Editoriais
Inflação impõe desafios paralelos ao Fed e
ao BC
O Globo
Autoridades monetárias do mundo todo estão
diante de um desafio comum: combater uma inflação que, para onde se olhe, não
para de galopar. No esforço para conter a alta, o Fed, banco central americano,
elevou na quarta-feira a taxa básica de juros em 0,5 ponto percentual, maior
aumento desde maio de 2000. Quando algo dessa magnitude acontece, os reflexos
são mundiais. No mesmo dia, o Banco Central (BC) do Brasil aumentou a Selic para 12,75%,
a maior taxa desde fevereiro de 2017.
Os dois países têm metas de inflação
distintas, índices diferentes e histórico de altas dos juros incomparáveis, mas
estão engalfinhados na mesma briga contra os preços. Tanto lá quanto aqui, há
dúvida se as decisões serão capazes de resolver o problema no curto prazo.
Várias causas são comuns. A pandemia fez governos estimular o consumo num momento em que a produção e o comércio não estavam prontos para reagir. Resultado: preços sobem porque a oferta é insuficiente para atender a demanda. Quando esse problema começava a ser resolvido, veio a guerra na Ucrânia, dando ímpeto a outro tipo de pressão inflacionária: o aumento do custo. No caso, da energia e dos combustíveis.
O descontrole da inflação fez dos bancos
centrais alvo preferencial de críticas. É verdade que eles demoraram a agir,
mas esse questionamento, quando frequente, cria mais um problema. O poder de
quem define a taxa básica de juros está na capacidade de influenciar as
expectativas. Se empresários e investidores passam a duvidar da firmeza do
banco central, o efeito tende a ser menor. É o risco que corre Jay Powell,
presidente do Fed. Para deter o avanço da chaga inflacionária, os remédios que
terá de usar serão provavelmente mais amargos.
No Brasil, a situação é outra. O BC
promoveu ontem a décima alta seguida da Selic. Os problemas de seu presidente,
Roberto Campos Neto, são distintos. Decisões do governo em nível federal e
estadual estão aquecendo a economia justamente quando o BC tenta resfriar a
demanda. Os salários de servidores foram corrigidos em vários estados, e
recursos do FGTS foram liberados. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA) de 12 meses está pouco acima de 12%. A expectativa do mercado é
que feche 2022 em torno de 8% (acima do teto da meta, de 5%). O drama é que nem
isso é garantido. Campos Neto e seus diretores já deram a entender que uma nova
alta da Selic deverá ocorrer em junho.
Só que as incertezas persistem. Entre elas,
a possibilidade de novos confinamentos na China, principal parceiro comercial
do Brasil. O próprio aumento dos juros nos Estados Unidos dificulta a vida do
BC aqui. Com a maior valorização dos títulos americanos, os investidores tendem
a sair de mercados emergentes, o dólar sobe e importados ficam mais caros,
pressionando a inflação. O presidente Jair Bolsonaro é outro complicador. Suas
investidas contra o processo eleitoral aumentam a sensação de insegurança
institucional e ajudam a enfraquecer o real. Em vez de ajudar a debelar a
incerteza para resgatar sua popularidade e ter mais chance nas urnas, ele piora
sua própria situação.
Regra esdrúxula na distribuição de cadeiras
da Câmara cria distorção
O Globo
Com a aplicação neste ano, pela primeira
vez na escolha dos deputados, da cláusula de barreira e da proibição de
coligações, o Brasil começa enfim a depurar o leque de partidos. O Congresso
tende a ser mais representativo e a melhorar a qualidade do debate político.
Apesar do avanço, o novo sistema de escolha dos representantes abriu margem a
um paradoxo, apontado pelo cientista político Jairo Nicolau em artigo no site
Poder360: há critérios distintos para a primeira e a segunda rodada de
distribuição das cadeiras no Legislativo. De tão esdrúxula, a regra deve ter
sido aprovada sem que a maioria dos parlamentares a entendesse. Vários sentirão
seu efeito na dificuldade maior para se reeleger.
Para definir os eleitos à Câmara,
calcula-se para cada estado um quociente eleitoral (QE), resultado da divisão
dos votos válidos pela quantidade de cadeiras em disputa. Cada partido recebe
então um número de cadeiras correspondente ao total de votos de seus
candidatos, somados aos votos na legenda, dividido pelo QE — e são escolhidos
para ocupá-las os mais votados.
Na primeira rodada de distribuição, se
exige do candidato que obtenha no mínimo 10% do QE. Do contrário, o partido
perde a cadeira. Essa regra já vigorou na eleição de 2018. Foi devido a ela,
segundo Nicolau, que o PSL perdeu sete cadeiras em São Paulo. Embora o partido
fizesse jus a elas, não havia mais candidatos com mais de 30.187 votos, ou 10%
do QE paulista.
Como sobram cadeiras, há uma segunda rodada
para distribuí-las. A partir deste ano, só terá direito a disputar as sobras o
partido que alcançar 80% do QE. É uma medida coerente com a cláusula de
barreira pela qual, para ter direito a bancada, uma legenda precisará obter no
mínimo 2% dos votos válidos, distribuídos em nove estados (com ao menos 1% dos
votos em cada um). Nesse caso, porém, a lei passou a exigir votação mínima de
20% do QE para um candidato ser eleito. Não faz sentido. O patamar mínimo, 10%
ou 20%, deveria ser o mesmo nas duas rodadas. “Por que criar exigências
diferentes para candidatos que disputam a mesma eleição?”, questiona Nicolau.
Ele dá como exemplo a eleição dos 46
deputados federais do Rio em 2018. O QE foi de 168.122 votos, 38 vagas saíram
na primeira rodada, oito na segunda. Vigorava a regra dos 10% do QE para o
candidato ter direito à cadeira. Os oito eleitos na segunda rodada
ultrapassaram esse patamar. Se valessem os 20%, seis não teriam entrado na
Câmara (entre eles, Daniel Silveira).
Se um candidato tiver recebido quase 20% do QE, mas não for escolhido na primeira rodada por meros 100 votos, estará fora da segunda. Outro que recebeu 100 votos a mais estará eleito, pois dele exigiram-se apenas 10%. É um absurdo que precisa ser corrigido. Não há como fazer isso antes de outubro, mas a próxima legislatura precisa eliminar essa pequena distorção num sistema eleitoral de resto excelente. O melhor seria adotar os 20% desde a primeira rodada, para inibir os partidos que investem na votação milionária de celebridades como puxadores de voto para o resto da bancada.
Na incerteza, aperto
Folha de S. Paulo
Com a inflação em alta, sem sinais de
reversão próxima, e riscos recessivos, os principais bancos centrais do mundo
enfrentam o maior desafio das últimas décadas.
O cenário, já difícil, foi agravado pelo
novo choque de preços de matérias-primas provocado pela guerra na Ucrânia e
pela política de controle da Covid-19, que acentuam a escassez de suprimentos
em várias cadeias produtivas.
A reação das autoridades monetárias tem
sido elevar os juros, num contexto em que crescem os perigos para a atividade
econômica. É uma mudança em relação ao padrão observado desde os anos 1990,
quando a ameaça mais evidente era a deflação e havia espaço para estímulos
monetários.
O dilema fica evidente no caso do Fed, o
banco central americano. Na reunião deste mês, a instituição elevou
sua taxa básica em 0,5 ponto percentual, para o intervalo de 0,75% a 1% ao
ano.
Longe de significar um ajuste pontual, a
sinalização é que será necessária uma sequência de aumentos, que poderão levar
rapidamente o custo do dinheiro nos EUA para mais de 3% anuais.
Além da inflação, que lá chegou a 8,5% nos
últimos 12 meses, o Fed se defronta com um possível aquecimento excessivo do
mercado de trabalho, como legado dos estímulos adotados durante a pandemia.
Com alta de 5,6% dos salários em 12 meses,
a ameaça é a de um processo inflacionário mais duradouro. Os mercados
financeiros internacionais sentem o golpe, apresentando a maior retração desde
a crise financeira de 2008.
Tal como no resto do mundo, a inflação
tampouco dá sinais de arrefecimento no Brasil. Com os choques em combustíveis e
alimentos, além da retomada dos serviços, as projeções para o IPCA, índice de
referência do Banco Central, em 2022 continuam a subir —de 5% no início do ano
para 7,9% hoje.
Daí a decisão do Banco Central de elevar
a Selic em 1 ponto percentual, para 12,75% ao ano. A instituição
indica que o ciclo de aperto está avançado, mas ainda vê pressões pela frente.
Não se descarta que a taxa básica se aproxime de 13,5% até meados do ano.
O arrocho não impediu uma ligeira melhora
das expectativas para o crescimento econômico neste 2022, hoje em torno de
0,7%, em boa parte devido às vantagens do setor exportador —que tem
proporcionado expressivos saldos comerciais. Ademais, o dólar em patamares
menos elevados tende a facilitar o controle da inflação.
Permanece, porém, a incerteza em relação à
política econômica deste e do próximo governo, uma vez que as manifestações de
Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até agora, não são claras
nem animadoras.
Rascunho do retrocesso
Folha de S. Paulo
Possível fim do direito ao aborto nos EUA é
mau exemplo do debate para o mundo
"A Constituição não faz referência ao
aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer dispositivo
constitucional", escreveu o juiz conservador Samuel Alito, que chegou à
Suprema Corte dos Estados Unidos em 2006 indicado por George W. Bush.
Num rascunho
recém-divulgado pelo site Politico, o magistrado indicou a tendência
de reversão do direito reconhecido no país desde 1973, no julgamento
Roe versus Wade. O presidente do tribunal, John Roberts, classificou o
vazamento como uma "flagrante quebra de confiança", mas reconheceu a
autenticidade do texto.
No caso ora em debate, analisa-se a
constitucionalidade de uma lei aprovada no estado sulista do Mississippi que
proíbe o aborto após 15 semanas de gestação.
Embora seja uma praxe da corte que
rascunhos de decisões circulem entre seus integrantes e estejam sujeitos a
mudanças, o vazamento expôs ânimos políticos acirrados em torno do tema.
Curiosamente, a decisão Roe vs. Wade também acabou
sendo divulgada primeiro pela imprensa na época, por questão de horas.
Nos EUA, o tema é tratado nas esferas
federal e estadual. Em 1973, a Suprema Corte garantiu a proteção constitucional
e nacional ao direito, o que foi confirmado em sua essência por outra decisão
de 1992 (Planned Parenthood vs. Casey).
Com base nessas decisões, ora em perigo,
autoridades não podem hoje impor um "obstáculo substancial no caminho de
uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade".
Retirada a norma, por uma Suprema Corte de
maioria conservadora (6 votos de 9), os estados estariam livres para impor
restrições locais. Estimativas apontam que ao menos 24 estados dos 50 governos
estaduais assim procederão.
Não se pode subestimar o impacto desta
decisão. No plano doméstico, as mais prejudicadas serão provavelmente mulheres
de baixa renda, que já têm um filho, solteiras e na faixa de 20 anos —o grupo
estatisticamente mais propenso a fazer aborto nos EUA.
A necessidade de viajar a outro estado
tende a resultar em procedimentos inseguros, comprometendo a saúde pública —que
é como a questão deve ser encarada, no entender desta Folha.
Quanto ao panorama global, trata-se de retrocesso de grande peso em tema já pacificado na enorme maioria das democracias desenvolvidas do Ocidente.
É preciso preservar a autoridade do STF
O Estado de S. Paulo
Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte
A Constituição de 1988 dispõe que o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre
si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de
que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota
de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau
inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da
opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.
A situação é grave. O País precisa não
apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada
e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com
elas.
No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro
tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto
como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a
independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o
Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para
destacar sua desarmonia com o Supremo.
Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a
mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera
entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso
antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população
entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas,
a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo
Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.
Tem-se aqui um problema sério. De acordo
com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a
Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A
pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando
à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.
Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi
tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas
bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de
ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer
ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a
Constituição?
Esse é o grande problema. No momento em que
o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete
legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional.
A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que
ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista
como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua
dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi
desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a
Constituição.
Esse cenário inverte o bom funcionamento do
Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada
da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder
Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a
decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência.
Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício
jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em
quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.
O quadro não será revertido batendo boca
com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas
possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do
Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de
cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as
obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro
cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de
sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou
convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.
Em nome da eleição, rasgam-se contratos
O Estado de S. Paulo
Para conter o prejuízo eleitoral, Câmara prepara medida que susta reajustes de energia elétrica e põe em xeque cumprimento de contratos, situação que tende a desestimular investimentos
A proximidade das eleições rasgou a
fantasia da defesa da responsabilidade fiscal que alguns políticos ainda vestiam.
Depois que o ministro da Economia, Paulo Guedes, assentiu com a destruição do
teto de gastos, âncora que atrelava o crescimento das despesas à inflação,
perdeu-se todo o pudor que ainda era relativamente preservado. Agora, com um
ímpeto que não se via havia anos e parecia superado na história brasileira, a
Câmara quer impedir a aplicação de reajustes nas tarifas de energia neste ano.
A ideia surgiu por meio de um Projeto de
Decreto Legislativo (PDL) apresentado pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE). Incomodado
com o aumento médio de 24,88% nas tarifas da Enel Distribuição Ceará, o
parlamentar achou por bem simplesmente sustar os efeitos da decisão que havia
sido referendada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A proposta
conta com apoio explícito do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para
quem o texto teria o poder de “anular atos em geral” – ou seja, permitiria
cancelar reajustes de distribuidoras em todo o País.
O aumento das tarifas de energia não
configura insensibilidade da agência reguladora ou das distribuidoras, mas
apenas a realidade de custos crescentes inerente ao setor elétrico, entre eles
geração, transmissão e distribuição. Há, no entanto, uma parcela significativa
desses gastos que aumenta ano a ano com a colaboração direta dos parlamentares.
Numa marcha que beira a insensatez, deputados e senadores não hesitam em apoiar
propostas que repassam ainda mais gastos para a conta de luz, por meio de
emendas a projeto de lei ou medidas provisórias, mas, estranhamente, mostram-se
indignados quando a conta de seus próprios atos começa a chegar.
O exemplo mais recente e escandaloso foi a
construção de termoelétricas onde não há reservas de gás, gasodutos ou linhas
de transmissão. Há, porém, muitos outros, como o lobby das empresas de painéis
fotovoltaicos, que convenceu a maioria do Congresso – e também o presidente da
República – de que obrigá-los a pagar a tarifa de conexão dessas estruturas na
rede, como fazem todos os outros consumidores, seria o mesmo que “taxar o sol”.
Ao Estadão, o
presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de
Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, comparou o apoio dos deputados ao
projeto de decreto legislativo que susta reajustes a quem opta por “quebrar um
termômetro que está apontando a febre”. Incrivelmente, 410 parlamentares
votaram a favor da urgência da proposta, o que permite que ela seja pautada no
plenário a qualquer tempo.
Longe de ser uma bondade, o texto é uma
evidente intervenção na Aneel. Se aprovado, configurará incontestável quebra de
contrato, gerará uma consequente guerra judicial e reduzirá a pó o interesse do
setor privado em investir em infraestrutura no País. Ademais, a iniciativa é
claramente inconstitucional, uma vez que a agência reguladora não descumpriu
nenhuma lei ao aplicar os reajustes, requisito básico para dar embasamento a um
PDL. Pelo contrário: o que o órgão fez foi repassar às tarifas tudo que o
governo propôs e a que o Congresso deu aval, dentro de atribuições definidas
por força de lei.
Lira e boa parte dos deputados sabem muito
bem disso, de forma que o objetivo implícito da medida é outro. Não se trata de
cancelar os reajustes, mas simplesmente arrumar um jeito de empurrá-los para
2023 e evitar danos políticos nas eleições de outubro. Nesse sentido, o setor
elétrico tampouco pode reclamar, pois foram as próprias empresas que ensinaram
o Congresso a pendurar os jabutis nas contas de luz por meio de emendas em
benefício próprio e prejuízo de toda a sociedade. A Aneel tampouco tem moral para
contestá-los, pois foi autora da ideia dos dois empréstimos bilionários que
autorizaram verdadeiras pedaladas elétricas ao longo dos próximos anos. Pior:
para não afrontar o Legislativo, a agência se recusou a calcular o rombo de
várias dessas propostas antes que elas fossem votadas, uma de suas funções mais
republicanas.
Continua o aperto contra a inflação
O Estado de S. Paulo
O BC promete novos aumentos dos juros básicos e não há indicação de quando o arrocho do crédito chegará ao limite
Sem meios para frear os preços internacionais,
afetados pela guerra de Vladimir Putin e pelos cortes de produção chinesa no
combate à covid, o Banco Central (BC) tenta conter a inflação brasileira
elevando os juros ao nível mais alto em cinco anos. Os benefícios poderão ser
modestos em 2022 e mais sensíveis em 2023, mas os custos para o crescimento
econômico tendem a ser imediatos. Não há, no entanto, alternativas visíveis
neste momento para o combate ao surto inflacionário, já intenso antes da
invasão da Ucrânia.
Na décima alta consecutiva, anunciada na
quarta-feira, a taxa básica subiu 1 ponto e chegou a 12,75% ao ano, mas ficará
aí por pouco tempo. Um novo aumento em junho já foi apontado como “provável”
pelo Copom, o Comitê de Política Monetária do BC, em nota divulgada após a
última reunião. No próximo ajuste, a taxa alcançará 13,25%, segundo a aposta
dominante no mercado, e há quem preveja 13,50%. Mas ninguém tem base para dizer
se o aperto do crédito vai parar nesse ponto ou continuar aumentando.
Não há sinal de trégua por parte do BC. O
aperto poderá ficar mais suave, mas a intenção declarada é continuar “avançando
significativamente em território ainda mais contracionista”, segundo a nota. A
estratégia será mantida, promete o Copom, até se alcançarem dois objetivos, a
reversão do impulso inflacionário e a “ancoragem das expectativas” em torno das
metas oficiais. Notas anteriores citaram o compromisso com esses objetivos.
Em 2022, a inflação, estimada em 7,3% pelo
BC e mais perto de 8% pelo mercado, ainda passará bem acima do teto da meta, fixado
em 5%. No ano passado a meta era de 5,25% e os preços aumentaram 10,03%. Em
2023, o número final, estimado em 3,4% no informe do Copom, poderá ficar bem
perto do centro do alvo, de 3%.
Também na quarta-feira, o Federal Reserve
(Fed, o banco central dos Estados Unidos) adicionou 0,5 ponto porcentual a seus
juros básicos, elevando-os para a faixa de 0,75% a 1% ao ano. A inflação
americana atingiu 8,5% nos 12 meses até março, a maior taxa desde 1981. Novos
aumentos de juros poderão ocorrer, segundo o presidente do Fed, Jerome Powell,
mas ele descartou variações de 0,75 ponto.
Essa ressalva diminuiu tensões no mercado,
mas, ainda assim, o aperto monetário nos Estados Unidos limita o espaço de ação
do BC brasileiro. Com taxas mais altas na maior potência econômica mundial,
qualquer afrouxamento no Brasil poderá resultar em indesejável saída de
dólares, com mais efeitos inflacionários no País.
Incapaz de frear a inflação internacional,
o Copom também é impotente em face de alguns importantes fatores inflacionários
internos, como os desmandos eleitoreiros do presidente Jair Bolsonaro e a
gastança promovida ou favorecida por parlamentares. Parte desses problemas é
visível nas pressões por aumentos salariais de várias categorias do
funcionalismo, desatadas pelo presidente ao prometer reajustes a grupos por ele
selecionados. Essas pressões, até com greves, são componentes das incertezas e
riscos apontados pelo BC.
BC terá ‘cautela adicional’ em novas
decisões sobre juros
Valor Econômico
Não há motivos relevantes para acreditar
que estender os aumentos da Selic seja muito eficiente para debelar a inflação
As estatísticas sobre inflação continuam
muito ruins e o Comitê de Política Monetária (Copom) mudou de posição em
relação ao condicional encerramento do ciclo de aperto monetário com a taxa
Selic de 12,75%. O ciclo será estendido, segundo comunicado, com um ajuste de
menor magnitude que 1 ponto percentual. O que mais chama a atenção no documento
são as manifestações expressas sobre a incerteza sobre premissas e projeções -
e isto para o cenário de referência - que é hoje “maior do que o usual”.
A partir da reunião de junho, assim, o BC
pode tanto encerrar o aperto monetário como estendê-lo de acordo com a
necessidade. A primeira hipótese é bem mais provável do que a segunda - o
arranque dos juros já chegou a 10,75 pontos percentuais, apenas dois a menos
que a Rússia, um país em guerra e sob embargo. Aumentar ainda mais os juros não
deve ter efeitos significativos que sejam compensadores diante dos estragos que
provocará nas atividades. A consequência seria um esfriamento da demanda em um
país onde ela está gélida - a projeção do aumento do consumo das famílias é de
1,1% e a do PIB, 1%. O rendimento do trabalho segue caindo e o desemprego
permanece alto.
No relatório de inflação de março, o BC
decompôs os fatores que influenciaram o desvio de 6,31 pontos percentuais entre
a meta de inflação de 3,75% e o IPCA de 10,06% de 2021. O principal responsável
pelo desvio foi a inflação importada, com 4,38 pontos percentuais, isto é 69%
da diferença, com peso maior em petróleo e o resto nas demais commodities. Mas
o país tem uma memória latente de indexação, e a inércia inflacionária
acrescentou mais 1,21 ponto percentual no desvio da meta.
É possível que o peso da inércia seja mais
forte este ano (tende a ser maior quanto mais tempo a inflação se mantiver
elevada) e o espalhamento da alta de preços pode ser visto, por exemplo, no
comportamento da média dos núcleos de inflação, de 8,93% em 12 meses até abril,
ou nos índices de dispersão do IPCA, em torno de 70%. Se o componente
inflacionário importado é relevante, seriam importantes atores baixistas a
valorização do real e a diminuição absoluta, e/ou redução na moeda local, das
commodities.
Nenhum destes fatores está sob controle do
BC - a volatilidade é enorme e, para complicar as coisas, o Federal Reserve
americano apressou o passo do ciclo de elevação de juros, no que pode ser
seguido, em cadência bem mais lenta pelo Banco Central Europeu. Daí a
desconfiança muito elevada nas premissas por parte do BC.
Espera-se que os preços administrados
desinflem significativamente, mas nada garante que isso ocorra. A aposta do BC
é que eles variem 6,4% pelo comunicado, bem abaixo dos 9,5% do documento de
março e mais ainda dos 16,9% do ano passado. O nível corrente de variação em 12
meses está ao redor de 14%. Essa conta é dominada por gasolina, gás e outros
tipos de energia, boa parte deles dependente dos preços internacionais e da
variação do dólar. A desaceleração global pode ajudar a esfriar esses preços.
O Copom passou a considerar o balanço dos
riscos simétrico agora, após meses em que ele foi considerado com viés altista,
especialmente pelas incertezas fiscais - que não foram embora, e não irão em um
ano eleitoral. Entrou no balanço, como possibilidade baixista da inflação, “uma
desaceleração da atividade econômica mais acentuada do que a projetada”. Alguns
economistas apontam que estímulos fiscais em andamento podem ser suficientes
para levar a economia a crescer mais que o previsto, outros que uma
desaceleração está contratada para o segundo semestre. O BC prefere olhar com
calma e avaliar a direção do vento. “O Comitê avalia que a conjuntura
particularmente incerta e volátil requer serenidade na avaliação dos riscos”,
registra o comunicado.
Para além das posições diferentes em relação ao aperto monetário - o BCB no fim, o Fed no início - há diferenças marcantes nas condições de propagação da inflação nos EUA e aqui. Os gastos de consumo e investimento das empresas americanas continuam vigorosos e os empresários não conseguem mais encontrar mão de obra em um país em pleno emprego. No Brasil, houve impulso diferenciado da demanda na recuperação da pandemia, mas em seguida a economia esfriou. O consumo das famílias brasileiras rasteja e os investimentos (FBCF) encolherão 1,5%. Não há motivos relevantes para acreditar que estender os aumentos da Selic seja muito eficiente.
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