sexta-feira, 6 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Inflação impõe desafios paralelos ao Fed e ao BC

O Globo

Autoridades monetárias do mundo todo estão diante de um desafio comum: combater uma inflação que, para onde se olhe, não para de galopar. No esforço para conter a alta, o Fed, banco central americano, elevou na quarta-feira a taxa básica de juros em 0,5 ponto percentual, maior aumento desde maio de 2000. Quando algo dessa magnitude acontece, os reflexos são mundiais. No mesmo dia, o Banco Central (BC) do Brasil aumentou a Selic para 12,75%, a maior taxa desde fevereiro de 2017.

Os dois países têm metas de inflação distintas, índices diferentes e histórico de altas dos juros incomparáveis, mas estão engalfinhados na mesma briga contra os preços. Tanto lá quanto aqui, há dúvida se as decisões serão capazes de resolver o problema no curto prazo.

Várias causas são comuns. A pandemia fez governos estimular o consumo num momento em que a produção e o comércio não estavam prontos para reagir. Resultado: preços sobem porque a oferta é insuficiente para atender a demanda. Quando esse problema começava a ser resolvido, veio a guerra na Ucrânia, dando ímpeto a outro tipo de pressão inflacionária: o aumento do custo. No caso, da energia e dos combustíveis.

O descontrole da inflação fez dos bancos centrais alvo preferencial de críticas. É verdade que eles demoraram a agir, mas esse questionamento, quando frequente, cria mais um problema. O poder de quem define a taxa básica de juros está na capacidade de influenciar as expectativas. Se empresários e investidores passam a duvidar da firmeza do banco central, o efeito tende a ser menor. É o risco que corre Jay Powell, presidente do Fed. Para deter o avanço da chaga inflacionária, os remédios que terá de usar serão provavelmente mais amargos.

No Brasil, a situação é outra. O BC promoveu ontem a décima alta seguida da Selic. Os problemas de seu presidente, Roberto Campos Neto, são distintos. Decisões do governo em nível federal e estadual estão aquecendo a economia justamente quando o BC tenta resfriar a demanda. Os salários de servidores foram corrigidos em vários estados, e recursos do FGTS foram liberados. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 12 meses está pouco acima de 12%. A expectativa do mercado é que feche 2022 em torno de 8% (acima do teto da meta, de 5%). O drama é que nem isso é garantido. Campos Neto e seus diretores já deram a entender que uma nova alta da Selic deverá ocorrer em junho.

Só que as incertezas persistem. Entre elas, a possibilidade de novos confinamentos na China, principal parceiro comercial do Brasil. O próprio aumento dos juros nos Estados Unidos dificulta a vida do BC aqui. Com a maior valorização dos títulos americanos, os investidores tendem a sair de mercados emergentes, o dólar sobe e importados ficam mais caros, pressionando a inflação. O presidente Jair Bolsonaro é outro complicador. Suas investidas contra o processo eleitoral aumentam a sensação de insegurança institucional e ajudam a enfraquecer o real. Em vez de ajudar a debelar a incerteza para resgatar sua popularidade e ter mais chance nas urnas, ele piora sua própria situação.

Regra esdrúxula na distribuição de cadeiras da Câmara cria distorção

O Globo

Com a aplicação neste ano, pela primeira vez na escolha dos deputados, da cláusula de barreira e da proibição de coligações, o Brasil começa enfim a depurar o leque de partidos. O Congresso tende a ser mais representativo e a melhorar a qualidade do debate político. Apesar do avanço, o novo sistema de escolha dos representantes abriu margem a um paradoxo, apontado pelo cientista político Jairo Nicolau em artigo no site Poder360: há critérios distintos para a primeira e a segunda rodada de distribuição das cadeiras no Legislativo. De tão esdrúxula, a regra deve ter sido aprovada sem que a maioria dos parlamentares a entendesse. Vários sentirão seu efeito na dificuldade maior para se reeleger.

Para definir os eleitos à Câmara, calcula-se para cada estado um quociente eleitoral (QE), resultado da divisão dos votos válidos pela quantidade de cadeiras em disputa. Cada partido recebe então um número de cadeiras correspondente ao total de votos de seus candidatos, somados aos votos na legenda, dividido pelo QE — e são escolhidos para ocupá-las os mais votados.

Na primeira rodada de distribuição, se exige do candidato que obtenha no mínimo 10% do QE. Do contrário, o partido perde a cadeira. Essa regra já vigorou na eleição de 2018. Foi devido a ela, segundo Nicolau, que o PSL perdeu sete cadeiras em São Paulo. Embora o partido fizesse jus a elas, não havia mais candidatos com mais de 30.187 votos, ou 10% do QE paulista.

Como sobram cadeiras, há uma segunda rodada para distribuí-las. A partir deste ano, só terá direito a disputar as sobras o partido que alcançar 80% do QE. É uma medida coerente com a cláusula de barreira pela qual, para ter direito a bancada, uma legenda precisará obter no mínimo 2% dos votos válidos, distribuídos em nove estados (com ao menos 1% dos votos em cada um). Nesse caso, porém, a lei passou a exigir votação mínima de 20% do QE para um candidato ser eleito. Não faz sentido. O patamar mínimo, 10% ou 20%, deveria ser o mesmo nas duas rodadas. “Por que criar exigências diferentes para candidatos que disputam a mesma eleição?”, questiona Nicolau.

Ele dá como exemplo a eleição dos 46 deputados federais do Rio em 2018. O QE foi de 168.122 votos, 38 vagas saíram na primeira rodada, oito na segunda. Vigorava a regra dos 10% do QE para o candidato ter direito à cadeira. Os oito eleitos na segunda rodada ultrapassaram esse patamar. Se valessem os 20%, seis não teriam entrado na Câmara (entre eles, Daniel Silveira).

Se um candidato tiver recebido quase 20% do QE, mas não for escolhido na primeira rodada por meros 100 votos, estará fora da segunda. Outro que recebeu 100 votos a mais estará eleito, pois dele exigiram-se apenas 10%. É um absurdo que precisa ser corrigido. Não há como fazer isso antes de outubro, mas a próxima legislatura precisa eliminar essa pequena distorção num sistema eleitoral de resto excelente. O melhor seria adotar os 20% desde a primeira rodada, para inibir os partidos que investem na votação milionária de celebridades como puxadores de voto para o resto da bancada.

Na incerteza, aperto

Folha de S. Paulo

Com a inflação em alta, sem sinais de reversão próxima, e riscos recessivos, os principais bancos centrais do mundo enfrentam o maior desafio das últimas décadas.

O cenário, já difícil, foi agravado pelo novo choque de preços de matérias-primas provocado pela guerra na Ucrânia e pela política de controle da Covid-19, que acentuam a escassez de suprimentos em várias cadeias produtivas.

A reação das autoridades monetárias tem sido elevar os juros, num contexto em que crescem os perigos para a atividade econômica. É uma mudança em relação ao padrão observado desde os anos 1990, quando a ameaça mais evidente era a deflação e havia espaço para estímulos monetários.

O dilema fica evidente no caso do Fed, o banco central americano. Na reunião deste mês, a instituição elevou sua taxa básica em 0,5 ponto percentual, para o intervalo de 0,75% a 1% ao ano.

Longe de significar um ajuste pontual, a sinalização é que será necessária uma sequência de aumentos, que poderão levar rapidamente o custo do dinheiro nos EUA para mais de 3% anuais.

Além da inflação, que lá chegou a 8,5% nos últimos 12 meses, o Fed se defronta com um possível aquecimento excessivo do mercado de trabalho, como legado dos estímulos adotados durante a pandemia.

Com alta de 5,6% dos salários em 12 meses, a ameaça é a de um processo inflacionário mais duradouro. Os mercados financeiros internacionais sentem o golpe, apresentando a maior retração desde a crise financeira de 2008.

Tal como no resto do mundo, a inflação tampouco dá sinais de arrefecimento no Brasil. Com os choques em combustíveis e alimentos, além da retomada dos serviços, as projeções para o IPCA, índice de referência do Banco Central, em 2022 continuam a subir —de 5% no início do ano para 7,9% hoje.

Daí a decisão do Banco Central de elevar a Selic em 1 ponto percentual, para 12,75% ao ano. A instituição indica que o ciclo de aperto está avançado, mas ainda vê pressões pela frente. Não se descarta que a taxa básica se aproxime de 13,5% até meados do ano.

O arrocho não impediu uma ligeira melhora das expectativas para o crescimento econômico neste 2022, hoje em torno de 0,7%, em boa parte devido às vantagens do setor exportador —que tem proporcionado expressivos saldos comerciais. Ademais, o dólar em patamares menos elevados tende a facilitar o controle da inflação.

Permanece, porém, a incerteza em relação à política econômica deste e do próximo governo, uma vez que as manifestações de Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até agora, não são claras nem animadoras.

Rascunho do retrocesso

Folha de S. Paulo

Possível fim do direito ao aborto nos EUA é mau exemplo do debate para o mundo

"A Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer dispositivo constitucional", escreveu o juiz conservador Samuel Alito, que chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos em 2006 indicado por George W. Bush.

Num rascunho recém-divulgado pelo site Politico, o magistrado indicou a tendência de reversão do direito reconhecido no país desde 1973, no julgamento Roe versus Wade. O presidente do tribunal, John Roberts, classificou o vazamento como uma "flagrante quebra de confiança", mas reconheceu a autenticidade do texto.

No caso ora em debate, analisa-se a constitucionalidade de uma lei aprovada no estado sulista do Mississippi que proíbe o aborto após 15 semanas de gestação.

Embora seja uma praxe da corte que rascunhos de decisões circulem entre seus integrantes e estejam sujeitos a mudanças, o vazamento expôs ânimos políticos acirrados em torno do tema. Curiosamente, a decisão Roe vs. Wade também acabou sendo divulgada primeiro pela imprensa na época, por questão de horas.

Nos EUA, o tema é tratado nas esferas federal e estadual. Em 1973, a Suprema Corte garantiu a proteção constitucional e nacional ao direito, o que foi confirmado em sua essência por outra decisão de 1992 (Planned Parenthood vs. Casey).

Com base nessas decisões, ora em perigo, autoridades não podem hoje impor um "obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade".

Retirada a norma, por uma Suprema Corte de maioria conservadora (6 votos de 9), os estados estariam livres para impor restrições locais. Estimativas apontam que ao menos 24 estados dos 50 governos estaduais assim procederão.

Não se pode subestimar o impacto desta decisão. No plano doméstico, as mais prejudicadas serão provavelmente mulheres de baixa renda, que já têm um filho, solteiras e na faixa de 20 anos —o grupo estatisticamente mais propenso a fazer aborto nos EUA.

A necessidade de viajar a outro estado tende a resultar em procedimentos inseguros, comprometendo a saúde pública —que é como a questão deve ser encarada, no entender desta Folha.

Quanto ao panorama global, trata-se de retrocesso de grande peso em tema já pacificado na enorme maioria das democracias desenvolvidas do Ocidente.

É preciso preservar a autoridade do STF

O Estado de S. Paulo

Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte

A Constituição de 1988 dispõe que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.

A situação é grave. O País precisa não apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com elas.

No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para destacar sua desarmonia com o Supremo.

Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas, a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.

Tem-se aqui um problema sério. De acordo com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.

Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a Constituição?

Esse é o grande problema. No momento em que o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional. A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a Constituição.

Esse cenário inverte o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência. Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.

O quadro não será revertido batendo boca com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.

Em nome da eleição, rasgam-se contratos

O Estado de S. Paulo

Para conter o prejuízo eleitoral, Câmara prepara medida que susta reajustes de energia elétrica e põe em xeque cumprimento de contratos, situação que tende a desestimular investimentos

A proximidade das eleições rasgou a fantasia da defesa da responsabilidade fiscal que alguns políticos ainda vestiam. Depois que o ministro da Economia, Paulo Guedes, assentiu com a destruição do teto de gastos, âncora que atrelava o crescimento das despesas à inflação, perdeu-se todo o pudor que ainda era relativamente preservado. Agora, com um ímpeto que não se via havia anos e parecia superado na história brasileira, a Câmara quer impedir a aplicação de reajustes nas tarifas de energia neste ano.

A ideia surgiu por meio de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) apresentado pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE). Incomodado com o aumento médio de 24,88% nas tarifas da Enel Distribuição Ceará, o parlamentar achou por bem simplesmente sustar os efeitos da decisão que havia sido referendada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A proposta conta com apoio explícito do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para quem o texto teria o poder de “anular atos em geral” – ou seja, permitiria cancelar reajustes de distribuidoras em todo o País.

O aumento das tarifas de energia não configura insensibilidade da agência reguladora ou das distribuidoras, mas apenas a realidade de custos crescentes inerente ao setor elétrico, entre eles geração, transmissão e distribuição. Há, no entanto, uma parcela significativa desses gastos que aumenta ano a ano com a colaboração direta dos parlamentares. Numa marcha que beira a insensatez, deputados e senadores não hesitam em apoiar propostas que repassam ainda mais gastos para a conta de luz, por meio de emendas a projeto de lei ou medidas provisórias, mas, estranhamente, mostram-se indignados quando a conta de seus próprios atos começa a chegar.

O exemplo mais recente e escandaloso foi a construção de termoelétricas onde não há reservas de gás, gasodutos ou linhas de transmissão. Há, porém, muitos outros, como o lobby das empresas de painéis fotovoltaicos, que convenceu a maioria do Congresso – e também o presidente da República – de que obrigá-los a pagar a tarifa de conexão dessas estruturas na rede, como fazem todos os outros consumidores, seria o mesmo que “taxar o sol”. Ao Estadão, o presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, comparou o apoio dos deputados ao projeto de decreto legislativo que susta reajustes a quem opta por “quebrar um termômetro que está apontando a febre”. Incrivelmente, 410 parlamentares votaram a favor da urgência da proposta, o que permite que ela seja pautada no plenário a qualquer tempo.

Longe de ser uma bondade, o texto é uma evidente intervenção na Aneel. Se aprovado, configurará incontestável quebra de contrato, gerará uma consequente guerra judicial e reduzirá a pó o interesse do setor privado em investir em infraestrutura no País. Ademais, a iniciativa é claramente inconstitucional, uma vez que a agência reguladora não descumpriu nenhuma lei ao aplicar os reajustes, requisito básico para dar embasamento a um PDL. Pelo contrário: o que o órgão fez foi repassar às tarifas tudo que o governo propôs e a que o Congresso deu aval, dentro de atribuições definidas por força de lei.

Lira e boa parte dos deputados sabem muito bem disso, de forma que o objetivo implícito da medida é outro. Não se trata de cancelar os reajustes, mas simplesmente arrumar um jeito de empurrá-los para 2023 e evitar danos políticos nas eleições de outubro. Nesse sentido, o setor elétrico tampouco pode reclamar, pois foram as próprias empresas que ensinaram o Congresso a pendurar os jabutis nas contas de luz por meio de emendas em benefício próprio e prejuízo de toda a sociedade. A Aneel tampouco tem moral para contestá-los, pois foi autora da ideia dos dois empréstimos bilionários que autorizaram verdadeiras pedaladas elétricas ao longo dos próximos anos. Pior: para não afrontar o Legislativo, a agência se recusou a calcular o rombo de várias dessas propostas antes que elas fossem votadas, uma de suas funções mais republicanas.

Continua o aperto contra a inflação

O Estado de S. Paulo

O BC promete novos aumentos dos juros básicos e não há indicação de quando o arrocho do crédito chegará ao limite

Sem meios para frear os preços internacionais, afetados pela guerra de Vladimir Putin e pelos cortes de produção chinesa no combate à covid, o Banco Central (BC) tenta conter a inflação brasileira elevando os juros ao nível mais alto em cinco anos. Os benefícios poderão ser modestos em 2022 e mais sensíveis em 2023, mas os custos para o crescimento econômico tendem a ser imediatos. Não há, no entanto, alternativas visíveis neste momento para o combate ao surto inflacionário, já intenso antes da invasão da Ucrânia.

Na décima alta consecutiva, anunciada na quarta-feira, a taxa básica subiu 1 ponto e chegou a 12,75% ao ano, mas ficará aí por pouco tempo. Um novo aumento em junho já foi apontado como “provável” pelo Copom, o Comitê de Política Monetária do BC, em nota divulgada após a última reunião. No próximo ajuste, a taxa alcançará 13,25%, segundo a aposta dominante no mercado, e há quem preveja 13,50%. Mas ninguém tem base para dizer se o aperto do crédito vai parar nesse ponto ou continuar aumentando.

Não há sinal de trégua por parte do BC. O aperto poderá ficar mais suave, mas a intenção declarada é continuar “avançando significativamente em território ainda mais contracionista”, segundo a nota. A estratégia será mantida, promete o Copom, até se alcançarem dois objetivos, a reversão do impulso inflacionário e a “ancoragem das expectativas” em torno das metas oficiais. Notas anteriores citaram o compromisso com esses objetivos.

Em 2022, a inflação, estimada em 7,3% pelo BC e mais perto de 8% pelo mercado, ainda passará bem acima do teto da meta, fixado em 5%. No ano passado a meta era de 5,25% e os preços aumentaram 10,03%. Em 2023, o número final, estimado em 3,4% no informe do Copom, poderá ficar bem perto do centro do alvo, de 3%.

Também na quarta-feira, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) adicionou 0,5 ponto porcentual a seus juros básicos, elevando-os para a faixa de 0,75% a 1% ao ano. A inflação americana atingiu 8,5% nos 12 meses até março, a maior taxa desde 1981. Novos aumentos de juros poderão ocorrer, segundo o presidente do Fed, Jerome Powell, mas ele descartou variações de 0,75 ponto.

Essa ressalva diminuiu tensões no mercado, mas, ainda assim, o aperto monetário nos Estados Unidos limita o espaço de ação do BC brasileiro. Com taxas mais altas na maior potência econômica mundial, qualquer afrouxamento no Brasil poderá resultar em indesejável saída de dólares, com mais efeitos inflacionários no País.

Incapaz de frear a inflação internacional, o Copom também é impotente em face de alguns importantes fatores inflacionários internos, como os desmandos eleitoreiros do presidente Jair Bolsonaro e a gastança promovida ou favorecida por parlamentares. Parte desses problemas é visível nas pressões por aumentos salariais de várias categorias do funcionalismo, desatadas pelo presidente ao prometer reajustes a grupos por ele selecionados. Essas pressões, até com greves, são componentes das incertezas e riscos apontados pelo BC.

BC terá ‘cautela adicional’ em novas decisões sobre juros

Valor Econômico

Não há motivos relevantes para acreditar que estender os aumentos da Selic seja muito eficiente para debelar a inflação

As estatísticas sobre inflação continuam muito ruins e o Comitê de Política Monetária (Copom) mudou de posição em relação ao condicional encerramento do ciclo de aperto monetário com a taxa Selic de 12,75%. O ciclo será estendido, segundo comunicado, com um ajuste de menor magnitude que 1 ponto percentual. O que mais chama a atenção no documento são as manifestações expressas sobre a incerteza sobre premissas e projeções - e isto para o cenário de referência - que é hoje “maior do que o usual”.

A partir da reunião de junho, assim, o BC pode tanto encerrar o aperto monetário como estendê-lo de acordo com a necessidade. A primeira hipótese é bem mais provável do que a segunda - o arranque dos juros já chegou a 10,75 pontos percentuais, apenas dois a menos que a Rússia, um país em guerra e sob embargo. Aumentar ainda mais os juros não deve ter efeitos significativos que sejam compensadores diante dos estragos que provocará nas atividades. A consequência seria um esfriamento da demanda em um país onde ela está gélida - a projeção do aumento do consumo das famílias é de 1,1% e a do PIB, 1%. O rendimento do trabalho segue caindo e o desemprego permanece alto.

No relatório de inflação de março, o BC decompôs os fatores que influenciaram o desvio de 6,31 pontos percentuais entre a meta de inflação de 3,75% e o IPCA de 10,06% de 2021. O principal responsável pelo desvio foi a inflação importada, com 4,38 pontos percentuais, isto é 69% da diferença, com peso maior em petróleo e o resto nas demais commodities. Mas o país tem uma memória latente de indexação, e a inércia inflacionária acrescentou mais 1,21 ponto percentual no desvio da meta.

É possível que o peso da inércia seja mais forte este ano (tende a ser maior quanto mais tempo a inflação se mantiver elevada) e o espalhamento da alta de preços pode ser visto, por exemplo, no comportamento da média dos núcleos de inflação, de 8,93% em 12 meses até abril, ou nos índices de dispersão do IPCA, em torno de 70%. Se o componente inflacionário importado é relevante, seriam importantes atores baixistas a valorização do real e a diminuição absoluta, e/ou redução na moeda local, das commodities.

Nenhum destes fatores está sob controle do BC - a volatilidade é enorme e, para complicar as coisas, o Federal Reserve americano apressou o passo do ciclo de elevação de juros, no que pode ser seguido, em cadência bem mais lenta pelo Banco Central Europeu. Daí a desconfiança muito elevada nas premissas por parte do BC.

Espera-se que os preços administrados desinflem significativamente, mas nada garante que isso ocorra. A aposta do BC é que eles variem 6,4% pelo comunicado, bem abaixo dos 9,5% do documento de março e mais ainda dos 16,9% do ano passado. O nível corrente de variação em 12 meses está ao redor de 14%. Essa conta é dominada por gasolina, gás e outros tipos de energia, boa parte deles dependente dos preços internacionais e da variação do dólar. A desaceleração global pode ajudar a esfriar esses preços.

O Copom passou a considerar o balanço dos riscos simétrico agora, após meses em que ele foi considerado com viés altista, especialmente pelas incertezas fiscais - que não foram embora, e não irão em um ano eleitoral. Entrou no balanço, como possibilidade baixista da inflação, “uma desaceleração da atividade econômica mais acentuada do que a projetada”. Alguns economistas apontam que estímulos fiscais em andamento podem ser suficientes para levar a economia a crescer mais que o previsto, outros que uma desaceleração está contratada para o segundo semestre. O BC prefere olhar com calma e avaliar a direção do vento. “O Comitê avalia que a conjuntura particularmente incerta e volátil requer serenidade na avaliação dos riscos”, registra o comunicado.

Para além das posições diferentes em relação ao aperto monetário - o BCB no fim, o Fed no início - há diferenças marcantes nas condições de propagação da inflação nos EUA e aqui. Os gastos de consumo e investimento das empresas americanas continuam vigorosos e os empresários não conseguem mais encontrar mão de obra em um país em pleno emprego. No Brasil, houve impulso diferenciado da demanda na recuperação da pandemia, mas em seguida a economia esfriou. O consumo das famílias brasileiras rasteja e os investimentos (FBCF) encolherão 1,5%. Não há motivos relevantes para acreditar que estender os aumentos da Selic seja muito eficiente.

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