Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em algum momento a população cobrará
resultados e não adiantará mais falar em nome de Deus, da Pátria e da Liberdade
ou chamar os adversários de comunistas
Assumir a cadeira presidencial em 2023 será
bem mais difícil do que em qualquer outro período da história recente. Claro
que sempre é complicado governar o Brasil, um país complexo, desigual, com um
sistema político que exige muitas negociações e com parte dos parlamentares interessados
mais em negociatas do que no interesse público. Isso faz parte do jogo. Mas o
bolsonarismo deixou uma herança que amplia os obstáculos à governabilidade em
dois sentidos: ele não resolveu ou aprofundou os problemas do país e, pior,
criou travas para a resolução das grandes questões nacionais.
O primeiro sentido da herança negativa do
bolsonarismo está expresso no conjunto de problemas que ele deixou ou agravou
em quatro grandes áreas de políticas públicas. A primeira refere-se às
políticas sociais, cujas estruturas construídas em décadas foram desmontadas.
Pegue-se o exemplo da saúde e da educação e se constata que o desastre foi
enorme, com consequências de curto e longo prazo.
O fracasso na saúde ficou bem claro com a
má condução da política nacional contra a pandemia de covid-19. Se não fosse o
SUS, com seus profissionais qualificados e sua estrutura que ajudou a construir
os serviços nos estados e municípios, talvez tivéssemos um número mais próximo
de 1 milhão de mortes. Mas se não tivesse havido o negacionismo e a
descoordenação federativa produzida por quem deveria zelar para cooperação
entre os níveis de governo, a quantidade de óbitos teria sido bem menor.
Especialistas calculam que em torno de 400 mil mortes poderiam ter sido
evitadas, para não falar daqueles que estão até hoje sofrendo sequelas
terríveis da doença.
Os problemas da política sanitária bolsonarista não estão apenas no combate à covid-19. A cobertura vacinal do país está caindo vertiginosamente e a dengue explodiu neste ano, o que revela que o país não tem estratégias para combater doenças que atingem muita gente. Igualmente desastrosa é a gestão dos insumos de saúde, com a falta de vários medicamentos básicos no SUS, como não acontecia desde o início da década de 1990. E os programas para grupos mais vulneráveis, como a população indígena, tiveram um retrocesso gigantesco.
O fato é que o país está menos preparado
agora para epidemias ou pandemias que podem nos assolar nos próximos anos, algo
que, infelizmente, tem condições críveis de ocorrer. O esgarçamento do SUS vai
aumentar a mortalidade e piorar a saúde dos mais pobres, com fortes efeitos
sociais, além de afetar o capital humano disponível, com consequências ruins
para a produtividade da economia.
Na educação, a situação é ainda pior. O
bolsonarismo lavou as mãos para a crise educacional gerada por quase dois anos
de escolas fechadas, com cerca de 5 milhões de alunos não tendo acesso ao
ensino remoto. O governo federal teria de ter ajudado governos estaduais e
municipais num país com grande desigualdade territorial, do mesmo modo que
desde o governo FHC a União tem atuado para reduzir tais disparidades. As
grandes questões educacionais foram deixadas de lado para que discussões sem
nenhum impacto no aprendizado dos estudantes ganhassem centralidade. Junto com
o abandono da educação básica houve a redução drástica do apoio à ciência e à
tecnologia, o que nos condena ao subdesenvolvimento.
Para fechar esse ciclo de maldades, o MEC
se tornou um antro de corrupção por meio do uso de emendas do Orçamento
Secreto. Cabe frisar que o desastre bolsonarista na educação tem mais efeitos
de longo prazo do que qualquer erro de política econômica. Perder quatro anos
de política educacional significa reduzir a capacidade de desenvolvimento econômico
e social do país, com menos oportunidades, ascensão social e produção de
capital humano. Imagine oito anos num cenário como esse, qual seria o
resultado?
A segunda herança perversa do bolsonarismo
reside no fracasso das políticas ambientais. O meio ambiente é um ativo do país
para o seu futuro econômico, para sua posição geopolítica e para garantir a
diversidade natural que faz parte da civilização brasileira. O que temos tido
nos últimos anos é o desmonte dos órgãos ambientais federais, o aumento do
desmatamento, o crescimento do garimpo ilegal na Amazônia e a ameaça constante
à preservação de todos os ecossistemas. O país estava virando uma referência
internacional e já se tornou um mau exemplo.
Toda a população brasileira irá sofrer com
isso: os mais pobres e os ruralistas, com a mudança climática que afetará a
produção de alimentos; os trabalhadores e os bancos, pois o Brasil está
perdendo muitos investimentos e financiamentos por não ter um selo verde no
momento; os povos indígenas e os que moram no Sudeste, porque o que se perde de
floresta pode significar menos água para os que vivem nos grandes centros.
A política externa é a terceira herança
nefasta produzida pelo governo Bolsonaro. Em poucas palavras, o Brasil se
isolou completamente dos principais circuitos geopolíticos e é visto como um
pária pelos países mais importantes do mundo ou de nossa região. Já não é mais
chamado para as reuniões do G7 - para a próxima, o Senegal foi convidado e nós,
não.
O isolacionismo tem vários efeitos
negativos, como deixar de participar de decisões globais de grande relevância,
receber menos investimentos ou mesmo ter a possibilidade de sofrer sanções
explícitas ou implícitas dos governos ou de suas sociedades, reduzir os
intercâmbios científicos, em suma, ser desimportante e malvisto lá fora cobra
um preço interno de menor desenvolvimento no presente e no futuro.
O desenvolvimento econômico e social fecha
o ciclo de problemas estruturais que foram ampliados durante o bolsonarismo. No
curto prazo, a inflação só aumenta e está fora do controle, e só voltará a
níveis razoáveis em 2024 (se tudo der certo). Para reduzir esse problema, os
juros foram aumentados, o que vai implicar um custo fiscal alto para o
quadriênio que vem, num Orçamento já apertado, que não consegue garantir
recursos adequados nem para investimento nem para evitar o sucateamento da
máquina pública federal.
Completa esse quadro um alto desemprego,
que não cairá para menos de 10% nos próximos dois anos, e uma queda da renda
real da população, com maior impacto entre os mais pobres, cada vez mais
pauperizados e sem acesso a bens básicos, além de terem perdido a esperança de
ascensão iniciada com o Plano Real - na verdade, é pior do que isso: a fome
voltou a ser um fenômeno amplo no Brasil.
Essas dificuldades de curto prazo
alimentam-se da ausência de um projeto econômico e social de longo prazo. O
governo Bolsonaro não tem um plano estratégico para o país, movendo-se mais
pelos humores populistas do presidente frente às intempéries políticas. Num
dia, propõe-se a privatização da Eletrobras - num modelo que vai aumentar o
custo da energia no país -, enquanto noutro se intervém na direção da
Petrobras. Numa semana o assunto é a liberdade econômica, na seguinte é a
criação de um auxílio aos caminhoneiros - embora o que se mantém mesmo no
Brasil são os subsídios às empresas, método já assimilado por Paulo Guedes. E o
tema das várias desigualdades brasileiras? Este só aparece como estratégia
populista e assistencialista. Com mais quatro anos de bolsonarismo, seremos
mais pobres, mais desiguais e menos ricos.
É possível pensar que uma mudança de
governo poderia alterar essa situação. Os mais esperançosos poderiam, ademais,
acreditar que um segundo governo Bolsonaro seria capaz de evitar parte dos
problemas criados por ele mesmo - o tom da campanha vai mostrar que é preciso
ser muito Poliana para embarcar nessa tese. De todo modo, qualquer uma dessas
hipóteses enfrenta um obstáculo maior. Existe uma segunda herança do
bolsonarismo que não advém dos seus erros e fracassos nas políticas públicas. O
pior legado bolsonarista é ter criado uma lógica política que dificulta
bastante a saída da crise atual.
Paul Pierson, um grande cientista político
americano, definiu um conceito que cabe bem a essa segunda herança do bolsonarismo,
a mais profunda de todas. Trata-se do termo “path dependence”, cujo significado
é que algumas trajetórias ganham uma força institucional e/ou social difícil de
ser revertida. Bolsonaro estabeleceu uma lógica política que será um obstáculo
à mudança quem quer que seja o novo presidente.
Entre seus elementos estão a
(re)politização das Forças Armadas, o fortalecimento de uma oligarquia
parlamentar pela constitucionalização do jogo individualista (quando não
secreto) das emendas orçamentárias, a produção de uma visão autoritária contra
as instituições em pelo menos 20% da população, o fortalecimento de grupos
religiosos que atuam contra a secularização do Estado e o incentivo ao
armamentismo da sociedade, facilitando inclusive à formação de milícias políticas
e de bandidagem.
Esse “path dependence” retrógrado e
autoritário criado por Bolsonaro será uma barreira às grandes transformações
pelas quais o Brasil precisa passar para dar certo no século XXI. A saída dessa
armadilha política será o maior problema do próximo presidente, talvez até para
Bolsonaro, porque em algum momento a população cobrará resultados de políticas
públicas, e não adiantará mais falar em nome de Deus, da Pátria e da Liberdade
ou chamar os adversários de comunistas.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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