domingo, 16 de abril de 2023

Entrevista | Craig Smith: Adam Smith - A riqueza das ideias

Por Hamilton dos Santos; Especial para O Globo

Celebração do autor de 'A riqueza das nações' é ponto culminante de um revisionismo que inclui resgatar sua crítica moral da escravidão

Este ano são comemorados os 300 anos do nascimento de Adam Smith (1723-1790), autor do clássico “A riqueza das nações” (1776). As celebrações prometem muito barulho, transformando-se no ponto culminante de um processo revisionista que teve início ainda nos anos 1970, e que pretende resgatar o “verdadeiro Smith” de sua imagem popular, ainda associada à pregação de um neoliberalismo selvagem.

No epicentro das principais festividades, de 5 a 10 de junho, está a Universidade de Glasgow, da qual Smith foi o aluno e o professor mais célebre. Uma série de colóquios já está em andamento em diversos países, apresentando a mais recente produção acadêmica e biográfica sobre o pensador escocês e sua obra.

Quem está à frente da curadoria dos eventos oficiais e das recuperações históricas é o professor Craig Smith (que, apesar do sobrenome, não é descendente do filósofo), do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Glasgow. Autor de “Adam Smith’s political philosophy: the invisible hand and the spontaneous order” (“A filosofia política de Adam Smith: a mão invisível e a ordem espontânea”, em tradução livre), ele falou ao GLOBO sobre a missão.

O Adam Smith do imaginário popular difere do que viveu e escreveu no século XVIII?

Adam Smith tem um lugar na cultura popular muito associado à economia de livre mercado por ser autor de “A riqueza das nações”, um dos primeiros clássicos modernos da área, em que argumenta em favor da livre iniciativa. Mas ele é também um filósofo interessado em moral, ciências naturais, artes, linguagem — sem levar isso em conta, não é possível ter uma imagem clara do que ele escreveu sobre economia. Por exemplo: muita gente acredita que Smith era um defensor dos interesses particulares, do egoísmo, e isso não é verdade. Em sua “Teoria dos sentimentos morais” (1759), ele descreve e defende motivações diferentes para as ações humanas, inclusive benevolentes. Em “A riqueza das nações”, Smith fala de situações nas quais o livre mercado não funciona e os governos deveriam agir. Existe uma imagem enganosa dele como economista, uma espécie de caricatura. Na celebração de seu 300º aniversário, queremos conscientizar as pessoas de outras coisas que ele defendeu em sua obra.

Quem deturpou a sua imagem?

Não gosto de atribuir culpa. Livros recentes afirmam que economistas associados à Universidade de Chicago teriam sido responsáveis por cultivar essa imagem de Smith e provavelmente existe alguma verdade nisso. Mas é igualmente verdade que muitas outras pessoas fizeram essa associação, gente que nunca ouviu falar de Milton Friedman, George Stigler ou outros nomes dessa escola. Então acredito que a questão da responsabilidade seja mais profunda. Acho que Smith é uma dessas figuras que são tão conhecidas que todos acham que sabem o que elas disseram. Ocorre o mesmo com Karl Marx — poucos leram o original ou mesmo livros sobre ele, mas muitos pensam entender sua obra quando, na verdade, apenas absorveram uma versão resumida de seu pensamento via cultura popular.

Quando começou a recuperação de uma imagem mais verdadeira de Smith?

Em 1976, no aniversário de 200 anos da publicação de “A riqueza das nações”, foi editada uma nova coleção dos trabalhos de Smith, produzida pelos pesquisadores da Universidade de Glasgow. Pela primeira vez nós tínhamos uma versão moderna de toda a sua obra. Os eventos comemorativos que se seguiram despertaram novos interesses, principalmente na “Teoria dos sentimentos morais”, e muito trabalho passou a ser feito sobre este livro e suas relações com “A riqueza das nações”. Logo ficou claro que os dois textos são idealmente compreendidos quando lidos em conjunto. O fim da década de 1970 marcou o primeiro momento de um olhar mais apurado sobre a “Teoria dos sentimentos morais”. E isso continuou nos últimos 40 anos, com diversas revisitações de aspectos da obra de Smith que haviam sido ignorados durante a maior parte dos séculos XIX e XX.

Na “Teoria dos sentimentos morais”, como o conceito de simpatia dialoga com a política e a economia?

Smith argumenta que somos movidos pelas nossas emoções, nossos sentimentos. Para ele, a maneira pela qual entendemos o que outras pessoas estão experimentando é a simpatia — a capacidade de nos imaginarmos na situação dos outros. Quando ele escreve sobre economia, diz que as pessoas que têm empatia são também as pessoas que fazem comércio. E isso significa que o comércio não pode ser pensado unicamente na base do interesse particular, assim como a moralidade não pode ser pensada somente com base na empatia. O que Smith tenta fazer nesses seus dois grandes livros é nos mostrar como e quando as fronteiras entre essas duas atividades podem entrar em conflito.

Em que contexto histórico surgiu Smith? Poderia falar sobre sua proximidade com David Hume?

Smith e Hume eram grandes amigos, ambos estavam no centro dos iluministas escoceses. O Iluminismo foi um fenômeno internacional, caracterizado pela crença na ciência, no progresso, no valor da literatura e do debate intelectual. O Iluminismo escocês, porém, se distingue por ter tido uma preocupação com a História e a política acima de tudo, com o intuito de compreender como as sociedades operam e se desenvolvem. Além do fato de que, na Escócia, os iluministas se beneficiaram de não terem sido perseguidos, como, por exemplo, ocorreu na França. Eles eram parte do establishment, eram figuras importantes, professores universitários, advogados, juízes, médicos.

Como era a posição de Smith diante da escravidão?

Além de produzir uma crítica moral da escravidão como forma de tirania, mostrou que a escravidão era antieconômica. Seus argumentos foram muito influentes no século XIX. Smith se opunha veementemente a todo o sistema colonialista e imperialista da Grã-Bretanha de sua época. “A riqueza das nações” trata disso.

Sua obra se aproxima mais de um capitalismo humanitário do que do neoliberalismo selvagem?

Smith defende o mercado na medida em que serve para melhorar a situação do pobre, não do rico. Os heróis de seu livro não são diretores de grandes empresas — ele não acredita que as corporações sejam uma boa maneira de organizar as atividades econômicas. Por isso, acredito que oferece ferramentas para interpretar e criticar as formas sociais sob as quais vivemos hoje.

Hoje empresários falam sobre saúde mental. Smith escreveu sobre isso?

Logo no começo de “A riqueza das nações”, ele nos mostra que a divisão do trabalho é o que permite o aumento da produtividade, um fator necessário para aumentar o padrão de vida das pessoas comuns. Ele nos dá o exemplo de uma fábrica de alfinetes em que cada trabalhador passa o tempo realizando uma única tarefa simples — por exemplo, afiando alfinetes — e mostra como isso aumenta a produtividade, gerando assim uma queda dos preços e um consequente acesso generalizado ao produto. Porém, no quinto capítulo, ele retoma esse raciocínio e se questiona sobre o que acontece com uma pessoa que passa os dias realizando uma mesma tarefa simples e repetitiva. E ele reconhece que existe um impacto negativo em sua capacidade intelectual, suas emoções, seu espírito. Ele então se pergunta sobre o que podemos fazer em relação a isso e argumenta a favor de um sistema público de educação, para garantir que os trabalhadores saibam ler e escrever e tenham acesso a modos de fazer amigos e colegas. Junto com a indústria do entretenimento, essas medidas permitiriam que os trabalhadores desenvolvessem uma vida proveitosa à parte de seus trabalhos.

Como será a celebração dos 300 anos? Quem serão os palestrantes?

Temos um projeto para o ano todo em diversos países, mas o evento principal vai de 5 a 10 de junho em Glasgow, onde teremos palestrantes como Gita Gopinath, Deirdre McCloskey e Sir Angus Deaton. Em geral, queremos incentivar as pessoas a lerem Adam Smith e discutir a relevância de sua filosofia para questões contemporâneas. Estamos aumentando os investimentos em pesquisa acadêmica sobre ele. Um exemplo brasileiro é a pesquisadora Ana Paula Londe Silva, que veio pesquisar as ideias de Smith sobre a escravidão. Também estamos organizando grupos de leitura presenciais e on-line, produzindo recursos didáticos para professores incorporarem o ensino de Smith em suas aulas e teremos uma exposição virtual com cartas, livros do acervo pessoal do filósofo, primeiras edições de seus textos e notas de alunos.

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