O Globo
A coleira que chicoteou o entregador Max
poderia constar de algum museu do racismo no Brasil de 2023
Agosto de 1955, Estados Unidos — foi
sucinta a última recomendação da mãe de Emmett Till, de 14 anos, ao embarcá-lo
para visitar familiares no estado sulista do Mississippi:
— Lá não é como aqui em Chicago. Você é um
menino negro, não deve arrumar confusão.
Os tios que hospedaram o garoto curioso lhe fizeram advertência semelhante. Também os priminhos da mesma idade falavam em nunca chamar a atenção, mesmo em programas tão inocentes como sair para comprar doces. Foi numa noite daquele agosto escaldante que Emmett entrou no mercadinho Bryant, de propriedade de um branco, acompanhando o primo Curtis Jones. No caixa estava a mulher do dono. Os meninos fizeram a compra, saíram rapidamente e ainda estavam a fazer hora quando a sra. Bryant também saiu para pegar o carro. Um assovio atrevido, insolente, proibido cortou o silêncio e permaneceu no ar. Saíra da boca de Emmett.
— Ele não se deu conta do perigo — relatou
depois em livro o outro primo, Simeon Wright.
Na manhã do dia seguinte, o dono do mercadinho
e um irmão entraram armados na casa onde Emmett ainda dormia. Levaram o menino
até uma camionete que os aguardava.
— É ele? — perguntou o dono.
— É — respondeu uma voz feminina de dentro
do veículo.
Passados quatro dias, o que restava do
corpo de Emmett foi encontrado no rio de uma cidade vizinha. Cabeça e rosto
formavam uma massa desfigurada, monstruosa, de pouca semelhança humana. Emmett
fora surrado, alvejado e amarrado com arame farpado antes de ser descartado. A
história teria se encerrado ali, como tantas outras à época, pois os irmãos
assassinos foram rapidamente absolvidos por um júri supremacista. Não foi
assim. A história entrou para a História.
Mamie Till recebera os restos mortais de
Emmett em caixão fechado, por via férrea. Ela sabia que o enterro em Chicago
seria concorrido, por isso decidiu expor o amontoado de carne que um dia foi
seu filho num caixão com tampo de vidro, sem retoques. O impacto sobre
familiares, amigos, a comunidade negra e demais participantes foi irreprimível
— documentários da época mostram desmaios, mulheres em agonia, outras tantas em
choque. O amor e a tenacidade dessa mãe em dor fizeram mais. Mamie percorreu
inúmeras redações de jornal pedindo que publicassem fotos do filho em vida,
sorridente, junto à dele trucidado. De início, somente publicações negras em
luta pelos direitos civis aceitaram. Mas a realidade acabou se impondo, e quem
ainda hesitava em condenar o arcabouço racista da nação americana sentiu-se
encorajado a entrar na luta. Historiadores consideram a caso Emmett Till,
anterior ao caso Rosa Parks, o marco inicial da frente ampla que marcharia até
conseguir mudar as leis segregacionistas uma década depois.
— Foi quase insuportável sentir o horror
das pessoas ao ver meu filho [naquele estado] — declarou Mamie Till à época. —
Mas pensei que a alternativa seria ainda pior. Desviamos o olhar da nossa cruel
realidade por um tempo longo demais. Sem a exposição, ninguém acreditaria. É
hora de o mundo ver o que eu vi.
Não só o mundo viu, como continua vendo. Em
2005, por motivos forenses, o corpo de Emmett teve de ser exumado e o caixão
trocado. A família decidiu então preservar o caixão original e pensou em doá-lo
a alguma entidade de direitos civis. Foi contactada por ninguém menos que o
colossal Smithsonian Institute e, desde então, o artefato faz parte do acervo
do Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, na capital do país.
— Nunca imaginamos que chegaríamos a tanto
— admitiu Simeon Wright à revista Smithsonian. — Visitantes do mundo inteiro
vão poder saber por que aquele caixão está ali. E mães, pais ou algum curador
haverão de contar a história (...) Quando ninguém faz nada para defender o
Estado de Direito, a sociedade se destrói sozinha.
Abril de 2023, Brasil — na semana passada,
dois casos registrados em vídeo conseguiram furar nossa acomodação ao cotidiano
racista do país. No Rio de Janeiro, o entregador Max Angelo dos Santos, morador
na Rocinha, não sabe como contar aos três filhos que foi chicoteado com coleira
de cachorro por uma moradora branca de São Conrado. A troco de nada. Ou melhor,
por ser negro.
— Complicado uma criança assistir a um
vídeo desses, é bem pesado — disse.
A agressora, Sandra Mathias Correia de Sá,
ex-atleta de vôlei, já o chamara de “marginal”, “preto”, “favelado” em ocasião
anterior, apenas pelo fato de o entregador usar o mesmo espaço público — a rua
— que ela.
Em Curitiba, a professora Isabel Oliveira,
que fora a um supermercado Atacadão comprar leite para a filha, sentiu-se
seguida no estabelecimento por mais de meia hora por um funcionário da casa.
“Isso não pode ser normal”, pensou. E não aceitou. Resolveu usar o corpo negro
como grito de afirmação. Com o testemunho do marido, que filmou a cena,
retornou ao Atacadão, ali desnudou-se e entrou na fila do caixa vestindo apenas
calcinha e sutiã, e uma pergunta rabiscada na própria pele:
— Eu sou uma ameaça?
A coleira que chicoteou o entregador Max
poderia constar de algum museu do racismo no
Brasil de 2023. O basta da professora Isabel aponta para um amanhã sem
paciência com a grande perversidade nacional: o racismo.
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