma, o chamado orçamento secreto é a ponta desse iceberg
Lembram da música Geni e o Zepelim, de
Chico Buarque de Holanda, composta para a Ópera do Malandro? “De tudo que é
nego torto/Do mangue e do cais do porto/Ela já foi namorada/O seu corpo é dos
errantes/ Dos cegos, dos retirantes/É de quem não tem mais nada”, diz letra,
cujo refrão se tornou muito popular: “Joga pedra na Geni! /Joga pedra na Geni!
/Ela é feita pra apanhar! /Ela é boa de cuspir! /Ela dá pra qualquer um!
/Maldita Geni!”. No jargão dos políticos, virar uma Geni é uma espécie de filme
queimado, um personagem antipatizado pela opinião pública que acaba isolado dos
próprios aliados.
É mais ou menos o que está acontecendo com o Centrão, sem que seus artífices se deem conta, porque vivem numa esfera eleitoral onde o patrimonialismo e o voto de cabresto ainda têm muita força. O ministro da Casa Civil e presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI); e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), hoje concentram poder suficiente para manter a base do governo na Câmara, mas inversamente proporcional à imagem que estão construindo na opinião pública. Esse poder vem diretamente do controle que hoje detêm sobre o Orçamento, principalmente sobre a distribuição e a execução das chamadas emendas secretas.
O presidente Bolsonaro se elegeu com uma
narrativa antissistema e prometia jogar o Centrão para fora das quatro linhas
do campo, mas a dura realidade do exercício do poder fez com que operasse um
grande giro na sua política de alianças, deslocando o seu eixo de apoio
legislativo dos parlamentares bolsonaristas para a turma do Centrão. A pandemia
da covid-19 e a recessão econômica, diante da ameaça de impeachment e do
fracasso de suas intenções golpistas em 7 de setembro, fizeram com que essa
aliança se consolidasse e passasse a ser a força política mais importante do
projeto de reeleição. A filiação de Bolsonaro ao PL, de Waldemar Costa Neto, e
da ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (DF), fechou qualquer
possibilidade de descolamento de Bolsonaro da imagem do Centrão.
Por essas coisas que fazem do Brasil a
terra das jabuticabas, o nosso sistema político apartou a disputa pela
Presidência da República da formação de bancadas no Congresso. Não é que não
exista essa relação, não fosse isso, o PT não teria a maior bancada, e o PSL
não deixaria de ser um partido nanico para se tornar a segunda bancada da
Câmara, mas essa correlação não é decisiva para a eleição da maioria dos
deputados nem senadores. Existe uma assimetria que resulta do sistema eleitoral
vigente, o voto proporcional uninominal. E um desequilíbrio na eleição de
deputados federais, que não respeita a proporção exata dos colégios eleitorais
estaduais, porque daria muito mais poder aos grandes estados do Sudeste,
sobretudo São Paulo. O sistema de distribuição dos recursos do fundo partidário
e do fundo eleitoral financia a reprodução desse modelo.
Entretanto, voltando à analogia musical, o
que está catalisando e transformando a aliança Bolsonaro-Centrão numa Geni é a
candidatura do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, o ex-juiz federal de
Curitiba, que liderou a Operação Lava-Jato e, entre outras coisas, mandou para
a cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Numa eleição polarizada, o
jogo armado era ter Bolsonaro como antiLula e Lula como antiBolsonaro. A
entrada em cena de Moro, planejada inicialmente para ocupar o espaço dos
indecisos e eleitores arrependidos de Bolsonaro, embaralhou tudo. O que antes
era fácil se tornou mais complicado para o presidente da República e seu
principal opositor: quem é o adversário principal?
A disputa
do centro
Orçamento, No centro político, há um
quadrante ético na disputa eleitoral, que não deixou de existir com a anulação
da condenação de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e se tornou um espaço
vazio com a aliança de Bolsonaro com o Centrão. Um outro quadrante, corresponde
à expectativa liberal de parte da sociedade em relação ao desenvolvimento
sustentável e à qualidade dos serviços públicos, campo de disputa ainda aberto.
Outras pré-candidaturas miram a conquista do centro político: Ciro Gomes (PDT),
João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB), Alessandro Vieira (Cidadania), Henrique
Mandetta (União Brasil) e Rodrigo Pacheco (PSD). A antipolítica estava fora do
jogo. Agora, está voltando com Moro, ainda que seu discurso venha sendo muito
calculado e moderado quanto à própria Lava-Jato. É um candidato com perfil
antissistema.
Com isso, o choque entre o velho
patrimonialismo e a modernização da vida nacional, que é a linha condutora das
grandes disputas políticas da nossa história republicana, inicia um novo
capítulo. De certa forma, o chamado orçamento secreto é a ponta desse iceberg.
Continua no centro do noticiário, porque o presidente da Câmara não renuncia às
emendas bilionárias do relator, cujos autores são mantidos em sigilo, enquanto
Bolsonaro aposta sua reeleição nos frutos desse acordo com o Centrão. Todos os
candidatos de oposição criticam o orçamento secreto, porém, quem mais está
faturando na opinião pública é Moro.
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