Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Não só o índio, o mais desvalido, mas o
negro, o pobre, a mulher, a criança, o idoso e o morador de rua são vítimas de
ocorrências de tratamento incompatível do outro com a condição humana
A notícia de que uma menina yanomâmi de 12
anos de idade havia sido sequestrada, estuprada por um grupo de garimpeiros de
um garimpo ilegal e assassinada, em Roraima, despertou indignação e medo nos
últimos dias. Sobretudo aumentou nossas incertezas sociais.
A denúncia foi de Júnior Hekurari Yanomami,
jovem líder indígena, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena
Yanomâmi e Ye’kwana. Os garimpeiros invadiram a comunidade e sequestraram uma
mulher, uma criança de 4 anos e a adolescente. A criança caiu no rio.
A situação de risco étnico na Terra
Indígena Yanomâmi vem sendo denunciada há tempos. Com dados de 2021, a Hutukara
Associação Yanomâmi e a Associação Wanasseduume Ye’kwana, duas entidades que se
ocupam da situação e dos problemas dessa população, com apoio do Instituto
Socioambiental, publicaram neste abril de 2022 o bem fundamentado documento a
respeito: “Yanomâmi sob ataque - garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomâmi e
propostas para combatê-lo”.
O estudo, com base em fotografias de satélite, mostra que naquela área há imensas cicatrizes na floresta, a dos 19 garimpos, que cresceram 46% do ano passado para cá. Há nela cerca de 200 aldeias yanomâmi, algumas de índios ainda não contatados e completamente vulneráveis ao assédio dos garimpeiros.
Já aconteceu antes, quando a probabilidade
de mudança de governo incrementou ações de grilagem de terra, de invasão de
terras indígenas, de desmatamento ilegal e de violência contra populações
tradicionais do campo. Essas modalidades de violência sugerem que os
beneficiários das formas ilegais e predatórias de economia, implicitamente
apoiados pelo governo atual, intuem que os resultados da próxima eleição
mudarão o cenário de omissões e de medidas antissociais de que se valem.
A degradação ambiental e a alteração das
condições de vida dos índios têm disseminado carências e fome. O equilíbrio na
relação do nativo com a natureza foi rompido, o que compromete sua própria
sobrevivência. Mulheres têm sido objeto de violência sexual em troca de comida.
Bebidas alcoólicas e drogas têm sido oferecidas a adolescentes dos dois sexos
como meio de criar dependência e vulnerabilidade.
Darcy Ribeiro, em um estudo antropológico
referencial, “Os índios e a civilização”, escrito à luz de amplo material
etnográfico, conclui que o contato dos índios brasileiros com o branco tem sido
feito com o pior tipo de branco. No fundo o que não nos representa nem
representa as grandes conquistas do humanismo, da civilização e do
reconhecimento da relevância humana da diferença e do direito à diferença.
A tragédia repercutiu no STF, na palavra
firme e clara da ministra Cármen Lúcia, do STF: “Acho que não é mais possível
calar ou se omitir diante do descalabro de desumanidades criminosamente imposto
às mulheres brasileiras, dentre as quais mais ainda as indígenas, em situação
de enorme vulnerabilidade, que estão sendo mortas pela ferocidade desumana e
incontida de alguns”.
Um amortecimento crescente da consciência
social, sobretudo a partir dos anos 2010, uma clara inversão de valores, que se
manifesta até mesmo em seitas e religiões cada vez mais identificadas com o
dinheiro do que com caridade e a corresponsabilidade, vão definindo uma espécie
de nova personalidade básica do brasileiro, intimidada, retraída, oposta a tudo
que acreditávamos ser. Está em andamento um vasto projeto de disseminação de
medo e insegurança para nos mostrar quem é que manda.
Não só o índio, o mais desvalido, mas o
negro, o pobre, a mulher, a criança, o idoso, o morador de rua também são vítimas
de ocorrências cada vez mais visíveis e disseminadas de tratamento incompatível
do outro com a condição humana.
Nos últimos anos cresceu não só o número de
denúncias de atos de extrema violência contra mulheres por parte do marido ou
companheiro, como cresceu o número de casos de estupro de crianças, até de
bebês, não raro por gente da própria família. Ou seja, a sociedade brasileira
está mergulhada num profundo estado de anomia, como se não tivesse regras
sociais próprias de uma sociedade normal e civilizada.
Não é raro que as sociedades se
desorganizem. Raro é que sejam nelas frágeis os mecanismos compensatórios de
regeneração das relações sociais violadas e de produção de relações que
instaurem um novo padrão de relacionamentos, em patamar mais desenvolvido e
mais civilizado.
Aqui, os mecanismos sociais de superação da
anomia e dos fatores de desordem não têm tido o vigor necessário para compensar
a decomposição dos valores sociais de referência da conduta socialmente
sancionada. Pior mesmo é que vão surgindo evidências de uma aceitação tácita da
normalidade do que é anômalo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - a de- gradação do outro nos confins do humano" (Contexto).
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