O Globo
A atual convulsão por que passam os Estados
Unidos diante do risco real de que a Suprema Corte revise a jurisprudência
firmada em 1973, no caso Roe versus Wade,
em que reconheceu o direito da mulher ao aborto, é uma demonstração muito
eloquente de como um movimento que provoca solavancos sistemáticos na
democracia deixa danos permanentes às instituições e aos direitos civis mesmo
quando derrotado nas urnas.
O trumpismo se apropriou da pauta antiaborto
e de outras bandeiras de direita que fermentam na sociedade americana há
décadas, com raízes ligadas a movimentos supremacistas brancos, à direita
religiosa radical e a outros subgrupos da extrema direita e da direita
alternativa (a “alt-right”).
Com sua Presidência antiestablishment,
Donald Trump foi um galvanizador desses interesses até então difusos, sem uma
via partidária para chegar a ameaçar conquistas históricas como a que assegurou
às mulheres o direito à interrupção da gravidez e à população outros direitos
civis.
Ao esgarçar os limites até então vigentes,
e respeitados pelos partidos, de uma convivência republicana em que disputas
eram dirimidas no Congresso ou na Suprema Corte, e os vencidos acatavam o
resultado das urnas, de votações ou de julgamentos, Trump, mesmo fora da Casa
Branca, segue sendo esse ímã que atrai toda sorte de interessados em provocar
retrocessos civilizatórios no país.
Pode ser que o vazamento do rascunho do relatório do juiz Samuel Alito evite que a Corte de fato revise a jurisprudência quase cinquentenária. A reação do Partido Democrata, do governo Biden, da imprensa, dos movimentos feministas e de outros de defesa dos direitos civis, além do vazamento sem precedente de um relatório prevendo o placar de um julgamento (algo que jamais havia acontecido nos EUA, diferentemente daqui, onde os ministros do STF são mais acessíveis, e as sessões públicas), pode levar a Suprema Corte a recuar da intenção.
Mas o que se vê agora no país é mais um
teste. O trumpismo perdeu as eleições, mas domina o Partido Republicano e
resiste como força eleitoral. Em seu mandato, Trump designou três dos nove
atuais integrantes da Suprema Corte, o que contribuiu para sua atual
conformação majoritariamente conservadora.
O grande temor dos analistas é que, aberto
o precedente e confirmada a revisão do direito ao aborto, se abra uma avenida
para a contestação, na Corte, de outros direitos, não só reprodutivos, mas
ligados à igualdade racial, à educação, à imigração e a outros temas que são
alvo dos movimentos de extrema direita acoplados ao trumpismo.
É essa a consequência da crise da
democracia americana que serve de alerta para o Brasil, que flerta dia a dia,
perigosa e desanimadamente, com estratagemas copiados pelo bolsonarismo do
ídolo de pele laranja. Mesmo que esses movimentos de negação da democracia
sejam derrotados na urna, eles se mantêm como parasitas em partidos políticos,
nos parlamentos, nas redes sociais e numa parcela da sociedade.
É como aqueles filmes de terror em parece
que a criatura foi incinerada, morta a machadadas, enterrada no mundo
invertido, mas na última cena uma raiz ou gosma aparecem para mostrar que vem
aí uma continuação talvez mais aterrorizante.
Para evitar esse desfecho, é necessário que
o Judiciário e o Legislativo reforcem os sistemas de freios e contrapesos, não
só com a casa já arrombada ou o com o tsunami batendo à porta, como tentam
agora às pressas os congressistas democratas, que querem transformar o direito
ao aborto em lei federal.
Essas reformas têm de ser feitas com método
e atenção à necessidade de fechar as frestas no cimento da democracia que
permitem aos iliberais usar as leis e o próprio sistema para atacá-lo por
dentro, sufocando-o aos poucos.
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