O Estado de S. Paulo
O desafio da reconstrução e da modernização orçamentária demandará rapidez e acurácia
Em dezembro de 1991, Dom Hélder Câmara
discursou em Pernambuco: “Que contradição, que negação clamorosa: cristãos
(...) excluindo do acesso às mais elementares condições de vida muitos daqueles
a quem proclamamos admitir como irmãos. (...) Será por incompetência? Será por
inconsciência? Será por alienação? Ou será por impiedade mesmo?”. É a
incompetência, Dom Hélder! Ela tem culpa maior. Muito foi feito a partir da
redemocratização, mas há ainda uma situação que nos envergonha, que dói na alma
de todos – cristãos ou não.
Dez anos depois, em 2001, no programa Roda
Viva, na TV Cultura, Zilda Arns contou que a Pastoral da Criança gastava menos
de um real (R$ 0,86) per capita ao mês. Em valores atuais, R$ 2,86 por criança.
Os resultados colhidos – e a pastoral continua em operação – foram a redução da
mortalidade infantil, a melhoria das condições de nutrição e a prevenção de uma
série de doenças.
As práticas adotadas eram replicáveis e de baixo custo. As equipes visitavam as famílias para ensinar práticas de higiene, de aproveitamento de alimentos, pesagem dos recém nascidos, enfim, uma estratégia baseada na informação de boa qualidade e na orientação cuidadosa. Zilda Arns respondeu com ações concretas à angústia de Dom Hélder.
Mas a questão que ainda se coloca é: como
ampliar as boas iniciativas da sociedade civil? Onde foi que nos perdemos?
Seriam a “inconsciência” e a “impiedade” as responsáveis? Segundo o FGV Social,
havia 23,1 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza em 2019.
Agora, são 4,6 milhões a mais.
Compadecer-se do sofrimento alheio é
humano, essencial e necessário. O segundo passo é cobrar do Estado a elaboração
e a execução de políticas públicas com alcance e financiamento suficientes. O
Estado é a junção da Lei à burocracia técnica e aos políticos eleitos. A Lei
reflete os anseios da sociedade, que só saem do papel pela atividade política.
Daí a responsabilidade de quem tem voto.
Ocorre que perdemos a capacidade de
planejar. Uma pesquisa entre a elite dirigente revelaria, sem dúvida, a pobreza
e a desigualdade como preocupações centrais. Então, por que a letargia? O que
está faltando?
Poderíamos responder a Dom Hélder: a nossa
incompetência é o mal maior. Sem planejamento adequado, o processo orçamentário
entrou no piloto automático. Para ter claro, 93% das despesas estão dadas; não
mudam no curto prazo. A fatia restante vai para gastos constitucionais com
saúde, investimentos (cada vez menores) e custeio da máquina pública (limpeza,
iluminação, água, etc.). Como reduzir a pobreza, se o financiamento está
bloqueado? Como, se não se discutem a sério o lado da receita e o remanejamento
e o corte de gastos?
A crise pandêmica desnudou a urgência do
combate à fome. Os Três Poderes reagiram. E rápido, apesar de tudo. Um
desdobramento dessas ações sociais foi o Auxílio Brasil, que tem seus méritos,
mas é uma mudança apressada do Bolsa Família, programa bem avaliado. Melhor
seria duplicar seu orçamento (para R$ 70 bilhões ao ano), cortando gastos não
prioritários. Mas, ao que parece, a mobilização em torno do essencial não é a
mesma em tempos menos atípicos.
A lógica da Constituição de 1988, com o
chamado Plano Plurianual (PPA), foi maltratada com o tempo. A solução é
modernizar o orçamento público. Concretamente, conceber um plano de médio prazo
a partir de cenários econômicos que esbocem o quadro orçamentário prospectivo.
É o que defende há anos o economista Hélio Tollini, especialista no tema.
Se o gasto obrigatório só muda em prazo
superior a um ano (em razão da rigidez), não faz sentido uma política fiscal
anual. É um modus operandi obsoleto. A Lei Orçamentária tem de ser o locus da
discussão das prioridades de políticas públicas. O PPA não pode ser
independente, ligado ao Orçamento apenas por burocratismos.
Maílson da Nóbrega costuma explicar que o
País evoluiu nessa matéria. De fato, nos anos 1980, havia dois orçamentos: o
monetário e o geral. O primeiro era o “balanço consolidado” do Banco do Brasil
e do Banco Central, que comandavam subsídios e uma série de gastos gestados no
Conselho Monetário Nacional. Até uma parte do financiamento da Ponte
Rio-niterói estava ali. O segundo era para inglês ver.
Entre outros avanços, a transparência
aumentou, a Lei de Responsabilidade Fiscal fixou diretrizes importantes, o
Tesouro Nacional passou a comandar a emissão da dívida pública e o Plano Real,
ao debelar a hiperinflação, conferiu realismo ao orçamento geral. Mas, nas
democracias consolidadas, os avanços são incrementais e os retrocessos, por
vezes, abruptos. O caso das emendas de relator-geral do Orçamento convida à
discussão técnica e ampla. É grave.
O assunto da reforma fiscal é para 2023,
por razões óbvias, mas precisa ser pensado desde já. O desafio da reconstrução
e da modernização do Orçamento demandará rapidez e acurácia. As soluções
deveriam ser forjadas à luz das perguntas de Dom Hélder Câmara e da sua
indignação. Também pelo senso prático da doutora Zilda Arns. Mãos à obra.
*É diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente
(ifi).
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