domingo, 16 de abril de 2023

Dorrit Harazim - Dois tempos

O Globo

A coleira que chicoteou o entregador Max poderia constar de algum museu do racismo no Brasil de 2023

Agosto de 1955, Estados Unidos — foi sucinta a última recomendação da mãe de Emmett Till, de 14 anos, ao embarcá-lo para visitar familiares no estado sulista do Mississippi:

— Lá não é como aqui em Chicago. Você é um menino negro, não deve arrumar confusão.

Os tios que hospedaram o garoto curioso lhe fizeram advertência semelhante. Também os priminhos da mesma idade falavam em nunca chamar a atenção, mesmo em programas tão inocentes como sair para comprar doces. Foi numa noite daquele agosto escaldante que Emmett entrou no mercadinho Bryant, de propriedade de um branco, acompanhando o primo Curtis Jones. No caixa estava a mulher do dono. Os meninos fizeram a compra, saíram rapidamente e ainda estavam a fazer hora quando a sra. Bryant também saiu para pegar o carro. Um assovio atrevido, insolente, proibido cortou o silêncio e permaneceu no ar. Saíra da boca de Emmett.

— Ele não se deu conta do perigo — relatou depois em livro o outro primo, Simeon Wright.

Na manhã do dia seguinte, o dono do mercadinho e um irmão entraram armados na casa onde Emmett ainda dormia. Levaram o menino até uma camionete que os aguardava.

— É ele? — perguntou o dono.

— É — respondeu uma voz feminina de dentro do veículo.

Passados quatro dias, o que restava do corpo de Emmett foi encontrado no rio de uma cidade vizinha. Cabeça e rosto formavam uma massa desfigurada, monstruosa, de pouca semelhança humana. Emmett fora surrado, alvejado e amarrado com arame farpado antes de ser descartado. A história teria se encerrado ali, como tantas outras à época, pois os irmãos assassinos foram rapidamente absolvidos por um júri supremacista. Não foi assim. A história entrou para a História.

Mamie Till recebera os restos mortais de Emmett em caixão fechado, por via férrea. Ela sabia que o enterro em Chicago seria concorrido, por isso decidiu expor o amontoado de carne que um dia foi seu filho num caixão com tampo de vidro, sem retoques. O impacto sobre familiares, amigos, a comunidade negra e demais participantes foi irreprimível — documentários da época mostram desmaios, mulheres em agonia, outras tantas em choque. O amor e a tenacidade dessa mãe em dor fizeram mais. Mamie percorreu inúmeras redações de jornal pedindo que publicassem fotos do filho em vida, sorridente, junto à dele trucidado. De início, somente publicações negras em luta pelos direitos civis aceitaram. Mas a realidade acabou se impondo, e quem ainda hesitava em condenar o arcabouço racista da nação americana sentiu-se encorajado a entrar na luta. Historiadores consideram a caso Emmett Till, anterior ao caso Rosa Parks, o marco inicial da frente ampla que marcharia até conseguir mudar as leis segregacionistas uma década depois.

— Foi quase insuportável sentir o horror das pessoas ao ver meu filho [naquele estado] — declarou Mamie Till à época. — Mas pensei que a alternativa seria ainda pior. Desviamos o olhar da nossa cruel realidade por um tempo longo demais. Sem a exposição, ninguém acreditaria. É hora de o mundo ver o que eu vi.

Não só o mundo viu, como continua vendo. Em 2005, por motivos forenses, o corpo de Emmett teve de ser exumado e o caixão trocado. A família decidiu então preservar o caixão original e pensou em doá-lo a alguma entidade de direitos civis. Foi contactada por ninguém menos que o colossal Smithsonian Institute e, desde então, o artefato faz parte do acervo do Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, na capital do país.

— Nunca imaginamos que chegaríamos a tanto — admitiu Simeon Wright à revista Smithsonian. — Visitantes do mundo inteiro vão poder saber por que aquele caixão está ali. E mães, pais ou algum curador haverão de contar a história (...) Quando ninguém faz nada para defender o Estado de Direito, a sociedade se destrói sozinha.

Abril de 2023, Brasil — na semana passada, dois casos registrados em vídeo conseguiram furar nossa acomodação ao cotidiano racista do país. No Rio de Janeiro, o entregador Max Angelo dos Santos, morador na Rocinha, não sabe como contar aos três filhos que foi chicoteado com coleira de cachorro por uma moradora branca de São Conrado. A troco de nada. Ou melhor, por ser negro.

— Complicado uma criança assistir a um vídeo desses, é bem pesado — disse.

A agressora, Sandra Mathias Correia de Sá, ex-atleta de vôlei, já o chamara de “marginal”, “preto”, “favelado” em ocasião anterior, apenas pelo fato de o entregador usar o mesmo espaço público — a rua — que ela.

Em Curitiba, a professora Isabel Oliveira, que fora a um supermercado Atacadão comprar leite para a filha, sentiu-se seguida no estabelecimento por mais de meia hora por um funcionário da casa. “Isso não pode ser normal”, pensou. E não aceitou. Resolveu usar o corpo negro como grito de afirmação. Com o testemunho do marido, que filmou a cena, retornou ao Atacadão, ali desnudou-se e entrou na fila do caixa vestindo apenas calcinha e sutiã, e uma pergunta rabiscada na própria pele:

— Eu sou uma ameaça?

A coleira que chicoteou o entregador Max poderia constar de algum museu do racismo no Brasil de 2023. O basta da professora Isabel aponta para um amanhã sem paciência com a grande perversidade nacional: o racismo.

 

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